fevereiro 22, 2020

"The Magus" de John Fowles

"The Magus" (1965) é um romance de género, encaixando perfeitamente no domínio dos thrillers psicológicos, ainda que escrito nos anos 1960 e por isso claramente rodeado de tiques culturais da época, o que por vezes faz com que se movimente por ambientes mais próprios ao drama psicológico. O livro é por vezes catalogado como dirigido a um público adolescente, contudo tal não é sustentado, apesar de apresentar um universo de aventuras e muitas vezes pouco refletido, isso terá mais que ver com o facto de ser a primeira obra escrita pelo autor do que com a sua intenção de comunicar diretamente para esse público. Dito isto, é um livro que se lê muito bem, desde logo porque John Fowles é um mestre na arte de contar histórias, conseguindo levar-nos a virar páginas sem darmos por isso. Quanto ao conteúdo, àquilo que Fowles teria para dizer, é algo mais complicado, mas que procurarei elucidar nos parágrafos seguintes.
Capa da primeira edição que dá conta dos cenários esotéricos criados por Fowles

Cheguei a este livro por meio de pesquisas por livros que fazem uso de condições de jogo no desenho da narrativa. A partir daí, os resultados das resenhas que li davam conta de um livro de grande interesse, capaz de surpreender e apresentar grandes respostas, um livro que torce a mente do leitor e o deixa a refletir. Por outro lado, conhecia o autor pela sua obra mais famosa “O Colecionador”, que ainda não li. Confesso, que logo nas primeiras páginas fiquei completamente agarrado pelo estilo de escrita. Muito direta, clara e simultaneamente misteriosa. Fowles escreve de uma forma aparentemente simples, parecendo que está a relatar a maior banalidade, contudo ao fazê-lo vai omitindo imenso sobre o que se está a passar, e são essas omissões que agarram a nossa imaginação, que nos prendem ali, para tentar a partir das linhas e páginas subsequentes descortinar totalmente o que está a acontecer. Contudo, ao fim de 1/3 comecei a sentir algum cansaço, apesar da escrita me manter ali, o motivo daquele universo parecia não mexer para lado nenhum, mas mantive-me porque das resenhas que tinha lido, era relatado isto mesmo, e fortemente aconselhado a continuar a leitura até ao final, o que acabei fazendo, apesar da extensão do livro.

Depois de terminar, dei por mim a questionar-me sobre o que tinha acabado de ler. Tudo o que foi sendo apresentado, foi sucessivamente questionado pelo texto e reapresentado sob outras perspetivas e possibilidades. Confesso que é difícil, e mesmo chato continuar a escrever sem tornar o enredo um pouco mais claro, além de que tal acaba por apenas contribuir para o modo misterioso como escreve o autor, e assim incitar a que se vá ler. Por isso ter acontecido comigo, vou tentar ser um pouco mais claro, sem contudo revelar essências da história.

Assim, contextualizando, os acontecimentos centrais dão-se numa ilha grega, quando o nosso protagonista, britânico solteiro e formado em Oxford, vai trabalhar para um colégio tipo inglês nessa ilha. Nicholas Urfe, o nosso jovem professor, encontra alguns concidadãos a viver na ilha, trava amizade com eles, a partir do que vão surgir um conjunto de eventos esotéricos que envolvem pessoas que aparecem e desaparecem, hipnotismos, seduções imersas no luxo, mas tudo isso vai sendo simultaneamente envolvido em grandes doses de racionalização e argumentação e até alguma ciência. Ou seja, Fowles cria um universo perfeitamente paradoxal, no qual pode exercer o seu total controlo para manipular o leitor, e levá-lo a acreditar em coisas diferentes, no virar de cada novo capítulo. Daí que o autor tenha tido como nome inicial para o livro, "Godgame". Ao longo do livro, somos continuamente postos a prova, desconfiamos de tudo, não sabemos a razão de nada, e chegado ao final do livro continuamos sem nada saber.

Posso dizer que ainda investi algum tempo a tentar dar conta da grande ideia ou mensagem que Fowles tinha para passar, mas rapidamente desisti, pois percebi que era uma miragem. Fowles escreveu este livro como experimento de escrita, tanto que não o publicou imediatamente, só depois de publicar um primeiro livro de contos. O livro decalca muito de perto a vida de Fowles, dando conta da dificuldade do autor em se desprender do seu mundo, tendo usado a escrita como modeladora de experiências, o que acaba a confundir-se com o próprio livro, e provavelmente sem se aperceber, acaba por tornar o livro algo distinto. Ou seja, no livro temos um grupo de pessoas que geram experiências e colocam as pessoas à prova, neste caso, Fowles cria o livro para colocar o leitor à prova. Desta forma, o livro torna-se relevante no meio literário não pelo que tem para dizer, mas antes pelo modo como simula no processo de leitura, exatamente a experiência que vai descrevendo. Por isso não admira que o livro surja por vezes citado como meta-ficção, apesar dessa poder apenas ser realizada na imaginação do leitor.

Em suma, é uma leitura prazeirosa, mas não posso dizer que surpreenda, ou seja capaz de elevar a experiência a níveis de espanto. Sim, mantem-nos às escuras e cria em nós uma vontade de chegar “à verdade”, mas ao mesmo tempo denota em excesso as manias dos anos 1960, dos esoterismos e psicanálise aos transcendentalismos. Por isso mesmo acaba denotando um certo pendor adolescente, pouco interessado em produzir um cenário mais sólido e ligado à realidade. Contudo, esta seria sempre a abordagem de Fowles nos seus romances, como ele diria nas entrevistas, já que ele não acreditava na ficção como algo indicado ao relato de ideias sérias. Aliás, ele diria mesmo sobre este livro em concreto: "It must remain a novel of adolescence, written by a retarded adolescent" (1977). Apesar disso, disse também algo que me deixou a refletir, nomeadamente sobre o seu percurso enquanto escritor:
“No one in my family had any literary interests or skills at all. I seemed to come from nowhere. I didn't really have a happy childhood. What bored me about my mother was her lack of taste. My father's great fault was that he hated France from his experiences in the war, at Ypres. And he liked Germany. We had a geographical falling out. I deviated at the wrong branch of European culture. When I was a young boy my parents were always laughing at "the fellow who couldn't draw" - Picasso. Their crassness horrified me.” (1977)

fevereiro 10, 2020

Mais um portal aberto pela Realidade Virtual

No passado dia 6 de fevereiro a MBC, uma das principais cadeias de televisão da Coreia do Sul, exibiu o documentário chamado "Eu encontrei-te" ("I Met You") no qual a realidade virtual foi utilizada como ponte comunicativa para "o além". Jang Ji-sung mãe de 4 filhos, perdeu em 2016 a filha Nayeon, na altura com apenas 7 anos, morreu de leucemia. Em 2020, a tecnologia de RV e uma equipa de vários criadores multimedia a trabalhar durante 8 meses, proporcionaram a esta mãe o reencontro com "a filha", num ambiente virtual, uma experiência que a mãe qualificou como "um verdadeiro paraíso". A experiência levanta mais questões do que aquelas a que responde, mas é para lhes tentar responder que trabalhamos todos os dias.
Talvez o mais inquietante de tudo isto surja pelo lado do aproveitamento da cadeia de televisão, que explora de forma brutal e sem qualquer pudor a emocionalidade íntima daquela mãe. Por outro lado, provavelmente sem esta exibição não teria havido meios suficientes para construir a simulação que foi apresentada. A menina, Nayeon, não é apenas realista graficamente, ela movimenta-se e fala como a filha de Ji-sung, e isso exige todo um estudo de comportamento e reconstrução tridimensional demorado, complexo e muito caro.

Trecho de síntese do documentário exibido na MBC (tudo em coreano).

O visionamento da experiência funciona de forma bastante dramática, já que a criança surge de modo bastante realista, e percebemos pela reação da mãe que ela mexe totalmente consigo, sendo depois tudo assistido pelas irmãs e pai, que são aqui exibidos também, acrescendo em tensão dramática. A tecnologia utilizada não se limitou ao visual interativo, foi implementado todo um sistema háptico que permite à mãe tocar e acariciar a filha, e podemos ver como a mãe se queda ali diante da ilusão ligada a esse toque, como se tivesse tido acesso a um mundo ausente, diretamente projetado da sua mente, mas plasmado em algo que se pode ver e tocar, como se o seu mais íntimo desejo se tivesse tornado realidade. Nas palavras da mãe:
"Eu encontrei Nayeon, que me chamou com um sorriso, foi um momento muito curto, mas um momento muito feliz. Acho que tive o sonho que sempre desejei."
Do ponto de vista psicológico, podemos questionar se é uma experiência benéfica. Não sabemos, mas não será pior do que ver e rever fotografias e vídeos, claro que com a diferença de acrescentar a dimensão de agência que cria toda uma nova experiência no repertório de memórias da mãe. Mas será diferente de encontrar uma carta deixada por um familiar que partiu, nunca antes lida? Ou de uma gravação de vídeo que nunca anteriormente vimos? Podemos discutir a relevância de reviver o passado, ou de rememorar nesse passado, mas esse não é um problema da RV. Aqui trata-se de uma experiência de poucos minutos. Claro que se levarmos isto para a ideia de reconstrução de uma persona completa num mundo virtual, com inteligência e capaz de comunicar e reagir a nós, no fundo um ressuscitar virtual de uma pessoa, como foi perspectivado recentemente num episódio de Black Mirror, aí sim, estaremos a entrar em águas desconhecidas...
Do ponto de vista da tecnologia, o que temos aqui é a RV a cumprir o sonho do cinema, segundo André Bazin. Para Bazin, o cinema devia ter-nos dado acesso ao "mito total", o de um "realismo integral, a recriação do mundo à sua imagem, uma imagem na qual não era ponderada a hipótese da liberdade de interpretação do artista numa irreversibilidade do tempo". O cinema não deveria registar apenas a imagem, som e movimento deveria ir além e registar as pessoas, guardá-las, preservá-las, e de cada vez que víssemos o filme poderíamos vê-las, mas poderíamos também com elas interagir, falar e assim criar novas experiências, novas memórias. Mas como ele dizia em 1948, o cinema não tinha ainda sido "inventado", mas parece que estamos cada vez mais perto desse "mito".

fevereiro 02, 2020

“The Science of Storytelling” (2019)

“The Science of Storytelling” é um pequeno livro criado por Will Storr a partir dos materiais que tem produzido para os cursos que vem lecionando sobre escrita criativa e storytelling. Como o título indica, o foco está naquilo que a ciência tem para nos dizer sobre a importância das histórias, narrativas, e do ato de contar histórias. Muita dessa ciência provém dos avanços no campo das neurociências realizados nos últimos 20 anos, que permitiu começar a compreender as histórias menos como mitos e fenómenos psicanalíticos e mais como esquemas cognitivos enraizados na biologia que suporta a nossa consciência. Autores como Damásio, Paul Zak, Paul Bloom ou Kahneman deram passos a partir da ciência, mas outros como Jonathan Gottschall, Brian Boyd, Patrick Colm Hogan ou David Herman souberam integrar esse conhecimento nas novas definições narrativas e de storytelling, tornando-os parte integrante do discurso académico que define hoje os estudos na área da narrativa. Storr não tem nada de novo para apresentar, contudo o modo jornalístico como comunica e apresenta todo este mundo de conhecimento científico pode fazer deste livro algo apetecível para um público leigo na matéria.
Para garantir este discurso leve, Storr não aprofunda a ciência do storytelling, antes se serve desta para lançar alguns conceitos que depois trabalha por meio da desconstrução de exemplos de obras reconhecidas, aproveitando muito bem essa desconstrução para explicar conceitos básicos do design narrativo, base dos cursos de escrita criativa. Diga-se que deste modo, para quem tiver apenas interesse em conhecer a área, com objetivos simples como compreender melhor como funcionam as histórias nos livros ou no cinema, ou porque nos apaixonam tanto as histórias, o livro acaba por servir bem. Contudo, não se espere um livro que dê resposta ao título, nem no seu avanço nem aprofundamento, digamos que é um título excessivamente ambicioso, ainda mais para alguém mais ligado à prática do contar de histórias do que à ciência propriamente dita.

fevereiro 01, 2020

"Leviathan" de Auster

Um dos maiores problemas de consumir muitas histórias num meio — seja literatura, cinema ou jogos — é que começamos a ver as estruturas narrativas na nossa frente enquanto devíamos estar plenamente absorvidos pelo mundo e personagens das histórias. Diga-se que isso é mais evidente quando a história é mediana, mas a estrutura é muito boa, investindo nós mais tempo na apreciação do invólucro do que do seu conteúdo. Esse é o caso de “Leviathan” (1992), em que Auster embrulha múltiplas personagens numa trama de bombas para nos manter agarrados ao longo da descida em espiral pelo interior do personagem que narra a história, que é também escritor e serve perfeitamente de alter-ego a autor.
O livro abre com uma morte por explosão, da qual quase nada resta para identificar o corpo, daí somos levados por uma história que atravessa 15 anos de um mundo e uns EUA em convulsão — meio dos anos 1970 até ao início dos anos 1990 — para descobrir quem e porque explodiu essa pessoa. Auster dá-nos a ver de perto quase uma dezena de personagens que se vão entrelaçando e abrindo umas às outras por meio de pontas soltas, mentiras, e também muitas coincidências. O thriller parece ser a base, mas Auster não desiste de ser romance e por isso ora se aprofunda a psicologia dos personagens, ora se faz mover todo o mundo em alta velocidade por meio de eventos inesperados, tais como acidentes, mortes e mais coincidências. Temos direito a algumas cenas mais quentes, para adocicar os momentos que menos concorrem por atenção, mas diga-se, muito menos interessantes do que a castidade moral encenada no interior dos dois principais personagens masculinos, tal como a contraposição com a libertinagem das personagens femininas.

Do Leviatã fica-se na dúvida, ou talvez não, se Auster se refere ao interior que nos consome a todos, sem sabermos porquê, nem como, ou se é menos figurativo e mais ilustrativo, ficando-se pela insanidade que consome apenas aqueles que se deixam cair nas suas malhas, e se deixam levar por histórias — ideologias políticas — que passam a controlar todos os seus passos. Não tendo sentido a história de modo suficientemente intenso, acabei não sentindo a necessidade de atribuir um significado concreto ao texto e isso talvez tenha acabado por determinar um certo dissabor que senti ao chegar ao fim. Reconhecendo a excelência estrutural, faltou-me história, faltou-me empatia.


Partilhado no GoodReads.

janeiro 29, 2020

"Vício" na rede e nos videojogos

Nas últimas semanas dediquei algum tempo a aprofundar a literatura científica sobre o alegado vício na internet e nos videojogos, porque me pediram para ir falar a uma escola sobre o tema e depois acabei por receber outro convite para ir à RTP2 falar do assunto. O tópico não me é distante, já que aquilo que se discute neste campo está intimamente ligado ao modo como as pessoas se deixam envolver pelos artefactos, o que no fundo acaba estando intimamente relacionado com o design de engajamento sobre o qual escrevi recentemente o livro "Engagement Design Designing for Interaction Motivations" que deverá sair em breve.
Aproveito assim para partilhar o programa da RTP2, o Sociedade Civil, no qual participaram também o Fernando Alvim e a Ivone Patrão. Foi uma conversa bastante leve e divertida. Sendo televisão, o espaço para aprofundamento científico é limitado, o objetivo era apenas lançar o tema e passar algumas ideias.
"Relação com a Internet", in Sociedade Civil, Ep. 11, 20 janeiro 2020 (ver no RTP Play)

Já na palestra que realizei hoje, no Agrupamento de Escolas de Estarreja, aproveitei para ir mais ao fundo da questão. Aliás, recordo agora que durante a VJ2019 um dos artigos focava esta questão do vício, e na altura os dados apresentados conduziam à ideia de que existiria mesmo algo distinto dos outros media nos videojogos. Contudo, do literature review que conduzi, focado em estudos e artigos de 2018 e 2019, não encontrei qualquer evidência de vício criado pelos videojogos em pessoas saudáveis. E foi exatamente seguindo estes preceitos que realizei a palestra. No final dos slides encontrarão todas as referências se quiserem aprofundar a temática.

janeiro 26, 2020

Que diria Hitchcock de "Us"?

Gostei de "Us" (2019) de Jordan Peele, mas não adorei como seria expectável. Tecnicamente é virtuoso, portador de enorme excelência no controlo e manipulação do espectador, fazendo uso dos simples atributos da linguagem fílmica de um modo totalmente ímpar. No domínio estritamente cinematográfico, Hitchcock teria tirado o chapéu a Peele, no resto é que tenho dúvidas.
A mensagem está lá, e bem à superfície, não são necessárias muitas explicações. Somos Nós, e só Nós, a tender para a destruição dos nossos sonhos. E se tenho de aceitar que Peele usa uma metáfora poderosa, julgo que se excede. Não podemos falar num estalo, estamos a falar de algo bastante mais bruto. A metáfora é intensa demais, é extrema, por isso acaba tornando-se no centro da discussão, deixando de lado o cerne de tudo aquilo que Peele teria para dizer.

Pode-se dizer que é apenas um filme de terror, mas os filmes de terror são filmes de género, não se esforçam desta maneira para construir ideias e conceitos. O terror serve para destronar as barreiras conscientes e levar as emoções ao rubro, não deve pelo meio querer que se pare para refletir. Ou é uma coisa, ou é outra, indo pelo meio acaba a fazer-nos rir. Como dizia Hitchcock “To be quite honest, content, I’m not interested in it at all. I don’t give a damn about what the film’s about. I’m more interested in how to handle the material to create an emotion in an audience".

Deixo mais duas curiosidades:

1 - Usar fatos vermelhos cria grande impacto visual, ajuda terrivelmente na produção do mundo-história, mas soa a deja vu após "A Casa de Papel".

2- Não nomear Lupita Nyong'o pelo papel absolutamente magnífico que faz neste filme, e por sua vez nomear Scarlett Johansson neste mesmo ano para melhor atriz e melhor atriz secundária, diz tudo sobre as razões pelas quais os Oscar são mera feira político-económica, sem qualquer caráter artístico de relevo.

janeiro 22, 2020

"My Year of Rest and Relaxation" (2018)

Nunca tinha ouvido falar de Otessa Moshfegh, vi este seu livro numa das muitas listas de livros da década ou dos anos da década e fui procurar mais. Encontrei referências a um prémio PEN/Hemingway e finalista do Booker e do National Book para o seu livro anterior, soube ainda que tem escrito contos para a Granta e para Paris Review. Apesar de americana é filha de pai iraniano e mãe croata. Além disto, aqui e ali dizia-se ser uma autora com traço peculiar e subversiva. Por outro lado, as recensões críticas deste seu novo livro estavam longe da unanimidade. Por isso interessou-me, mas nada disto me preparou para ficar agarrado logo na primeira página e continuar na segunda e assim ficar até ao fechar do livro.
Em “My Year of Rest and Relaxation” encontramos uma personagem feminina nova e bonita, recém-licenciada, vivendo em Nova Iorque no final do milénio passado. Quando entrou para a Universidade perdeu ambos os pais e teve de se desenrascar sozinha, conquanto estes lhe terem deixado meios para continuar a ter casa, comida e fazer o que quisesse sem preocupações financeiras. Prossegue licenciando-se em História de Arte, mas pouco depois de terminar, que é quando a encontramos, parece ser quando tudo finalmente se abate dentro de si. O seu único desejo é dormir, passar o máximo de tempo possível a dormir. Para o efeito recorre a uma psiquiatra alucinada que lhe vai passando drogas cada vez mais fortes para dormir, até começarem a produzir vários efeitos secundários.
Illustração de Dori Liou

No início, ficamos colados a tentar perceber o que leva alguém a querer dormir ininterruptamente, porque em última instância parece uma espécie de suicídio mas sem o problema da irreversibilidade, e talvez tenha sido isso que mais me atraiu. Embora, e tendo em conta as doses de medicamentos usadas, pudesse ser visto como mero entorpecimento por drogas, para esquecer o mundo, que é aquilo que acaba por acontecer com os toxicodependentes. Mas existe algo que descarta essa hipótese que é a consciência da realidade e vontade férrea de conseguir levar o seu projeto de dormir o máximo possível avante.

Se tudo isto é interessante pela estranheza, o enredo e as competências de Moshfegh não são menos já que passamos todo o tempo em casa com a protagonista que vai falando com outros personagens, mas poucos, o que demonstra a grande capacidade de contar e manter-nos interessados da autora. Num livro que atravessa pouco mais de um ano, esse ano é passado numa luta para conseguir dormir mais e mais, dentro de quatro paredes. Nada se faz, nada mais se pretende ou objetiva além de dormir, e no entanto ali estamos a seguir, interessados e focados, a tentar compreender a psique da personagem, a tentar perceber o que se passa na sua cabeça. É impressionante como tudo parece tão banal e natural e no entanto se pensarmos no que vai sendo representado em cada página, no modo como se vão criando mundo e ação de personagens, existe aqui uma capacidade expositiva excepcional atuando para nos manter focados no que irá acontecer a seguir, mesmo sabendo que pouco ou nada se espera que aconteça.

É provável que a escrita na primeira-pessoa e em jeito de memórias ajude, conferindo uma espécie de véu de verdade, mas isso é apenas parte da técnica Moshfegh. Acredito que é também responsável o humor negro utilizado para analisar e depreciar a realidade, as relações humanas, e mostrar o mundo a partir de um olhar distinto, desprendido das necessidades diárias — dinheiro, comida, amor — que nos dá a sentir um mundo em parte decadente, mas ao mesmo tempo liberto de pressões que parece querer conduzir-nos a uma compreensão mais cabal do que representa tudo isto e aquilo que costumamos definir como nós, ou Eu. Tendo em conta o cenário, defini-o como existencialismo naif, uma espécie de preocupação, simultaneamente despreocupada, com aquilo que somos e valemos.

O final é expectável, é impossível ler um livro passado naquelas datas, naquela cidade e não esperar que desemboque naquele fatídico dia, 11 setembro. No entanto ao bater naquela última página não consegui deixar de sentir intensamente o momento que fez com que aquela personagem rodasse integralmente na minha frente, passando em revista os vários momentos vividos com ela ao longo da leitura do livro. Porque querendo ou não, é um momento que recoloca de novo tudo em causa... Pode-se dizer que é uma manobra de Ottessa Moshfegh para garantir um murro emocional, mas repare-se que ela poderia ter gerado todo um turbilhão com o fechar desse dia, no entanto opta por uma descrição sintética, sem grandes divagações, e mais, ao longo das páginas anteriores vai pré-anunciando o evento, retirando-lhe a carga que poderia ter preservado para jogar sobre nós nesse final. Claro que se tivesse usado o evento dessa forma não teria como escapar à acusação acima. Por isso, estamos na presença de alguém muito consciente do que é a literatura, com um domínio magistral não apenas da técnica de escrita, como da compreensão dos leitores e da receção dos textos. Quanto às interpretações, cada um fará as suas.

Nota quantitativa no GoodReads.

janeiro 19, 2020

Virtual Illusion: textos de 2019 mais lidos

Este ano tinha decidido não listar os textos mais lidos, contudo como acabei dando conta de várias mensagens perdidas no blog, e andei a responder às mesmas, acabei por me fixar nos números, e extrair a lista que costumava fazer anteriormente. Na verdade, é interessante para o blog, porque permite a algumas pessoas repescar textos que lhes tinham passado, mas para mim acaba sendo também um profundo exercício de viagem mental no tempo que me permite olhar para as ideias do lado de fora. Permite-me não só recordar certos momentos de composição, mas mais importante do que isso obriga a refletir sobre essas ideias e a tentar compreender se ainda se mantém ou se foram entretanto alteradas. Por isso, talvez faça em breve este exercício para a última década, poderá ser muito interessante viajar dentro de posts ao longo de 10 anos.
1. Sobre o mito: “desde que se leia”, abril 2019
2. Quem fala inglês na Europa e porquê, janeiro 2019
3. SciMed e a humildade em ciência, abril 2019
4. Quando é necessário dizer Não, maio 2019
5. Talento ou motivação para criar?, maio 2019
6. Leonardo, março 2019
7. A ciência de Steven Pinker, e dos seus, junho 2019
8. Design de narrativa, desenho de significado na experiência interativa, abril 2019
9. Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável, janeiro 2019
10. Como ler um livro, outubro 2019
11. Viajar, uma volição de posse, abril 2019
12. Brincando com a mente, Claude Shannon, março 2019
13. Uriel da Costa (1585-1640), março 2019
14. Como começou a linguagem: a história da maior invenção da humanidade, agosto 2019
15. 5 razões porque é difícil fazer videojogos, julho 2019

janeiro 17, 2020

Bonjour Tristesse (1954)

É um pequeno livro, com uma história simples e banal, mas capaz de criar o seu mundo e transportar-nos para ele. Honestamente, tive de ir procurar as razões que fizeram deste livro um sucesso e um clássico, pois detendo-me sobre o texto apenas não as encontrei. Mas do que acabei lendo sobre o livro, também pouco ou nada me convenceu ou satisfez.
O livro conta a história de Cecile, 17 anos, que viaja de Paris para Saint-Tropez com o seu pai, para aí passar as férias de verão. O seu pai leva atrelado uma jovem namorada que a meio das férias resolve trocar por outra. Entretanto Cecile encontra um namorado de verão. Mas ao longo de praticamente todo o livro, pouco ou nada acontece. Existe um twist final, esse sim responsável pelo título, mas que não surpreende.

O livro terá surtido forte efeito por dar conta de uma jovem, aparentemente, libertina(!). A rapariga tem relações com um rapaz quase 10 anos mais velho, em plenas férias de verão. Mas o seu pai não parece muito preocupado. Aliás, se fossemos ficar chocados com ela, o que dizer do pai, que troca de namorada semana a semana, e em plenas férias manda vir uma outra mulher passar as férias consigo e com a filha, enquanto descarta a que inicialmente tinham vindo com eles?

Não sei. A mim a história nada diz, hoje ou em 1954. A literatura está cheia de histórias destas, não apenas depois, mas mesmo séculos antes. Por outro lado, não faltariam historietas de cordel com bastante mais picante nessa altura. Falar do livro como motor da revolução sexual parece-me um exagero. Por isso aquilo que existe aqui que me surpreende é apenas a idade de quem escreve. 17 anos e uma obra cosida desta forma, é obra.

O francês é acessível, nada de muito rebuscado no vocabulário, mas o encadeamento de ideias, a estrutura da narrativa e a construção de mundo ficcional, está tudo muito bem conseguido. Contudo, parece que era mesmo só técnica, já que Françoise Sagan escreveu imensos livros depois desta primeira obra, e nunca mais conseguiu repetir o feito. Pensando bem, "Bonjour Tristesse" mais do que uma história de ficção é um relato autobiográfico, um desfiar em modo novelesco de um conjunto de peripécias, que acabou encontrando o seu público, nada mais. E por isso é estranho, ou mesmo tonto, ver o Le Monde colocar um livro destes na lista das 100 obras mais importantes do século XX, mesmo que esta tenha tido, ou se pense que teve, grande impacto na sociedade francesa e europeia.