setembro 19, 2020

Orgulho e moral

"A Hidden Life" (2019) de Terrence Malick provoca e coloca-nos no lugar do outro. Apresenta um personagem, baseado numa pessoa real, que abdicou de tudo, de si e da sua família, pela não submissão ao regime nazi, sendo condenado à morte. O filme rasga-nos em dois, por um lado a consternação com a teimosia e orgulho capaz de levar alguém a desistir de si, da mulher e três filhas, por outro, a necessidade de defender aqueles que ousaram defender a moral... como diz um personagem a meio do filme: "Don't they know evil when they see it?

Em termos estéticos, o filme é um festim sensorial capaz de nos fazer imergir ao longo de 3 horas. Deixo algumas imagens e a ligação para a belíssima banda sonora.













setembro 13, 2020

O Verdadeiro Criador de Tudo (2020)

Miguel Nicolelis (1961) é um médico formado pela universidade de São Paulo e professor de neurobiologia na Universidade de Duke, EUA. A sua carreira tem sido recheada de prémios, reconhecimentos e louvores. Tornou-se popular com o projeto "Andar de Novo”, criado para a abertura do Mundial de Futebol 2014 (Brasil), que por meio de um exosqueleto, interfaces cerebrais e inteligência artificial permitiu a um paraplégico andar, chutar e marcar um golo. O projeto fez correr muita tinta, dentro e fora da academia, mas o principal resultado está neste seu livro "The True Creator Of Everything. How The Human Brain Shaped The Universe As We Know It" (2020), sob a forma de uma grande teoria sobre a realidade e o cérebro. 
Nicolelis abre o livro com a discussão do “Projeto Andar de Novo” focando-se sobre algo que parece um detalhe, mas que se torna central na discussão subsequente. No momento em que Juliano Pinto chuta a bola e marca golo, ele não grita “golo”, mas grita “I felt the ball! I felt the ball!”. O projeto pretendia criar um sistema de apoio artificial à locomoção da pessoa, que por ser tetraplégica deixou de controlar as suas pernas porque simplesmente não as sentia. Com este projeto, e com a tentativa de por meio de interfaces cerebrais colocar o cérebro a mexer as pernas por via de motores, o cérebro do paciente parece ter ido além, tendo conseguido realocar as sensações das pernas por via do sistema providenciado (ver imagem abaixo). 

Os exemplos disto são muitos, Nicolelis numa entrevista explica como o podemos fazer nós mesmos:
“coloque uma venda em uma pessoa normal como eu e você, e deixe passar  10, 15 minutos. Depois pegue um aparelho de ressonância magnética e peça a pessoa vendada para fazer uma tarefa tátil com as pontas dos seus dedos. [Com esse experimento] vamos detetar respostas táteis no seu córtex visual já. Isso sugere que existe uma conectividade entre o sistema sinestésico e o sistema visual (...) A gente encontra esse crosstalk de funções cerebrais por todo o lugar do córtex.”
O autor parte depois para uma discussão sobre a criação e seleção natural do nosso cérebro que teve impactos não apenas na morfologia mas no seu funcionamento em concreto, a partir do que vai iniciar a apresentação da sua proposta com o novo conceito de “informação godeliana”. Este tipo de informação, segundo Nicolelis, aproxima-se da informação digital, segundo descrita por Claude Shannon, com a diferença de ser analógica, mas mais do que isso, dada a sua imbricação natural com os tecidos, não formalizável, seguindo Godel. Mas é exatamente por possuirmos esse sistema de informação, que podemos reutilizar o cérebro de inúmeras formas diferentes. Ou seja, não existem área específicas para executarem funções no cérebro, elas podem ser realocadas, migradas, transformadas, em função da informação que recebem, abrindo espaço à “Teoria do Cérebro Relativístico”.

Com esta ideia estabelecida Nicolelis parte para discussão do cérebro enquanto criador da realidade que conhecemos. Imbuído do sistema de “informação godeliana” que permite construir a realidade nas nossas mentes de uma forma determinada, dá conta da impossibilidade desta informação ser replicada informaticamente e do modo como diferiria de uma qualquer espécie que tivesse surgido noutro qualquer planeta. O relevante desta proposta é que sustenta ideias discutidas pela filosofia desde a Alegoria da Caverna de Platão, para o que Nicolelis se suporta em Godel e contrapõe a ideia de que a matemática ou física sejam capazes de explicar algo além daquilo que o nosso cérebro possa compreender. 

Para o efeito transcreve um diálogo delicioso entre Albert Einstein e o Nobel da literatura, Rabindranath Tagore, ocorrido em Berlim a 14 julho 1930, que passo a transcrever:
Einstein: There are two different conceptions about the nature of the universe: (1) The World as a unity dependent on humanity. (2) The world as a reality independent of the human factor. 

Tagore: When our universe is in harmony with Man. The eternal, we know it as Truth, we feel it as beauty. 

Einstein: This is the purely human conception of the universe. 

Tagore: There can be no other conception. This world is a human world—the scientific view of it is also that of the scientific man. There is some standard of reason and enjoyment which gives it Truth, the stan- dard of the Eternal Man whose experiences are through our experiences. 

Einstein: This is a realization of the human entity. 

Tagore: Yes, one eternal entity. We have to realize it through our emotions and activities. We realized the Supreme Man who has no individual limitations through our limitations. Science is concerned with that which is not confined to individuals; it is the impersonal human world of Truths. Religion realizes these Truths and links them up with our deeper needs; our individual consciousness of Truth gains universal significance. Religion applies values to Truth, and we know this Truth as good through our own harmony with it. 

Einstein: Truth, then, or Beauty is not independent of Man?

Tagore: No.

Einstein: If there would be no human beings any more, the Apollo of 
Belvedere would no longer be beautiful.

Tagore: No.

Einstein: I agree with regard to this conception of beauty, but not with regard to Truth.

Tagore: Why not? Truth is realized through man.

Einstein: I cannot prove that my conception is right, but that is my religion.

Tagore: Beauty is in the ideal of perfect harmony which is in the  Universal Being; Truth the perfect comprehension of the Universal Mind. We individuals approach it through our own mistakes and blunders, through our accumulated experiences, through our illuminated consciousness—how, otherwise, can we know Truth? 

Einstein: I cannot prove scientifically that Truth must be conceived as a Truth that is valid independent of humanity; but I believe it firmly. I believe, for instance, that the Pythagorean Theorem in geometry states it is something that is approximately true, independently of the existence of man. Anyway, if there is a reality independent of man, there is also a Truth relative to this reality; and in the same way the negation of the first engenders a negation of the existence of the latter. 

Tagore: Truth, which is one with the Universal Being must essentially be human, otherwise whatever we individuals realize as true can never be called truth—at the least the Truth which is described as scientific and which can only be reached through the process of logic, in other words, by an organ of thoughts [the brain] which is human. According to Indian Philosophy there is Brahman, the absolute Truth, which can- not be conceived by the isolation of the individual mind or described by word but can only be realized by completely merging the individual in its infinity. But such a Truth cannot belong to Science. The nature of Truth which we are discussing is an appearance—that is to say, what appears to be true to the human mind and therefore is human, and may be called maya or illusion. 

Einstein: So according to your conception, which may be the Indian conception, it is not the illusion of the individual, but of humanity as a whole. 

Tagore: The species also belongs to a unity, to humanity. Therefore the entire human mind realizes Truth; the Indian or the European mind meet in a common realization. 

Einstein: The word species is used in German for all human beings, as a matter of fact, even the apes and the frogs would belong to it. 

Tagore: In science we go through the discipline of eliminating the personal limitations of our individual minds and thus reach that com- prehension of truth which is the mind of the Universal Man. 

Einstein: The problem begins whether Truth is independent of our consciousness. 

Tagore: What we call truth lies in the rational harmony between the subjective and objective aspects of reality, both of which belong to the super-personal man. 

Einstein: Even in our everyday life we feel compelled to ascribe a reality independent of man to the objects we use. We do this to connect the experiences of our senses in a reasonable way. For instance, if nobody is in this house, yet the table remains where it is. 

Tagore: Yes, it remains outside the individual mind, but not the universal mind. The table which I perceive is perceptible by the same kind of consciousness which I possess. 

Einstein: If nobody would be in the house the table would exist all the same—but this is already illegitimate from your point of view—because we cannot explain what it means that the table is there, independent of us. Our natural point of view in regard to the existence of truth apart from humanity cannot be explained or proved, but it is a belief which nobody can lack—no primate beings even. We attribute to truth a super- human objectivity; it is indispensable for us, this reality which is independent of our existence and our experience and our mind—though we cannot say what it means. 

Tagore: Science has proved that the table as a solid object is an appearance and therefore that which the human mind perceives as a table would not exist if that mind were naught. At the same time it must be admitted that the fact, that the ultimate physical reality is nothing but a multitude of separate revolving centers of electric force, also belongs to the human mind. In the apprehension of Truth there is an eternal conflict between the universal mind and the same mind confined in the individual. The perpetual process of reconciliation is being carried out in our science, philosophy, in our ethics. In any case, if there be any Truth absolutely unrelated to humanity then for us it is absolutely non-existing. It is not difficult to imagine a mind to which the sequence of things happens not in space but only time like the sequence of notes in music. For such a mind such a conception of reality is akin to the musical reality in which Pythagorean geometry can have no meaning. There is the reality of paper, infinitely different from the reality of literature. For the kind of mind possessed by the moth which eats that paper literature is absolutely non-existent, yet for Man’s mind literature has a greater value of Truth than the paper itself. In a similar manner if there be some Truth which has no sensuous or rational relation to the human mind, it will ever remain as nothing so long as we remain human beings. 

Einstein: Then I am more religious than you are! 

Tagore: My religion is the reconciliation of the Super-personal Man, the universal human spirit, in my own individual being. 


** In a second meeting, on August 19, 1930, the extraordinary dialogue continued. **


Tagore: I was discussing... today the new mathematical discoveries, which tell us that in the realm of the infinitesimal atoms chance has its play; the drama of existence is not absolutely predestined in character. 

Einstein: The facts that make science tend towards this view do not say goodbye to causality. 

Tagore: Maybe not; but it appears that the idea of causality is not in the elements, that some other force builds up with them an organized universe. 

Einstein: One tries to understand how the order is on the higher plane. The order is there, where the big elements combine and guide existence; but in the minute elements this order is not perceptible. 

Tagore: This duality is in the depths of existence—the contradiction of free impulse and directive will which works upon it and evolves an orderly scheme of things. 

Einstein: Modern physics would not say they are contradictory. Clouds look one [way] from a distance, but if you see them near, they show themselves in disorderly drops of water. 

Tagore: I find a parallel in human psychology. Our passions and de- sires are unruly, but our character subdues these elements into a harmonious whole. Are the elements rebellious, dynamic with individual impulse? And is there a principle in the physical world which dominates them and puts them into an orderly organization? 

Einstein: Even the elements are not without statistical order: ele- ments of radium will always maintain their specific order now and ever onwards, just as they have done all along. There is, then, a statistical order in the elements. 

Tagore: Otherwise the drama of existence would be too desultory. It is the constant harmony of chance and determination, which makes it eternally new and living. 

Einstein: I believe that whatever we do or live for has its causality; it is good, however that we cannot look through it. 


O mais paradoxal de toda a apresentação do livro, e que dá conta também de alguns dos problemas do trabalho do autor e nomeadamente do relacionamento com outros cientistas, surge nas previsões relativamente catastróficas que faz para o futuro do humano, nomeadamente a partir da ligeireza com que discorre sobre os efeitos dos media, dos computadores e nomeadamente das redes sociais. 

Deste modo, quando fechei o livro fiquei a pensar: quanto do que li é tão novo como o autor nos quer dizer? Se gostei de ler, e ter contacto com as décadas de experimentos neurocientíficos de Nicolelis, também me questionei sobre quanto destas propostas não tinham já sido amplamente discutidas em profundidade pela filosofia, depois psicologia e agora pelas neurociências? O que liga Platão, Descartes e Godel se não exatamente esta ideia de que o cérebro é o criador de tudo? 

Aquilo que se pode dizer é que Nicolelis acrescenta à teorização os modos efetivos de funcionamento do nosso cérebro que suportam essa ideia. Mas que o cérebro modelo e filtra a realidade, e nos faz ver de uma forma particular, acho difícil ter hoje dúvidas disso. A questão que se coloca é antes perceber, de que é então feita a realidade externa a nós, além da simulação mental que criamos? Claro que aqui batemos contra a parede da impossibilidade de sair fora do nosso espartilho cerebral, e talvez por isso mesmo tenhamos de concluir que somos apenas aquilo que o nosso cérebro nos permite que sejamos.

setembro 12, 2020

Schopenhauer por Yalom

"A Cura de Schopenhauer" (2000) do psicanalista-romancista Irving D. Yalom é mais uma viagem de associação de ideias entre a Filosofia e a Psicologia. Depois de "Quando Nietzsche Chorou" (1992) recuou no tempo, à maior influência de Nietzsche, para nos falar de Arthur Schopenhauer. A abordagem é distinta do primeiro livro, desta vez não temos Schopenhauer em cena, antes temos alguém que o segue religiosamente e precisa de se tratar. O tratamento segue de perto as teorias de Schopenhauer, e enquanto dura Yalom aproveita para intercalar uma breve história da vida de Schopenhauer. Se o tratamento não me surpreendeu, já que as abordagens apresentadas pouco vão além do conhecimento que já tinha da obra de Schopenhauer, a sua breve história, que desconhecia, foi o que mais me impressionou. É um livro interessante e instigante, mas ligeiro, talvez menos por culpa de Yalom e mais do próprio Schopenhauer.

Há 25 anos, enquanto passava por uma depressão causada por um coração partido, li “Dores do Mundo” de Arthur Schopenhauer. O impacto foi intenso, poderoso, não posso dizer com certeza, mas acredito que me ajudou a sair do buraco, o que está em consonância com muito do que se discute neste livro. No entanto, agora ao reler muitas dessas ideias, que na altura revolucionaram a minha noção do mundo, senti-as ultrapassadas. Schopenhauer anteviu um conjunto de ideias a que a biologia e psicologia só iriam chegar 50 ou 100 anos depois, porém parece ter-se deixado enredar por elas, não tendo nunca conseguido progredir na compreensão de si mesmo ou do mundo.

De forma sucinta, Schopenhauer apresenta algumas ideias revolucionárias para o seu tempo, nomeadamente quando trabalha o amor e a paixão como atributos biológicos que nos impelem, enquanto espécie, para a reprodução. Esta ideia antecede, muitos anos, o surgimento da Teoria da Evolução Humana de Darwin, num tempo em que ainda não existia sequer a disciplina da psicologia, quanto mais psicologia evolucionária. Deste modo, Schopenhauer retira o peso do indivíduo e coloca-o sobre a humanidade. Não somos únicos, não somos nós que desejamos, é o facto de sermos humanos que nos compele a esse desejo, à "vontade de". Para Schopenhauer somos uma espécie de máquinas biológicas com instruções pré-gravadas das quais não podemos escapar. Somos continuamente levados a querer mais e mais de tudo, a desejar ter ou conseguir, para assim que se consegue o que se desejou, nos deprimirmos até que reiniciamos um novo ciclo de querer e desejo. Schopenhauer escreveu a sua obra máxima, “O Mundo como Vontade e Representação” sobre a vontade e o desejo, e passou toda a sua vida ao redor destes conceitos, o que fez afastar o meu interesse e não chegar nunca a terminar a leitura dessa sua obra maior.  Deixo um excerto da "A Cura de Schopenhauer" que trata a ideia central:

“Todos os temas principais da vida passam pela ousada análise filosófica de Schopenhauer, inclusive o desejo sexual, assunto que os filósofos anteriores evitaram. Ele iniciou a discussão com uma afirmação surpreendente sobre a força e omnipresença desse desejo.

[Schopenhauer] “Depois do amor à vida, o sexo é a maior e mais ativa força e ocupa quase todas as vontades e pensamentos da porção mais jovem da humanidade. Ele é a meta final de praticamente todos os esforços humanos. Exerce uma influência desfavorável nos assuntos mais importantes, interrompe a toda hora as ocupações mais sérias e às vezes inquieta por algum tempo as maiores mentes humanas. (...)

(...) A resposta de Arthur (...) antecipa em um século e meio muito do que iria tratar a psicologia evolucionária e a psicanálise. Ele afirma que não somos guiados pela nossa necessidade, mas pela necessidade da nossa espécie. "Embora os dois envolvidos ignorem, o verdadeiro fim de toda história de amor é gerar uma criança", continua ele. "Portanto, o que realmente dirige o homem é um instinto dirigido para o que é melhor para a espécie, embora o homem pense que procura apenas a intensificação do próprio prazer".”

O problema de Schopenhauer foi a sua resignação à descoberta desta nossa condição. Podemos saber que a nossa biologia nos orienta e predestina, mas sabemos também que a nossa psicologia nos liberta. Somos parte natureza, parte cultura, não somos só uma, nem outra, somos fruto da mistura. Julgo que Yalom acaba dando conta dessa questão ao querer aqui curar Schopenhauer, mas fá-lo de uma forma muito indireta. Gostaria de ter visto uma maior incisão na questão, contudo compreendo que Yalom não pretendia redimir Schopenhauer, nem alterar a História do filósofo. 

Como disse, na abertura do texto, a história de Schopenhauer foi algo que me impressionou, a sua origem familiar, nomeadamente a sua mãe, Johanna Schopenhauer. Pode ler-se a sua pessoa de muitas formas, mas a emancipação realizada após a morte do marido, a sua entrada em grande no mundo das letras alemãs, assumindo a sua posição de mulher, numa altura em que as mulheres não eram aceites nos círculos intelectuais, é impressionante. Aliás, fez-me pensar sobre o quanto da obstinação e lado destemido da personalidade de Schopenhauer não foi herdado da sua mãe, algo que fica patente na forma como chocaram. Por outro lado, um ponto relevante, apesar de nada de novo, é o constatar mais uma vez que a fama e o sucesso da arte nada têm que ver com o valor das obras. Johanna foi uma das mulheres mais lidas na Alemanha enquanto viveu, tendo escrito cerca de 20 livros. Porém, do que escreveu apenas um livro foi traduzido para inglês, e outro para espanhol, sendo muito difícil encontrar livros seus, com a sua obra praticamente esquecida. Já o filho, que enquanto vivo pouco ou nada vendeu, tendo vivido da pequena herança que o pai lhe deixou, tem hoje a sua obra traduzida em dezenas de línguas, continuando a ser editada, impressa e vendida por todo o mundo.

setembro 10, 2020

O problema das redes sociais

Saiu ontem o documentário "O Dilema das Redes Sociais" (2020), na Netflix, que procura dar conta de vários dos problemas que têm sido atribuídos às redes sociais: viciação, invasão de privacidade, propaganda, manipulação, fragmentação de identidade, etc. O protagonista do filme é Tristan Harris que começou por ser responsável pelo design ético da Google, tendo-se demitido para criar a fundação Center for Humane Technology. O filme é relevante, aconselhável a todos os que usam as redes sociais, dos adolescentes aos mais velhos, mas com algum espírito crítico para evitar entrar em estado de alarme.

Para quem trabalha na área nada é dito aqui de novo, mas o que é dito é importante que chegue a todos, e não apenas a quem trabalha no domínio. As pessoas que falam fizeram todas parte destas empresas — Facebook, Google, Twitter, Instagram, Snapchat,... — mas nem tudo o que dizem é tal como nos querem dar a entender, existe algum excesso, alguma falta de enquadramento principalmente de teoria dos media e análise histórica da psicologia humana. Mas no cômputo geral, o filme funciona bem no acendimento de algumas campainhas, podendo ser relevante para uma grande faixa da sociedade que passou a usar estas ferramentas sem compreender como funcionam, sem qualquer noção do que está por detrás daquelas imagens, menus e comentários que a toda a hora solicitam a nossa atenção. 

O discurso alarmista tende ao exageramento das capacidades e potencial, mas aceito-o como discurso que procura gerar uma preocupação societal. Sem essa preocupação dificilmente poderemos levar os políticos a tomar as decisões que são necessárias. Não se compreende como andamos há uma década a pedir regulamentação para estas ferramentas, e tudo continua na mesma. Na Europa criou-se o RGPD, lançaram-se algumas multas, mas pouco mais foi feito. Se temos todo um conjunto de estruturas que regulam os media tradicionais, da rádio à televisão, porque é que ainda não criámos regulação para estas redes sociais? Simplesmente porque não há pressão. 

Repare-se no que aconteceu com a Uber, a pressão dos taxistas tem obrigado os políticos a agir. No caso das redes sociais, a pressão surge apenas pelo lado de algumas das pessoas que trabalham na área, e depois quando se fala de roubo de dados ou do muito dinheiro gerado pelas companhias. Por outro lado, sabemos que não é algo simples ou fácil. A regulação das redes sociais, ao contrário dos media tradicionais, tende a chocar com as liberdades e garantias individuais, que é no fundo o mesmo problema da Uber, por isso é tão complicado legislar. Mas se pensarmos no modo como funcionam os regulamentos dos media tradicionais, esses também chocam com os mesmos direitos, a diferença é que a proibição atua de modo indireto e por isso parece menos intrusivo.

A questão dos sistemas informáticos e os algoritmos desenhados para o engajamento é em si menos relevante, porque não difere daquilo que fazemos quando criamos qualquer obra de arte, quando criamos uma peça musical, filme, livro ou uma peça de teatro, ou um espetáculo de televisão, circo ou ilusionismo. Recorrem-se às técnicas mais eficazes na captação da atenção. Claro que ter pessoas a passar dias inteiros fixados nos sistemas não é bom para qualquer pessoa, menos ainda crianças ou adolescentes, mas aí cabe aos pais atuar. Como tenho defendido no caso dos videojogos, as rede sociais devem seguir o mesmo regime, não proibir mas regrar o tempo. Um adolescente tem de ter tempo para ler, ver cinema, correr, brincar, ouvir música, pintar, etc. etc. não pode estar todo o dia no café virtual do Instagram ou na discoteca virtual do Tik Tok. Por isso o que mais desperta a minha preocupação é a relação com o discurso social, a construção de comunidade sócio-política sobre a qual as redes sociais intervêm cada vez mais.

No passado recente o discurso comunitário era construído quase em exclusivo pelos media e os políticos. As redes sociais vieram dar voz, não a todas as pessoas, mas a todas as ideias, e é aí que surge aquele que considero ser o principal problema. Quando empresas estão dispostas a promover qualquer ideia em função de ganhos financeiros. Onde fica a chamada responsabilidade social das empresas? Como é que podemos aceitar que estas empresas promovam textos e vídeos que debitam informação falsa, errada, que busca manipular a percepção de realidade de outras pessoas? O problema não são os algoritmos, os seus truques de engajamento. Porque esses são bons para mim quando procuro informação relevante, como quando quero comprar um livro e os sistemas me apresentam os livros próximos. Agora quando tenho o Facebook a apresentar-me mais e mais informação sobre a Terra Plana apenas porque vi uma qualquer imagem relacionada, não faz sentido. 

Repare-se que o problema não é alguém publicar um texto dizendo que a Terra é plana, mas é o facto das redes sociais, para ganharem dinheiro, aumentarem a distribuição desse texto. Isto está errado, porque quando os algoritmos apresentam esse conteúdo não o fazem porque foi pedido conscientemente por alguém, mas antes porque a empresa quer apresentá-lo para manter a pessoa agarrada ao sistema, por forma a conseguir enviar-lhe mais e mais publicidade. Ou seja, não se trata de proibir ou censurar, mas trata-se de impedir a manipulação empresarial de informação que se sabe ser falsa e nefasta para a sociedade que queremos.

Todos nós experienciamos o poder do algoritmo quando publicamos duas coisas distintas e verificamos que uma tem o dobro de likes da outra. Sabemos que não é por nossa vontade, mas também não é por acaso, é antes porque o algoritmo do Facebook considera um conteúdo melhor do que outro e por isso apresenta-o a muitas mais pessoas, aumentando a sua visibilidade e inevitavelmente o número de likes. Agora não podemos aceitar que o algoritmo considere mais uma notícia falsa, que por ser chocante tem enorme potencial de captar atenção, e a apresente a mais pessoas do que uma notícia verdadeira que é menos chocante. Mas isto só vai mudar quando for regulado, é de uma ingenuidade tremenda andar a fazer pressão sobre as redes sociais para que elas se auto-regulem quando elas são empresas cotadas em bolsa.

A mensagem no final do documentário é, do meu ponto de vista, para ser levada à letra. Desliguem as notificações. Sempre que comprarem um novo telemóvel ou computador, comecem por desativar todas as notificações de todas as Apps, mantenham apenas as das chamadas e SMS. Se não o fizerem, abrem a porta a que o vosso tempo seja regulado pelo telemóvel e não por vocês.

setembro 09, 2020

A publicação de "Engagement Design" (2020)

O meu mais recente livro, "Engagement Design: Designing for Interaction Motivations", foi publicado a meio de março 2020, exatamente aquando do início da quarentena provocada pela pandemia COVID-19. Tinha intenção de dar conta da publicação do mesmo no blog e nas redes sociais, mas com a quarentena e todos os impactos da mesma acabou por ser algo sempre protelado. Aproveitando agora o início do novo ano letivo fiz um pequeno texto sobre a publicação do livro, focado na génese e motivação por detrás da sua escrita, assim como na inovação da proposta que apresenta.

Este livro começou a ser germinado no ano 2014/2015, como obra de introdução ao design de interação, com um forte enquadramento no domínio da Interação Humano-Computador (IHC), na altura com o intuito de publicar o mesmo na editora portuguesa FCA, onde tinha publicado o "Videojogos em Portugal: História, tecnologia e arte" (2013). Contudo, pouco depois de anunciar que ia escrever o livro dei por mim dentro de uma espiral de acumulação de material sobre a área, não conseguindo parar de colecionar obras, textos, capítulos, modelos, projetos... Quanto mais informação acumulava mais me questionava sobre a relevância de escrever um livro introdutório que iria ser igual a tantos outros, mesmo que sendo em português, língua em que existiam parcos recursos.

Foi apenas quando resolvi escrever o primeiro capítulo que me dei conta da minha insatisfação com a área, em particular na aplicação das metodologias do design de interação ao design de jogos e em geral ao design de media interativos. Tinha ocorrido uma mudança grande no discurso da IHC, com o foco a mudar da Usabilidade para a Experiência, mas quanto mais lia sobre a experiência e o tão em voga UX, mais me desolava. Na verdade, parecia-me que pouco tinha efetivamente mudado. A experiência era algo tão vago e ambíguo que parecia servir apenas de moldura, mantendo-se em uso muitas das mesmas metodologias que eram utilizadas nos estudos da usabilidade.

Foi então que me dei conta da necessidade de concretizar o conceito de Experiência, e ao fazê-lo acabei chegando ao conceito de Engajamento. O que importava a quem discutia a Experiência era que essa fosse significativa para os utilizadores, mas o significado em si não podia ser medido, sequer antecipado, já que cada indivíduo tem um mundo de experiências prévias que contaminam sempre qualquer nova experiência. Por isso era preciso trabalhar algo mais formal que fosse generalizável, e o engajamento permitia isso mesmo. Ao trabalhar o design para o engajamento podíamos aperfeiçoar a experiência sem depender dos elementos subjetivos, porque estávamos a adequar a forma estética, funcional e de criação de significado a um conjunto de generalizações humanas. 

Para chegar a generalizações relevantes no modelo tive de trabalhar perfis e esses acabariam por ser desenhados em função da personalidade, de modo que os traços de personalidade humana acabariam por traçar a base daquilo que viria a definir no livro como "streams of engagement" (fluxos de engajamento). Ou seja, usamos a personalidade para generalizar o design da interação, a partir do que podemos, nas fases subsequentes, aprofundar em função da resposta dos utilizadores particulares de cada universo cultural, e em função do tema concreto do artefacto a desenvolver. Para ter uma noção rápida do que o livro pretende e como pode ser utilizado, podem ler o texto “Applying the Engagement Design Model” que fiz para acompanhar a saída do livro.

Com o capítulo escrito, que acabaria por ser o segundo do livro, enviei a proposta para a Springer, em inglês, e o retorno acabou sendo imensamente positivo, o que me motivou a avançar com os restantes capítulos e a criação do modelo final proposto no livro. Ou seja, o livro que tinha começado como estudo introdutório a uma disciplina, acabaria por tornar-se num livro de investigação sobre um tema e apresentação de um novo modelo de design não apenas teórico mas aplicável. Quando terminei o livro, enviei o mesmo ao Jeffrey Bardzell que fez o favor de escrever o prefácio que acabaria por surgir depois no livro.

Claro que tudo isto é passado, o meu interesse é agora procurar aplicar e melhorar o modelo proposto nos projetos a desenvolver no DigiMedia, e que possa servir a comunidade científica na busca por uma melhor compreensão do próprio design de interação e de experiência. Com o feedback que for recebendo, continuar a trabalhar para otimizar o modelo, nomeadamente nos diferentes domínios do design de interação em que possa vir a ser aplicado.

setembro 03, 2020

Tragam os Corpos (Thomas Cromwell, volume 2)

A saga continua com grande desenvoltura, a descrição e o enredo funcionam em torrente tornando a leitura deste segundo livro muito mais rápida. Ajuda também o facto de Mantel ter aligeirado o labirintismo da escrita, é tudo bastante mais claro, ou então já aprendemos a respirar nas suas malhas. Por outro lado, fiquei um pouco desgostoso com a primeira parte na qual Mantel parece querer corrigir algum exagero do primeiro tomo no que toca a pessoa de Thomas More, e acaba por apontar o dedo a Cromwell. Passa mesmo a ideia que Mantel parece querer rever o que disse, talvez por ter sofrido duras críticas dos historiadores, não sei, mas sei que o seu Cromwell perde brilho, torna-se menos visionário e mais vingativo, afastando-me dele a ponto de a meio do livro dizer para mim que já não leria o terceiro. Contudo a segunda parte funciona num crescendo tão grande, imparável em direção à apoteose final, fazendo esquecer tudo o que de menos bom tinha encontrado.
"O Livro Negro" é a tradução portuguesa de "Bring Up the Bodies"

Contribui talvez para esta minha percepção mais crítica de Cromwell e benevolência com More, o facto de entre os dois livros ter revisto o filme "A Man for All Seasons" (1966) no qual Cromwell é muito mal tratado, e More é elevado a patamar de santo. Mas tudo isso se apaga porque este segundo tomo já não pertence a More mas a Boleyn. É ela quem sobe ao cadafalso, e assim percebemos, pela lógica, quem subirá ao cadafalso no final do terceiro volume.
Tower of London, local central da ação desta saga, para onde eram enviados os nobres para aguardar julgamento

Este livro tem as suas nuances, momentos altos, tal como por exemplo a discussão política sobre o que deve ou não deve fazer o Estado:

“It was too much for the Commons to digest, that rich men might have some duty to the poor; that if you get fat, as gentlemen of England do, on the wool trade, you have some responsibility to the men turned off the land, the labourers without labour, the sowers without a field. England needs roads, forts, harbours, bridges. Men need work. It’s a shame to see them begging their bread, when honest labour could keep the realm secure. Can we not put them together, the hands and the task? But Parliament cannot see how it is the state’s job to create work. Are not these matters in God’s hands, and is not poverty and dereliction part of his eternal order? To everything there is a season: a time to starve and a time to thieve. If rain falls for six months solid and rots the grain in the fields, there must be providence in it; for God knows his trade. It is an outrage to the rich and enterprising, to suggest that they should pay an income tax, only to put bread in the mouths of the workshy. And if Secretary Cromwell argues that famine provokes criminality: well, are there not hangmen enough?”

Mas talvez o ponto mais alto seja mesmo a descrição que Cromwell faz do modo como se gere a comunicação com um Rei, no caso particular com Henry VIII é genial. Claro que o génio aqui é Mantel, a forma como ela planeia e preenche e todas as frentes, e imagina o xadrez político em redor do Rei:

“As a child, a young man, praised for the sweetness of his nature and his golden looks, Henry grew up believing that all the world was his friend and everybody wanted him to be happy. So any pain, any delay, frustration or stroke of ill-luck seems to him an anomaly, an outrage. Any activity he finds wearying or displeasant, he will try honestly to turn into an amusement, and if he cannot find some thread of pleasure he will avoid it; this to him seems reasonable and natural. He has councillors employed to fry their brains on his behalf, and if he is out of temper it is probably their fault; they shouldn’t block him or provoke him. He doesn’t want people who say, ‘No, but…’ He wants people who say, ‘Yes, and…’ He doesn’t like men who are pessimistic and sceptical, who turn down their mouths and cost out his brilliant projects with a scribble in the margin of their papers. So do the sums in your head where no one can see them. Do not expect consistency from him. Henry prides himself on understanding his councillors, their secret opinions and desires, but he is resolved that none of his councillors shall understand him. He is suspicious of any plan that doesn’t originate with himself, or seem to. You can argue with him but you must be careful how and when. You are better to give way on every possible point until the vital point, and to pose yourself as one in need of guidance and instruction, rather than to maintain a fixed opinion from the start and let him think you believe you know better than he does. Be sinuous in argument and allow him escapes: don’t corner him, don’t back him against the wall. Remember that his mood depends on other people, so consider who has been with him since you were with him last. Remember he wants more than to be advised of his power, he wants to be told he is right. He is never in error. It is only that other people commit errors on his behalf or deceive him with false information. Henry wants to be told that he is behaving well, in the sight of God and man. ‘Cromwell,’ he says, ‘you know what we should try? Cromwell, would it not reflect well on my honour if I…? Cromwell, would it not confound my enemies if…?’ And all these are the ideas you put to him last week. Never mind. You don’t want the credit. You just want action.”

Enquanto lia estes livros fui também pensando o quão errado estamos quando pensamos que ser Rei, ou nobre, significa poder fazer tudo o que se quer. Ter acesso a tudo como mais ninguém. Ser nobre implica um tal espartilho de responsabilidades sociais que não deixa espaço para mais nada. Qualquer passo ao lado pode ditar a perda dessa nobreza, e o fim do aparente sonho cor-de-rosa. Ao longo destes dois livros percebemos como Henry VIII queria apenas um filho varão, mas toda a sua vontade, dinheiro e súbditos não eram suficientes para lhe dar o que mais queria. Percebemos também que Boleyn foi mais do que um capricho, foi uma necessidade imposta pelo espartilho das obrigações de ser-se Rei. Aliás, isto mesmo parece ter sido o que esteve na base da recente saída de Harry da monarquia britânica, pois se lá continuasse teria de obedecer a um conjunto tão apertado de protocolos que dificilmente se poderia considerar como uma pessoa livre.

Anne Boleyn in the Tower (1835) de Édouard Cibot

Mantel é brilhante na escrita, mas são os rasgos psicológicos que nos agarram que nos fazem sentir aquele mundo-história e nos permitem não só viajar no tempo mas aprender com as vidas de pessoas que à partida nada teriam que ver connosco. São homens e mulheres, não são deuses, carregados de fragilidades, receosos do dia de amanhã como qualquer outro mortal que foi posto neste mundo para todos os dias lutar pela sua preservação e sobrevivência.

Nota final para a tradução. A tradução do primeiro livro — Maria Beatriz Sequeira — está primorosa, a do segundo livro — Miguel Freitas da Costa — está boa, não posso dizer que seja inferior, mas senti-a diferente, não sei o quanto terá que ver com as próprias alterações introduzidas por Mantel no seu discurso. Mas se puxo este assunto é porque me desgostou a tradução do título. Se no primeiro se manteve um titulo inglês, ainda que sendo um nome, quem é que os autorizou a mudar o nome da obra criada por Mantel? Se em inglês se intitula "Bring Up the Bodies" e a frase aparece traduzida quase no final do livro como "Tragam os Corpos", porque é que o livro em português vai assumir o título de um capítulo muito anterior — O Livro Negro. Este título diz respeito a um conjunto de códigos de conduta real que ainda que imensamente relevantes, e relacionados com as tais questões de protocolo, mas distintas daquilo que é o objeto de destaque escolhido pela autora, e que está mais focado na apoteose por ela criada? Não se compreende, não deixando de irritar esta vontade de se procurar sobrepor ao autor.

Anne Boleyn, a única desta saga a ser deacapitada com espada, uma suposta clemência do Rei (autor desconhecido)

agosto 27, 2020

Vamos morrer sem os poder ler

A artista escocesa, Katie Paterson, criou, em 2014, o projeto Future Library com o apoio da cidade de Oslo, Noruega. Um projeto criado enquanto obra de arte pública e que consiste numa ideia revolucionária e altamente instigadora que vai decorrer ao longo dos próximos 100 anos, entre 2014 e 2114. A obra pretende colecionar trabalhos originais, nunca publicados, de escritores internacionais, um por ano, e preservá-los fechados até 2114. Para o efeito foi plantada uma floresta com mil árvores que serão usadas daqui a 100 anos para imprimir todos os 100 livros, e todos os anos é escolhido um autor de renome para escrever um novo livro para a biblioteca.

Os autores são selecionados pela artista, a quem é dado um ano para criar o texto, que pode ter o tamanho que quiserem, e entregá-la à biblioteca. Assim em 2014 Margaret Atwood iniciou o processo, tendo entregue o seu livro em 2015. A antologia completa começou já a ser vendida, para já num lote reduzido de mil certificados, no valor de cerca de 1000 euros. 

2014 – Margaret Atwood, Scribbler Moon

2015 – David Mitchell, From Me Flows What You Call Time

2016 – Sjón, As My Brow Brushes On The Tunics...

2017 – Elif Shafak, The Last Taboo

2018 – Han Kang, Dear Son, My Beloved

2019 – Karl Ove Knausgård, ainda não entregue devido ao COVID_19

2020 - Ocean Vuong, selecionado este ano

Deixo uma breve perspectiva sobre a ideia para o projeto que nos pode fazer refletir sobre tantas e tantas ideias: sobre os livros; as árvores que vão ser usadas; nós que não estaremos cá e que nunca os poderemos ler; e aqueles que lerão aquilo que nunca ninguém pôde antes ler...

“It is less egotistical than regular publishing too. So much of publishing is about seeing your name in the world, but this is the opposite, putting the future ghost of you forward. You and I will have to die in order for us to get these texts. That is a heady thing to write towards, so I will sit with it a while.”

“If you look at any literary epoch, who gets carried forward in time is a mystery, still. Melville sold about 1,000 copies of Moby-Dick and now he is the totem of American fiction. This is an antidote, to say regardless what happens in market trends, we have a record of what humans have found valuable, the voices we were interested in, for better or worse." Ocean Vuong, entrevista ao Guardian, 19.8.2020 

Deixo um vídeo, de 2014, no qual a artista explica mais promenorizadamente o que pretende com a sua obra: 

agosto 23, 2020

Thomas Cromwell, volume 1

“Wolf Hall” (2009) de Hillary Mantel, à semelhança de “Guerra e Paz” (1868) de Leo Tolstói, apresenta-se como ficção histórica, no sentido em que oferece primazia à criação de um mundo-história ficcional construído sobre alicerces de factos reais. O cenário escolhido por Mantel é o do reinado de Henry VIII, que ficou conhecido, além do divórcio com Catarina e o casamento, à revelia do Papa, com Anne Boleyn, por impor a Reforma Protestante em Inglaterra, terminando com a subjugação da coroa britânica a Roma, no século XVI. Iniciada na Alemanha por Lutero, a Reforma encontraria em Inglaterra dois rivais: Thomas More contra, Thomas Cromwell a favor. Mantel resolveu ir contra à corrente e criar o mundo de “Wolf Hall” a partir dos olhos da pessoa mais mal-amada, Thomas Cromwell, produzindo uma obra de grande relevo estético e interesse histórico. Este livro é apenas o primeiro volume de uma trilogia, mas podemos ver nele, desde já, uma forma de escrita única assim como uma representação bastante audaz da pessoa de Thomas Cromwell.

Thomas More e Thomas Cromwell, ambos pintados por Hans Holbein, o primeiro em 1527, o segundo em 1533

A Forma Escrita

Começando pela escrita, esta é não-linear, seguindo Joyce, Woolf ou Faulkner, mas não é fluxo de consciência, é algo que podemos aproximar mais de Lobo Antunes, no sentido em que o desenvolvimento narrativo se faz por cenas, aparentemente desligadas, que vão ganhando forma apenas à medida que vamos avançando e interligando as mesmas, como peças de puzzle, permitindo-nos reconstruir, mentalmente, e compreender o que nos está a ser apresentado. 

Seria suficiente para elevar o patamar de exigência à leitura, mas Mantel introduz ainda variações no verbo da narração e no ponto de vista. Uma narrativa é uma história que aconteceu, é passado, mais ainda quando falamos de há 500 anos atrás, no entanto Mantel narra tudo no tempo presente. Não diz “ele fazia” ou “atravessaram o rio”, mas antes diz “ele faz” ou “estão a atravessar”. A isto junta o facto de na grande maioria das vezes em que se quer referir a Thomas Cromwell, que serve o nosso ponto de vista na terceira-pessoa, se lhe referir apenas como “Ele”, o que com múltiplos personagens em cena baralha qualquer leitor, a não ser que tenha em mente que o “Ele” é sempre, em 95% das vezes, Thomas Cromwell.

Diria assim que mais do que a não-linearidade, é a ação sempre no presente e a menção ao protagonista, quase encriptada, como “ele”, que tornam a leitura laboriosa. Mas por outro lado, é também essa forma verbal e a constante referência a “ele” que criam uma forma de contar única que confere ao texto um maior poder imersivo. Por um lado, o presente cola-nos ao momento da leitura, e prende a nossa atenção perante algo que está a acontecer ali e agora, enquanto o “ele”, cria a sensação de estar sempre presente, ao pé de nós. 

Claro que para o aumento de imersão, ou de engajamento, contribui a dificuldade da leitura e isso é algo que a própria não-linearidade procura fazer. Os vários estudos que têm sido realizados dão conta de maior memorização e atenção das pessoas ao que é dito quando o texto é mais difícil de ler ou de compreender. A razão prende-se com a necessidade de despender mais energia na descodificação o que acaba por tornar o momento mais envolvente e ao mesmo tempo mais fácil de registar na memória.

O Olhar de Thomas Cromwell

É inevitável começar por ligar a profissão de Cromwell com a inicial de Mantel, ambos advogados, uma profissão ligada à litigação, ao lidar com as palavras e os múltiplos sentidos dados pelas pessoas, algo que fica bem presente no seguinte excerto:

“When you are writing laws you are testing words to find their utmost power. Like spells, they have to make things happen in the real world, and like spells, they only work if people believe in them.”

Mas mais importante do que isso é o facto de Thomas Cromwell ter nascido como um pobre e desconhecido, e desde essa condição ter chegado, sozinho, ao cargo mais poderoso do país. Um verdadeiro “self-made man”, um hino à meritocracia. Cromwell aprendeu muito, enquanto jovem, percorrendo metade da Europa. Tornou-se advogado, contabilista, poliglota e era dono de uma memória invejável, como se resume a determinada altura:

“It is said he knows by heart the entire New Testament in Latin, and so as a servant of the cardinal is apt – ready with a text if abbots flounder. His speech is low and rapid, his manner assured; he is at home in courtroom or waterfront, bishop's palace or inn yard. He can draft a contract, train a falcon, draw a map, stop a street fight, furnish a house and fix a jury. He will quote you a nice point in the old authors, from Plato to Plautus and back again. He knows new poetry, and can say it in Italian. He works all hours, first up and last to bed.”

Cromwell foi um polimata, um renascentista, alguém extremamente dotado com múltiplas competências, só assim se explica que tenha conseguido elevar-se numa hierarquia na qual o sangue tudo determinava. Se não tinhas brasão de família, não existias, simplesmente era impossível ser-se considerado para o que quer que fosse. No entanto Cromwell conseguiu tornar-se no homem mais temido de toda a Inglaterra. A sua capacidade para persuadir os outros a fazerem o que pretendia era infindável, e não se fazia de meras palavras, mas de um conjunto de estratégias de comunicação, verbais e não verbais, assim como de silêncios, ações e inações. Cromwell era aquele que tudo observava, compreendia, calculava e exprimia. A sua visão do mundo era como a de um jogador de xadrez, sempre em jogo.  

“One of the things I’m really exploring is the universal question of what’s luck? What’s fate? Does anybody make their own luck? How far can you write your own story? And he’s someone whose whole career ought not to be possible. But at some point in early middle age, he just grabs the pen and starts writing it.” [Mantel em entrevista ao The Guardian, 22.2.2020]

Este modo de estar é o que explica a forma de escrita adotada por Hillary Mantel. A não-linearidade e o tempo presente, não são meras decorações estéticas, a forma reflete a personalidade de Cromwell, alguém que era quase impossível de descodificar, alguém que estava sempre presente quando era preciso, alguém que nunca era o centro, mas era sempre “ele” que estava lá para o que fosse necessário. A memória e o conhecimento imensamente detalhado de todos e tudo, tornou-o numa peça central, primeiro para o cardeal Wolsey, e depois para o rei Henry VIII, era ele quem lhes valia, sendo muito mais do que um braço direito. Como disse Mantel em entrevista:

"I am interested in the fact that in this era, kingship is coming into its full glory, in England and elsewhere; kings are insisting on their godlike status, their divine appointment. But who really has the power? Increasingly, it’s not the man with the sceptre, it’s the man with the money bags.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

Por outro lado, a personalidade e a ação de Cromwell, tal como trabalhada por Mantel, abre todo um novo mundo de perspectivas, mostrando uma Inglaterra a caminho do humanismo, veja-se mais este excerto da entrevista:

 “When we look at what connects that age with this, I am interested in Cromwell’s radicalism; in the tentative beginnings of the notion that the state might take a hand in creating employment, that the economic casualties of the system deserved practical help; that poverty has human causes and is preventable, rather than being a fate ordained by God. I am disturbed to think that we might be going backward in this regard, back to stigma and fatalism and complacency.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

A Rivalidade entre More e Cromwell

Se não bastasse o trabalho realizado por Mantel sobre Cromwell, o outro ponto historicamente inovador relaciona-se com a apresentação de Thomas More que é quem nos serve o climax deste primeiro volume. More é relembrado como o contrário de Cromwell, também advogado, mas um grande académico, respeitado por toda a universidade Europeia, autor de "Utopia" (1516). Dono de uma dignidade irrevogável, morreu como Sir, tendo sido canonizado em 1935, sendo hoje referenciado como Santo. Para o público em geral, o filme de 1966 "A Man for All Seasons" dá conta da importância da sua pessoa. 

Contudo, o interessante da abordagem de Mantel é quase virar a leitura de ambos os Thomas, ao contrário. Mantel dá conta de atos terríveis cometidos por More, de verdadeira inquisição, com a defesa e aplicação de tortura e fogueiras de hereges para todos os que decidissem abraçar a Reforma Protestante. No fundo, a grande questão desta obra está longe de ser o divórcio e a concubina, mas é antes a Igreja, Inglaterra e o humanismo. A humanização da vida pública que deixa para trás os misticismos religiosos. Repare-se como Mantel dá conta das acusações a Cromwell de que ele teria destruído os grandes mosteiros e conventos ingleses:

"‘If you ask me about the monks, I speak from experience, not prejudice, and though I have no doubt that some foundations are well governed, my experience has been of waste and corruption. May I suggest to Your Majesty that, if you wish to see a parade of the seven deadly sins, you do not organise a masque at court but call without notice at a monastery? I have seen monks who live like great lords, on the offerings of poor people who would rather buy a blessing than buy bread, and that is not Christian conduct. Nor do I take the monasteries to be the repositories of learning some believe they are. Was Grocyn a monk, or Colet, or Linacre, or any of our great scholars? They were university men. The monks take in children and use them as servants, they don't even teach them dog Latin. I don't grudge them some bodily comforts. It cannot always be Lent. What I cannot stomach is hypocrisy, fraud, idleness – their worn-out relics, their threadbare worship, and their lack of invention. When did anything good last come from a monastery? They do not invent, they only repeat, and what they repeat is corrupt. For hundreds of years the monks have held the pen, and what they have written is what we take to be our history, but I do not believe it really is. I believe they have suppressed the history they don't like, and written one that is favourable to Rome.’"

A questão que move Cromwell não é teológica, saber se Deus existe ou não, se o Papa está investido de poderes divinos ou não. Cromwell não foi um académico, era advogado e contabilista. Mais, ele era um self-made man, alguém vindo do nada, ciente do que esse nada representava. O que o movia era conseguir obter mais e melhor, mas não apenas para si. Cromwell ajuda imensas pessoas, financeiramente e de muitas outras formas. Cromwell traz para casa crianças que perderam os pais, ou que se encontram abandonadas, mulheres perdidas, dá-lhes um teto, não para as explorar, mas para as fazer florescer, como diz a certa altura:

 “You learn nothing about men by snubbing them and crushing their pride. You must ask them what it is they can do in this world, that they alone can do.”

Cromwell fez isto porque apreendeu o mundo que habitava como ninguém, compreendeu que o mundo era muito mais do que aquilo que a Igreja queria vender, ou que a cor do sangue corrente nas veias era igual para todos. Cromwell elevou-se ao compreender que aquilo que fazia mexer o mundo era algo muito mais direto e efetivo do que o sangue ou a espiritualidade, como faz neste excerto: 

“‘They are my tenants, it is their duty to fight.’
But my lord, they need supply, they need provision, they need arms, they need walls and forts in good repair. If you cannot ensure these things you are worse than useless. The king will take your title away, and your land, and your castles, and give them to someone who will do the job you cannot.’
‘He will not. He respects all ancient titles. All ancient rights.’
‘Then let's say I will. Let's say I will rip your life apart. Me and my banker friends.
How can he explain that to him?’
'The world is not run from where he thinks. Not from his border fortresses, not even from Whitehall. The world is run from Antwerp, from Florence, from places he has never imagined; from Lisbon, from where the ships with sails of silk drift west and are burned up in the sun. Not from castle walls, but from counting houses, not by the call of the bugle but by the click of the abacus, not by the grate and click of the mechanism of the gun but by the scrape of the pen on the page of the promissory note that pays for the gun and the gunsmith and the powder and shot.'”


Claro que toda esta visão magnânima de Cromwell faz levantar muitas dúvidas, e alguns estudiosos referem mesmo que comporta falsidade. Numa entrevista ao The Guardian, John Guy, um dos mais reputados historiadores da época dos Tudor, ataca Mantel, aceitando as suas qualidades como escritora mas desprezando a visão histórica por si apresentada. Para John Guy, Mantel deixou-se levar por relatos sem credibilidade, de pessoas que tinham interesses e não diziam a verdade, mas apenas o que lhes interessava. Por outro lado, se ouvirmos outros académicos, como Diarmaid MacCulloch, vamos perceber o quão certa Mantel pode estar. Na verdade, Mantel não é historiadora, nem se assume enquanto tal, mas se existe algo que este seu livro demonstra é o modo como a monarquia e o Estado funcionavam, a política sem si, o quanto era decidido por jogadas assentes na mentira, bluff e suborno, e o quanto tudo isso faz parecer tudo uma grande ilusão, com o sentido da verdade a esfumanr-se.


Sendo a leitura laboriosa, deixo algumas ligações que ajudarão a preparar a mesma:

The World of Wolf Hall, A reading guide to Hilary Mantel’s Wolf Hall and Bring Up the Bodies,  2020

A Man for All Seasons, 1966, de Fred Zinnemann (trailer)

The Other Boleyn Girl, livro de Philippa Gregory 2001 ou filme 2008 com Natalie Portman e Scarlett Johansson (trailer).

. Thomas CromwellThomas More e Henry VIII

. Reforma protestante

. A BBC fez uma série (2015) a partir do livro, pode valer a pena ver no final.


Nota: texto usado no original, em inglês, por facilidade de transcrição. Lido na versão portuguesa, da Editora Civilização.

agosto 15, 2020

Minha Ántonia (1918)

Foi o meu segundo livro de Willa Cather (tinha lido "A Casa do Professor") e foi mais uma excelente leitura. A autora possui uma forma particular de dar a ver, sentimos ao lê-la como se estivéssemos diante de uma tela em movimento, em que tudo acontece num tempo específico próprio da ficção contada, delimitada pelo que a autora quer dizer e mostrar. Nem sempre a emoção segue o brilho da poética escrita, mas isso é assim porque Cather claramente restringe a emocionalidade. Facilmente poderia dramatizar e elevar o sentido de tragédia, mas não o faz por opção, procurando manter assim a sua tela delimitada e oferecendo-nos um recorte muito particular de uma época e lugar.

Este trabalho de Cather juntamente com "Butcher's Crossing" de John Williams levaram-me a conhecer um Oeste americano muito diferente daquele que tinha aprendido a amar em criança vendo filmes intermináveis de cowboys. São duas janelas muito distintas sobre um mesmo território e conjunto de pessoas, mas que se complementam na perfeição.

Planícies do Nebraska, para onde migraram muitos europeus da Escandinávia e da Rússia

Deixo um excerto brilhante:

"Anos mais tarde, quando os dias de pastagem a céu aberto tinham terminado e a erva vermelha fora sistematicamente lavrada até quase ter desaparecido da pradaria; quando todos os terrenos se encontravam vedados e as estradas deixaram de ser completamente desorganizadas e passaram a seguir os limites estabelecidos entre os terrenos, a campa do Sr. Shimerd continuava lá, rodeada por uma vedação de arame já meio frouxa e com uma cruz de madeira pintada de branco. Tal como o meu avô previra, a Sra. Shimerd nunca chegara a ver as estradas passarem por cima da cabeça dele. A estrada que vinha do norte curvava ligeiramente nesse lugar a este e a estrada que vinha do oeste desviava-se um pouco para sul; pelo que a campa, com a sua vegetação vermelha alta que nunca era cortada, mais parecia uma pequena ilha; e no lusco-fusco, sob uma Lua Nova ou um céu estrelado, as estradas de terra costumavam parecer pequenos rios cinzentos fluindo ao largo da mesma. Aquele lugar comovia-me e era o meu sítio favorito em toda a região. Encantava-me a superstição obscura, a intenção expiatória que colocara a sepultura nesse lugar; e acima de tudo adorava o espírito que não pudera cumprir a sentença — o erro da definição dos limites dos terrenos, a clemência das brandas estradas de terra ao longo das quais as carroças com destino a casa ribombavam depois do pôr do sol. Estou certo de que nunca um condutor cansado passara pela cruz de madeira sem dizer uma prece por quem ali dorme."

Willa Cather (1918) “Minha Antonia” P.85