Terceiro livro de Yalom dedicado a romancear as ideias de um filósofo. Depois de Nietzsche em 1992 e Schopenhauer em 2000, em 2012 foi a vez de Espinosa. São três obras de elevado interesse pelo modo como facilitam a entrada na complexidade dos quadros teóricos de cada um destes filósofos. Por via do simples contar de histórias, Yalom traz de volta à vida os pensadores, permitindo-nos dialogar com eles. Não se espere obras de grande desenvoltura literária, o foco são as ideias e os criadores das mesmas, a literatura está aqui ao serviço. Mas em termos de apresentação e discussão teórica, Yalom impressiona, tornando simples e acessível o complexo. Ao contrário dos anteriores filósofos, nada tinha lido escrito pelo próprio Espinosa, apesar de por várias vezes me ter aproximado dele. Talvez por isso, por funcionar como descoberta de um novo mundo, foi dos três o que mais mexeu comigo.
Sinopse: Espinosa, judeu refugiado na Holanda, viveu uma vida de castigo e isolamento. Devido aos seus pontos de vista, foi excomungado da própria comunidade judaica de Amesterdão, e banido do único mundo que sempre conhecera. Apesar de viver com poucos meios, Espinosa produziu obras que mudaram o rumo da História.
Se não tinha lido antes Espinosa, tinha lido um outro texto que me serviu de comparativo e nomeadamente de filtro crítico, falo de "Um Bicho da Terra" (1984), um livro de Agustina Bessa Luís sobre Uriel Da Costa, o filósofo português, cristão-novo, que estudou na Universidade de Coimbra e depois emigrou para Amsterdão, no século XVI. Uriel da Costa viveu na mesma comunidade de Espinosa, morreu quando Espinosa tinha 6 anos. Desde já, dizer que é uma tontice dizer-se que Espinosa era português, e colá-lo na capa do livro ainda pior. O seu pai fugiu de Espanha para Portugal, e de Portugal para a Holanda, Espinosa nasceu em Amsterdão. Se é verdade que falava e escrevia inicialmente em português, isso não faz dele português. Mais, tendo em conta o facto de ter sido ostracizado por todos os países por onde passou, tendo de publicar sob anonimato, diria que Espinosa era sim um Cidadão do Mundo.
O livro de Agustina serviu-me então de filtro crítico porque quando ia a meio do livro de Yalom, surgiu a história de Uriel, de forma muito breve, e por isso voltei para ler o que tinha escrito sobre o livro de Agustina. Foi então que me apercebi que não só Yalom não dava conta da verdadeira importância da figura de Uriel, do seu legado filosófico, como se abstinha totalmente de ligar a sua personalidade e ideias às ideias de Espinosa. Foi então que me apercebi que Yalom pretendia apenas uma coisa, cultuar Espinosa. Para esse efeito não podiam ser apresentados elementos que ombreassem. Espinosa tinha de ser o primeiro e mais dotado de sempre naquela comunidade e no mundo. Repare-se no seguinte diálogo:
Espinosa: “o meu pai (...) falou-me da vossa elevada opinião sobre a minha mente — "inteligência ilimitada" — foram as palavras que ele vos atribuiu. Foram de facto estas as suas palavras? Ele citou-o correctamente?”
Rabi Mortera: “Sim, essas foram as minhas palavras”
Yalom segue um modo de novelização completamente oposto a Agustina, já que esta procurava acima de tudo um registo histórico para a posterioridade, sem exageros nem inverdades, enquanto Yalom não se preocupava com o que tinha de ficar por dizer, desde que conseguisse criar na mente do leitor a figura de uma espécie de Deus Filósofo, pronto a ser seguido pelo leitor. Com esta crítica, não estou a dizer que Espinosa não fosse uma mente brilhante e um filósofo profundamente dotado, mas continuava sendo um humano. Porque a diferença entre os dois livros, sobre Uriel e Espinosa, é a demonstração do primeiro de que não existem super-homens, mas que o conhecimento se constrói na senda de muitos antes de nós. Não nascemos ensinados, nem temos propriedades capazes de nos colocar do lado de fora da espécie. Construímos a partir daquilo que os outros antes de nós construíram.
Yalom enfatiza múltiplas vezes que Espinosa teria uma inteligência fora do normal, que era alguém completamente sobredotado, alguém diferente de todos. Usa depois outras figuras de culto como Goethe, Kant ou Einstein para levar ainda mais longe o seu endeusamento. Repare-se que este tipo de endeusamento faz parte da nossa cultura ocidental, adorada principalmente pela cultura americana que se preza pela competição desenfreada. Se enaltecermos o individuo, em vez da teia de indivíduos que contribuí pequenos elementos para o todo, criaremos um maior sentimento de inveja, uma maior necessidade de dar o máximo, e pedalar sem parar. Repare-se nos seguintes casos:
Gutenberg: Inventor da prensa móvel, algo que sabemos há muito não ser verdade, já que existem imensos registos do seu uso muito anterior na Ásia.
Darwin: Criador da Teoria Seleção Natural. A sua teoria surgiu ao mesmo tempo que a de Alfred Wallace. E o que isso no diz é que o conhecimento criado pelo ser humano até àquele momento tornava evidente aquela teorização. Mas antes tivemos Lamarck, e muito antes Lucrécio.
Einstein: Criador da Teoria Geral da Relatividade. Sem os génios de Hendrik Lorentz ou Henri Poincaré Einstein nunca teria chegado à mesma.
Edison: Inventor da Lâmpada Elétrica. Na verdade foi o criador da primeira lâmpada comercializada, porque a lâmpada elétrica existia já em múltiplos outros experimentos.
Lumiére: Inventores do Cinema. Pode-se dizer que foram os primeiros a fazer uma sessão paga de cinema, nada mais.
Jobs: Criador da Interface de Utilizador Gráfica (GUI). Antes tinha sido desenvolvida pela Xerox, onde trabalhava Alan Kay, e antes disso por Ivan Sutherland na U. Stanford.
Esta lista poderia continuar infinitamente, é uma pequena amostra que dá conta do facto de nenhum ser humano ter qualquer comunicação privilegiada com Deus ou qualquer realidade alternativa. Criamos e inventamos apenas aquilo que é possível em cada momento, e o que é possível é limitado pelo que existe em cada um desses momentos. As disrupções ou saltos revolucionários, não passam de “wishful thinking”, porque nunca vamos além da incrementação. Se realmente fossemos capazes desses saltos no conhecimento, não só já teríamos evoluído muito mais, como poderíamos encontrar momentos de invenção na história inexplicáveis, buracos negros de conhecimento. No entanto não existem momentos desses documentados em lado algum. Tudo o que inventámos, seguiu o rumo do conhecimento que existia, porque como nos diz Lucrécio: "Nada pode ser criado do nada."
Contudo, na nossa sociedade ocidental ao contrário da oriental, aquilo que mais queremos ouvir são histórias sobre indivíduos que fizeram a diferença, que foram heróis, melhor ainda, super-heróis. Alcançaram o inalcançável. Lê-se a certa altura, no livro de Yalom: “O meu professor afirmou que Spinoza foi o homem mais inteligente que alguma vez andou na terra.”
Mas, é o próprio Espinosa que o diz, aqui no livro de Yalom:
“Portanto, também é verdade que Deus não escolheu o homem para ser especial, para estar fora das leis da Natureza. Essa ideia, creio eu, não tem nada a ver com a ordem natural, mas vem antes da nossa profunda necessidade de sermos especiais, de sermos imperecíveis.”
Os judeus afirmavam-se como o Povo Eleito, Escolhido ou Especial para forçar a sua crença nas massas. Mas Espinosa nunca aceitou tal ideia, desde logo porque nem sequer nas escrituras vem inscrito tal. Mas acima de tudo porque Espinosa acreditava que tudo era Natureza e que nesta não cabe o Especial. Tudo vem da Natureza, tudo volta à Natureza. Esta ideia de Especial, de Culto do indivíduo liga-se com a tal necessidade de se manter à superfície da Terra para todo o sempre. Só sendo-se Especial não se será esquecido. Mas como dizia Epicurus,
“A morte não é nada para nós. Quando existimos, a morte não existe; e quando a morte existe, não existimos nós. Todas as sensações e consciências terminam com a morte e, portanto, na morte não há prazer nem dor. O medo da morte surge da crença de que na morte existe consciência.”
"Eu não era, fui; já não sou, já não me importo."
No fundo, por mais impressionante que Espinosa tenha sido, bebeu bastante no exemplo de Uriel da Costa, assim como foi buscar muitas das ideias a Epicuro, Lucrécio, Aristóteles e tantos outros. Aliás, um dos focos do livro é exatamente a Biblioteca de Espinosa com mais de 150 volumes, para quem quase nada tinha, o que ele mais prezava era o legado de quem o precedeu, a partir do que podia continuar a debater e a construir as suas ideias.
“Porque ninguém, na realidade é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão” Espinosa in "Tratado Teológico-Político"
Esta minha crítica ao livro foi proporcionada pelo próprio livro, já que Yalom não se limita a falar de Espinosa, ele coloca o mesmo em confronto com o nazismo que bebeu nas suas ideias para criar a sua própria doutrina, subvertendo totalmente o legado de Espinosa. Os nazis não compreendiam como Espinosa poderia ter sido tão iluminado, imensamente respeitado por grandes nomes da história da Alemanha, e ao mesmo tempo ser judeu. Por isso, de forma execrável, fizeram uso do trabalho de Espinosa, dos seus argumentos sobre a religião e o judaísmo para atacar os judeus, mas colocando-se a si mesmos no lugar da Raça Especial.
"A atividade mais elevada que um ser humano pode atingir é aprender a compreender, porque compreender é ser livre." Espinosa in "Ética"
Este trabalho de fusão entre a história de Espinosa e o nascimento da ideologia do nazismo levanta ainda uma outra questão que Yalom não discute mas é por demais evidente. À medida que Yalom vai romantizando o trabalho de Alfred Rosenberg, torna-se inevitável pensarmos sobre as razões por que não foi banida a obra de Houston Stewart Chamberlain? Se ela não tivesse chegado às mãos de Rosenberg, teríamos alguma vez chegado a ter um nazismo tão obcecado com a raça? Contudo, pouco depois, quando vemos os livros de Espinosa serem banidos pelos judeus e pelos cristãos, mesmo tendo sido publicados de forma anónima, a resposta torna-se óbvia.
Para fechar o texto, dizer que o livro de Yalom pode não ser, ou não parecer, brilhante, mas tendo em conta tudo aquilo que nos dá a conhecer e o modo como nos instiga a refletir, por demais evidente no meu texto acima, torna-se difícil não recomendar a sua leitura. Para mim, foi essencial porque antes de voltar a tentar ler "Ética" (1677), vou seguir a recomendação de ler primeiro o "Tratado Teológico-Político".
Continuar a Ler:
Nietzsche, o psicoterapeuta, 7.2020
Schopenhauer por Yalom, 9.2020