Saiu ontem o documentário "O Dilema das Redes Sociais" (2020), na Netflix, que procura dar conta de vários dos problemas que têm sido atribuídos às redes sociais: viciação, invasão de privacidade, propaganda, manipulação, fragmentação de identidade, etc. O protagonista do filme é Tristan Harris que começou por ser responsável pelo design ético da Google, tendo-se demitido para criar a fundação Center for Humane Technology. O filme é relevante, aconselhável a todos os que usam as redes sociais, dos adolescentes aos mais velhos, mas com algum espírito crítico para evitar entrar em estado de alarme.
Para quem trabalha na área nada é dito aqui de novo, mas o que é dito é importante que chegue a todos, e não apenas a quem trabalha no domínio. As pessoas que falam fizeram todas parte destas empresas — Facebook, Google, Twitter, Instagram, Snapchat,... — mas nem tudo o que dizem é tal como nos querem dar a entender, existe algum excesso, alguma falta de enquadramento principalmente de teoria dos media e análise histórica da psicologia humana. Mas no cômputo geral, o filme funciona bem no acendimento de algumas campainhas, podendo ser relevante para uma grande faixa da sociedade que passou a usar estas ferramentas sem compreender como funcionam, sem qualquer noção do que está por detrás daquelas imagens, menus e comentários que a toda a hora solicitam a nossa atenção.
O discurso alarmista tende ao exageramento das capacidades e potencial, mas aceito-o como discurso que procura gerar uma preocupação societal. Sem essa preocupação dificilmente poderemos levar os políticos a tomar as decisões que são necessárias. Não se compreende como andamos há uma década a pedir regulamentação para estas ferramentas, e tudo continua na mesma. Na Europa criou-se o RGPD, lançaram-se algumas multas, mas pouco mais foi feito. Se temos todo um conjunto de estruturas que regulam os media tradicionais, da rádio à televisão, porque é que ainda não criámos regulação para estas redes sociais? Simplesmente porque não há pressão.
Repare-se no que aconteceu com a Uber, a pressão dos taxistas tem obrigado os políticos a agir. No caso das redes sociais, a pressão surge apenas pelo lado de algumas das pessoas que trabalham na área, e depois quando se fala de roubo de dados ou do muito dinheiro gerado pelas companhias. Por outro lado, sabemos que não é algo simples ou fácil. A regulação das redes sociais, ao contrário dos media tradicionais, tende a chocar com as liberdades e garantias individuais, que é no fundo o mesmo problema da Uber, por isso é tão complicado legislar. Mas se pensarmos no modo como funcionam os regulamentos dos media tradicionais, esses também chocam com os mesmos direitos, a diferença é que a proibição atua de modo indireto e por isso parece menos intrusivo.
A questão dos sistemas informáticos e os algoritmos desenhados para o engajamento é em si menos relevante, porque não difere daquilo que fazemos quando criamos qualquer obra de arte, quando criamos uma peça musical, filme, livro ou uma peça de teatro, ou um espetáculo de televisão, circo ou ilusionismo. Recorrem-se às técnicas mais eficazes na captação da atenção. Claro que ter pessoas a passar dias inteiros fixados nos sistemas não é bom para qualquer pessoa, menos ainda crianças ou adolescentes, mas aí cabe aos pais atuar. Como tenho defendido no caso dos videojogos, as rede sociais devem seguir o mesmo regime, não proibir mas regrar o tempo. Um adolescente tem de ter tempo para ler, ver cinema, correr, brincar, ouvir música, pintar, etc. etc. não pode estar todo o dia no café virtual do Instagram ou na discoteca virtual do Tik Tok. Por isso o que mais desperta a minha preocupação é a relação com o discurso social, a construção de comunidade sócio-política sobre a qual as redes sociais intervêm cada vez mais.
No passado recente o discurso comunitário era construído quase em exclusivo pelos media e os políticos. As redes sociais vieram dar voz, não a todas as pessoas, mas a todas as ideias, e é aí que surge aquele que considero ser o principal problema. Quando empresas estão dispostas a promover qualquer ideia em função de ganhos financeiros. Onde fica a chamada responsabilidade social das empresas? Como é que podemos aceitar que estas empresas promovam textos e vídeos que debitam informação falsa, errada, que busca manipular a percepção de realidade de outras pessoas? O problema não são os algoritmos, os seus truques de engajamento. Porque esses são bons para mim quando procuro informação relevante, como quando quero comprar um livro e os sistemas me apresentam os livros próximos. Agora quando tenho o Facebook a apresentar-me mais e mais informação sobre a Terra Plana apenas porque vi uma qualquer imagem relacionada, não faz sentido.
Repare-se que o problema não é alguém publicar um texto dizendo que a Terra é plana, mas é o facto das redes sociais, para ganharem dinheiro, aumentarem a distribuição desse texto. Isto está errado, porque quando os algoritmos apresentam esse conteúdo não o fazem porque foi pedido conscientemente por alguém, mas antes porque a empresa quer apresentá-lo para manter a pessoa agarrada ao sistema, por forma a conseguir enviar-lhe mais e mais publicidade. Ou seja, não se trata de proibir ou censurar, mas trata-se de impedir a manipulação empresarial de informação que se sabe ser falsa e nefasta para a sociedade que queremos.
Todos nós experienciamos o poder do algoritmo quando publicamos duas coisas distintas e verificamos que uma tem o dobro de likes da outra. Sabemos que não é por nossa vontade, mas também não é por acaso, é antes porque o algoritmo do Facebook considera um conteúdo melhor do que outro e por isso apresenta-o a muitas mais pessoas, aumentando a sua visibilidade e inevitavelmente o número de likes. Agora não podemos aceitar que o algoritmo considere mais uma notícia falsa, que por ser chocante tem enorme potencial de captar atenção, e a apresente a mais pessoas do que uma notícia verdadeira que é menos chocante. Mas isto só vai mudar quando for regulado, é de uma ingenuidade tremenda andar a fazer pressão sobre as redes sociais para que elas se auto-regulem quando elas são empresas cotadas em bolsa.
A mensagem no final do documentário é, do meu ponto de vista, para ser levada à letra. Desliguem as notificações. Sempre que comprarem um novo telemóvel ou computador, comecem por desativar todas as notificações de todas as Apps, mantenham apenas as das chamadas e SMS. Se não o fizerem, abrem a porta a que o vosso tempo seja regulado pelo telemóvel e não por vocês.
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