abril 02, 2023

Lessico famigliare (1963)

Depois de uma certa desilusão com Elsa Morante, com "A História" (1974), agora foi a vez de Natalia Ginzburg, com "Léxico Familiar" (1963). Ambas autoras italianas recuperadas no início deste século XXI por força do êxito estrondoso de Elena Ferrante. Morante e Ginzburg são contemporâneas, viveram tempos muito diferentes dos de hoje, por isso dificilmente podem ser colocadas ao lado de Ferrante, mas se não bastasse, estão elas próprias nas antípodas uma da outra. Se Morante usa e abusa do sentimentalismo, Ginzburg usa e abusa do desapegamento. No entanto, a comparação com Ferrante é inevitável e resultado, para ambas, é pouco favorável.

"Léxico Familiar" é um trabalho sui generis, já que Ginzburg abre o livro comunicando que tudo o que ali vem é factual, incluindo os nomes, o que oferece um misto de não-ficcionalidade ao registo. Mas aquilo que torna o registo verdadeiramente peculiar é o modo distante como é relatado. "Léxico Familiar" é, como o próprio título revela, uma saga familiar, um género reconhecido pela psicologia, drama e emocionalidade, mas tudo isso fica aqui à porta. Não porque não seja capaz de o fazer, mas porque é assim que Ginzburg decide traçar a registo da saga da sua vida.

Se se aventurarem no livro, sem ter lido nada sobre a vida de Ginzburg, como eu fiz, o resultado será ainda mais conseguido. Ou seja, sentimo-nos levados de arrasto por Ginzburg, que se limita a contar o que disse cada um dos membros da família nuclear, atirando borda fora tudo aquilo que realmente foi acontecendo àquela família. O pai é preso, não sabemos porquê, os irmãos são presos, idem. O marido de Ginzburg é assassinado na prisão, nunca nos é dito. A família é judia, mas nunca se discute o assunto, ou discute-se como algo à superfície ausente de impactos, quando houve perseguições sérias. Ginzburg volta a casar, mas não sabemos com quem. Tem filhos, mas não percebemos quando nem o que representam para ela. Escreve vários livros e traduz Proust, mas disso nada diz.

Ginzburg como que pega no género da saga familiar e depura-o de todo o sentimentalismo, extripando-lhe toda e qualquer emoção. Resta apenas aquilo que cada personagem vai dizendo nos momentos mais tranquilos. Não há conflito, não há tragédia, não há sequer fricção. Tudo corre, como tem de correr, porque os rios não deixam de seguir o seu caminho mesmo quando um terremoto acontece. Claro que tudo corre, porque a prosa é límpida e fluída como esses rios. Assim, ao longo das parcas 200 páginas ficamos a conhecer bastante bem as tiradas estouvadas do pai e a afetação da mãe. Mas para esta família judia que viveu a pior época possível na Europa, nada parece nunca mudar. Passam pela vida, como se nada fosse com eles. Os humores e amores de partida são os mesmos à chegada.

Inevitável ver neste trabalho um objetivo estético, muito em voga na época, predicado de nomes maiores, como Brecht e Beckett, para quem a emocionalidade devia ser neutra. A ideia base é de que uma obra não precisa de nos impactar no momento da experiência, mas deve-o fazer à posteriori, pela reflexão que tem de evocar. Na verdade, o título é muito direto, é do léxico, a sintaxe, que nos fala, a semântica e a pragmática ficam de fora. Aceitando a abordagem, neste caso específico, Ginzburg não o consegue, porque a reflexão sobre o que lemos só é possível quando confrontamos o texto com aquilo que efetivamente foi a vida de Ginzburg, algo bastante evidente nas análises feitas à obra.

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