Gosto de colagem, mas não gosto da colagem. Expandindo, gosto do processo criativo por detrás da colagem usada nas artes visuais, mas raramente me entusiasmo com as obras resultantes, ficando-me pelo prazer que retiro da apreciação dos processos criativos. Com “Outono” (2016) de Ali Smith, aconteceu-me o mesmo, e por isso dei por mim a refletir sobre as técnicas e objetivos da colagem enquanto terminava a sua leitura.
O tradutor, Manuel Alberto Vieira, não surge destacado na capa por acaso, fez um excelente trabalho, capaz de converter o impacto da lírica em inglês para português.
A colagem é um processo ancestral, apesar de cunhado apenas nos tempos do Modernismo, já que só nessa altura ganha relevo, porque ganha adeptos que lhe dão esse relevo, tais como Georges Braque e Pablo Picasso. Para isso contribui também a revolução que decorria, por essa altura, em redor do significado da arte, dos seus criadores, técnicas e acima de tudo objetivos. Mas contribui também os efeitos da revolução industrial que veio permitir um controlo muito mais fino dos distintos elementos, pelas diferentes colas e vernizes fundamentais na sustenção das diferentes técnicas. Neste sentido temos a procura do Novo junto com o Poder do industrial, e por isso não admira que a colagem assente num processo industrial de montagem, ou como viria a ser definido mais tarde, de assemblagem. Ou seja, juntar diferentes partes de materiais e formas com vista a criar um novo todo.
Em “Outono” a protagonista Elisabeth é professora de história de arte, tendo realizado uma tese sobre uma artista real, Pauline Boty [1938-1966], uma das poucas artistas britânicas a trabalhar o domínio da Pop Art, seguindo as passadas de Andy Warhol. Smith poderia ter-se ficado pela referência, mas não o faz, Boty ganha um papel central, tornando-se não apenas protagonista, mas ao mesmo tempo uma influência maior nos temas discutidos, e mais relevante ainda, do meu ponto de vista, na técnica literária.
Assim, se ao começar a leitura me deslumbrei com a lírica incutida, aos poucos fui detetando que a poética de Smith não assumia um caráter regular, que não era só o tempo que variava terrivelmente, o discurso eram discursos que mudavam de tom, os temas salpicavam de tudo um pouco, e a beleza rítmica nem sempre emergia. A meio do livro comecei a enfastiar-me, comecei a desprender-me, ao mesmo tempo que tentava compreender o que estava a acontecer, dizendo para mim próprio, “tudo isto não passa de um amontoado de eventos presos por fita cola”! E então fez clique, compreendi o que Smith estava a tentar fazer, o seu estilo não era só distinto e novo envolvido por qualidades poéticas, tinha um propósito, Smith seguia as pegadas da sua protagonista, Boty, e criava assim uma espécie de colagem literária.
"54321" (1963), é uma das obras de Pauline Boty mais citadas ao longo de "Outono"
Podemos pensar que não é bem a mesma coisa, já que a colagem escrita não é nova, e mais, é algo ligeiramente distinto. Quantos experimentos não foram já desencadeados a partir da mescla de múltiplos textos distintos, por vezes feitos por múltiplos autores ou em múltiplas épocas distintas, mas com o objetivo de criar uma obra una. Aliás, o que é “Ulisses” (aqui analisado) se não uma grande colagem literária de estilos de escrita? Mas Joyce assume essa colagem, separa, para que não restem dúvidas, os estilos em capítulos. Smith não o faz, Smith nunca assume a colagem. Mas olhando para a arte de Boty, o que vemos é exatamente isso, colagem não assumida. Repare-se como a colagem em Boty existe não existindo, ou seja, o que temos é uma técnica única (pintura a óleo) numa tela, da qual brota uma imagem que assume características da “colagem”. Ou seja, os elementos pertencem a outros materiais (fotografia, jornais, etc.) mas esses são aqui reconstruídos, se separados na proveniência autoral e material, aqui surgem juntos porque redesenhados sem recurso material aos originais. Do mesmo modo, Smith seleciona e corta múltiplos elementos distintos que insere no seu discurso por recurso a mudanças no tempo, espaço, e vozes distintas assumidas pela narração (o discurso indireto livre, tão amado pelo Modernismo).
"It's a Man's World I" (1965) de Pauline Boty
"It's a Man's World II" (1965) de Pauline Boty
Neste sentido, é muito interessante a desconstrução que Smith faz da obra de Boty, de que aqui realço o destaque dado à tela desaparecida, "Scandal '63" (ver abaixo), na qual surge pintada uma fotografia, tornada icónica, de Christine Keller, a figura central do escândalo britânico Profumo (recomendo a visualização do filme "Scandal" de 1989 para compreender o caso). Dessa tela sobrou apenas uma prova da sua existência, uma fotografia (ver abaixo), mas o mais interessante é que nela, Boty não recorre a fotografia icónica (ver abaixo), mas antes a uma variante dessa. Ou seja, Boty terá tido acesso aos negativos da sessão fotográfica, tendo escolhido uma muito próxima, mas distinta (ver abaixo). Deste modo, Smith não apenas fictiona mas aproveita para lançar leituras interessantes sobre a arte de Boty. Numa nota lateral, aproveito para dizer que conhecer, ou procurar informação sobre o escândalo de 63, sobre a artista, tal como estar por dentro do sucedido com a campanha do Brexit é central para conseguir ligar os distintos elementos que Smith vai assemblando ao longo das páginas.
A fotografia que nos mostra Boty segurando a tela desaparecida "Scandal '63" em 1963.
A fotografia icónica de Christine Keller, figura central do escândalo de 1963, por ser amante, aparentemente ao mesmo tempo, do Secretário de Estado de Guerra, John Profumo, e de um espião russo, Yevgeny Ivanov.
Os negativos originais da sessão fotográfica de Keller, em que se pode ver a imagem selecionada por Boty para a sua tela (a segunda na vertical, mais à esquerda).
Mas, como dizia na abertura, se adorei compreender o processo criativo, o resultado não me entusiasmou, e não porque a escrita de Smith não seja excecional, mas antes por algo mais perceptivo, mais experiencial, porque do mesmo modo também não me encantei pelas obras de Pauline Boty, assim como também nunca me apaixonei com as colagens de Hannah Höch, entre outros criadores do movimento. No fundo, e voltando a Joyce, reconhecer a qualidade técnica, admirar o virtuosismo, compreender o alcance do que se pretende não é suficiente para nos fazer sentir. Não que não nos provoque, repare-se como o João Carlos Pereira na sua resenha no Goodreads, captou muito bem o efeito deste processo de assemblagem:
"Registo apenas alguns dos adjectivos que me suscitaram a leitura da novela "Outono": "versátil – desconcertante - decepcionante – mutante – original – extravagante - ilógica – surpreendente – admirável – desequilibrada – repetitiva – inconsistente – confusa – heterogénea – incombinável – desigual – complexa – incompreensível – fatigante – invulgar."
Por outro lado, “Outono”, dito pela própria autora, é apenas a primeira parte de quatro. Ou seja, li apenas um quarto de um todo, e talvez exista muito mais nos restantes volumes que assumo poderem vir a alterar o meu sentir sobre um todo que ainda desconheço. Não sabemos se o Brexit continuará sequer a surgir como pano de fundo, que diga-se, está para mim ainda demasiado "quente", para se dar à literatura. Repare-se como o assassinato de Jo Cox surge aqui quase em nota de rodapé, algo que me incomodou, mas que provavelmente não poderia ser diferente, já que correria o risco de contaminar o resto da narrativa. Mas é provável que o tempo continue a ser central, não apenas pelo modo como Smith brinca com as disparidades de idades dos protagonistas que "viajam no tempo", mas especialmente pelo que se pode resumir num dos momentos mais altos deste volume, em que soltei várias gargalhadas em catadupa, quando se define o sucedido com a obra de Pauline Boty da seguinte forma:
"Ignorada. Perdida. Redescoberta anos mais tarde. Depois ignorada. Perdida. Redescoberta novamente anos mais tarde. Depois ignorada. Perdida. Redescoberta ad infinitum." (p.196)
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