"Stella Maris" é o segundo volume da obra que Cormac McCarthy lançou em 2022, 16 anos depois do seu último livro, agora com 89 anos. Se no primeiro volume, "O Passageiro", nos introduziu a um mundo denso e complexo de ações humanas para as quais não parecia possuir uma ideia concreta a transmitir, "Stella Maris" é todo o contrário, quase vazio de ação, completamente focado naquilo que tem para dizer, ainda que o faça por meio de alguém em quem não podemos confiar totalmente, pelo diagnóstico de loucura a que está votada. É uma viagem científica realizada por meio de um vertiginoso diálogo entre um terapeuta e uma paciente, 20 anos, que desistiu de fazer o seu doutoramento em matemática para se auto-internar no hospital pisquiátrico Stella Maris.
Se a erudição do primeiro volume espantava pelo detalhe descritivo das ações, neste a erudição dá lugar a um mergulho em profundidade na ciência. Cormac trabalha domínios transdiciplinares que vão das ciências da matemática e física às ciências cognitivas, nomeadamente a psicologia evolucionária e as neurociências, envolvendo ainda as ciências da linguagem, música e semântica. A meio do livro tive de ir procurar mais informação sobre o autor e o que fazia, pois o nível de conhecimento era não só elevado como extremamente atualizado. E assim descobri que apesar dos seus 89 anos, Cormac trabalha no Santa Fe Institute, um instituto de investigação teórica dedidado ao estudo de sistemas adaptativos complexos. Ali, dedica-se à escrita dos seus livros, enquanto vai dialogando com investigadores das mais variadas áreas [1, 2, 5]
"I dont know. I’m not sure what memory means. For one thing. One of the problems is that each memory is the memory of the memory before. You cant remember the occasion of the actual memory. How would you do that? You just remember remembering it. And only the most recent memory at that."
O cerne do tema por detrás de "Stella Maris" está contido num pequeno artigo que Cormac publicou em abril 2017, chamado "The Kekulé Problem", na Nautilus [3]. Neste, Cormac debate-se com a distinção entre o consciente e o não-consciente, nomeadamente sobre o modo como estes comunicam entre si. Como é que o não-consciente sabe aquilo que o consciente precisa, e como é que passa essa informação ao consciente em cada momento. Esta discussão é hoje mais relevante do que alguma fez, tendo em conta que temos na praça pública um sistema denominado ChatGPT, uma máquina algoritmica que é capaz de falar conosco durante horas sobre infindáveis questões. Para o fazer, usa um sistema de probabilidade matemática da palavra seguinte, baseado em tudo o que já foi dito e em tudo aquilo que foi lido antes, para calacular a palavra seguinte que faz mais sentido ser dita a seguir. Uma simplicidade que ofereceu uma capacidade inaudita às máquinas. Contudo, Cormac não se fica pelas palavras, questiona a linguagem como um todo, desde a produção da simples arte visual à descrição de conceitos matemáticos. A conclusão de Cormac é instigante. Partindo do princípio que o nosso cérebro atual tem cerca de 2 milhões de anos, e de que só criámos a linguagem (que define desta forma singela e bela, "Uma coisa pode ser outra coisa") há cerca de 100 mil anos. Juntando ainda o facto de "o inconsciente [ser] um operativo biológico e a linguagem não" [3], como bem explana em Stella Maris:
" Psychiatrists have trouble dealing with the unconscious in a straightforward way. But the unconscious is a purely biological system, not a magical one. It’s a biological system because that’s all there is for it to be. People arent happy talking about the unconscious unless there’s a certain amount of hokum involved. But there isnt. The unconscious is simply a machine for operating an animal. What else could it be? Most of what we do is unconscious. Turning chores over to the conscious mind is a risky business. Whales and dolphins have to time their breathing to their surfacing. So of course when they were first anesthetized for surgery they simply died [4]. Which should have been predictable. The unconscious evolves along with the species to meet its needs and if there’s anything spooky about it it’s that it sometimes seems to anticipate those needs. It cant afford surprises. It’s one of the things that troubled Darwin. But the souldoctors dont get any of this. They’re Cartesian to the bone."
Isso deverá querer dizer que o "O inconsciente simplesmente não está habituado a dar instruções verbais e não está satisfeito por ter de o fazer." [3]. Ou seja, o inconsciente constrói as suas conjeturas, mas depois não tem como dar-nos a conhecer as mesmas, podendo usar para o efeito os sonhos, imagens, símbolos, etc. que o consciente por vezes capta e transforma numa lógica textual narrativa que serve para compreender e dar a compreender aos outros. Um exemplo fantástico que Cormac nos oferece sobre isto mesmo é o simples facto: "Pode ter lido mil livros e ser capaz de discutir qualquer um deles sem se lembrar de uma palavra do texto", por outro lado, em "Stella Maris" vai mais ao fundo atacando a ideia da perceção do Eu:
"Do you think that the sense of self is an illusion? -- Coherent entities composed of a great number of disparate parts arent — as a general rule — thereby assumed to have their identities compromised. I know that seems to be ignoring our sense of ourselves as a single being. The “I.” I just think it’s a silly way of viewing things. If we were constructed with a continual awareness of how we worked we wouldnt work. You might even ask that if the self is indeed an illusion for whom then is it illusory?"
"When all trace of our existence is gone, for whom then will this be a tragedy?"
"Stella Maris" não responde às questões existenciais porque não o pretende sequer. Cormac usa aqui o mensageiro, qualificado como louco, para dar conta do modo como a biologia e a psicologia interagem e fazem do ser humano a espécie que é, destruindo assim um pouco mais da mitologia que tende a ver o humano como algo especial, mágico.
"But surely you dont think that mathematics is magic? I think that it’s magic if you dont understand it. As you learn more about it it becomes less magical. Then as you realize that there is a clear sense in which you will never understand it it becomes magical again."
Nota 1: todas as citações em inglês são retiradas do livro original de Cormac McCarthy, apesar de ter lido o livro na versão portuguesa de Paulo Faria, editado pela Relógio d'Água.
Nota 2: por influência das conversas no livro, acabei por ler quase todo o livro ao som de Bach, pelo violino de Itzhak Perlman no álbum "Solo Violin Sonatas".
Referências
1 - "Cormac and SFI: an abiding friendship", 2022, https://www.santafe.edu/news-center/news/cormac-and-sfi-abiding-friendship)
2 - Entrevista vídeo "Couldn't Care Less. Cormac McCarthy in conversation with David Krakauer", 2022, https://www.youtube.com/watch?v=HrUy1Vn2KdI
3 - "The Kekulé Problem. Where did language come from?" de Cormac McCarthy, April, 2017, https://nautil.us/the-kekul-problem-236574/
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