A Revolução foi televisionada.
Era adolescente, nascido um par de meses após a Revolução portuguesa (1974), tendo passado toda a minha vida a ouvir falar da Revolução que tinha permitido aos meus pais voltarem ao seu país, e libertado todo um povo. Na minha cabeça tudo se construía numa mancha de abstrações, a vida vivida na Europa e em Portugal desde então era calma, a cultura pop dos anos 1980 tomava conta dos nossos imaginários e a Revolução parecia um passado distante, em certa medida e dada a ingenuidade da infância, chegava a parecer insignificante.
Quando em 1989 estava a passar as férias escolares de Natal no Luxemburgo, por ocasião de um regresso temporário dos meus pais ao país para onde tinham fugido da nossa ditadura nos anos 1960, fui surpreendido pelos eventos que eclodiam em Timisoara. No mês anterior, o Muro de Berlim tinha caído, e com ele o comunismo europeu tinha chegado ao fim, mas o líder romeno, Ceausescu então com 71 anos, não conseguindo lidar com a ideia de fim, recusou a demissão, mantendo-se no pedestal ilusório que tinha criado ao longo de 24 anos de ditadura.
A bandeira romena com o rasgo circular em que estava o brasão comunista.
Foram duas semanas em que de quase mais nada se falou, ou viveu, os romenos éramos nós, passados 15 anos. A televisão, à custa do regime, usava todas as estratégias narrativas para nos manter colados ao ecrã — mistério, suspense, vilões, heróis, maldade, ganância e muitos inocentes — até a labirintos subterrâneos e passagens secretas tivemos direito. É impossível esquecer as bandeiras romenas tricolores com rasgos circulares ao centro, marcando a purga do brasão comunista da bandeira nacional. Mas para quem era ainda apenas um adolescente, o mais marcante estaria ainda para vir, chegando no próprio dia de Natal com as imagens do julgamento do casal Ceausescu, tendo as imagens do seu fuzilamento sido apenas reveladas mais tarde. Era o fim, mas ao contrário, porque era o nascimento de um novo país. Por muito que tivesse sido ensinado a olhar a morte como algo profundamente contra-natura, não pude deixar de a ver como a catarse última daquela Revolução, por representar a permissão para todo um país poder finalmente acreditar que podia falar livremente.
Imagem do último discurso de Ceausescu, em direto na televisão nacional romena, marcada pela expressão de incompreensão originada pela multidão que ousa, pela primeira vez em 24 anos, desobedecer e assobiar o seu líder. O seu discurso não duraria mais de 2 minutos, e o impacto das imagens transmitidas em direto para todo o país colocariam em marcha a Revolução.
A Roménia, tal como Portugal, tinha uma polícia secreta, a nossa era a PIDE, a deles era a Securitate. Salazar era nacionalista, de inspiração fascista, Ceaucescu era comunista, na aparência separados por polos políticos opostos mas em essência juntos, ambos ditadores. As suas polícias serviam a manutenção das suas ditaduras, através da constante vigilância que se socorria de legiões de bufos, impondo-se pelo desrespeito de quaisquer direitos que fossem contrários aos supostos interesses dos estados. A tortura era a punição mais comum, mas servia essencialmente a produção de medo, sustentando os regimes no terror.
E é exatamente sobre este último ponto que Herta Mueller nos fala em “A Terra das Ameixas Verdes”, principalmente a opressão e repressão operadas pelo regime de Ceausescu. Mas fá-lo de um modo completamente particular, não seguindo princípios romanescos melodramáticos, esquivando-se às formulas de lágrima fácil. O trabalho de Mueller assenta numa espécie de escalpelização dos efeitos psicológicos do regime, mas acima de tudo numa tentativa formalista de dar a experienciar esses efeitos a quem lê.
Para o efeito, Mueller produziu um texto completamente único, em que as pequenas histórias vão sendo apresentadas como que aos soluços, com pausas, intermitências, recuos e avanços no tempo, cortes abruptos da linearidade discursiva, tudo polvilhado por uma camada de elementos simbólicos muitas vezes indecifráveis. O resultado é um texto difícil, mas acima de tudo uma incapacidade de descortinar sentidos completos do que se vai lendo, que acabam por se assemelhar ao que vai sentindo cada um dos personagens que habitam sob aquele regime. Um desespero por querer compreender, dar sentido, explicar, atribuir uma lógica, ‘porque fazem o que fazem?’. Este sentimento é ainda mais enfatizado pela exploração da escrita de cartas entre os personagens, que por terem de passar os crivos da polícia, não podiam nunca ser explícitas, e que de algum modo a obra pela sua estética nos vai fazendo sentir para compreender a psicologia de quem as escrevia.
No fim deste livro podemos sentir de perto os efeitos de um estado policial, a autora conseguiu criar através da arte escrita um pequeno acesso ao horror de quem vive soterrado mentalmente por uma Thinkpol, a polícia do pensamento de Orwell (1947). Choca e dói porque o que aqui se relata não é ficção, não surge da imaginação de quem escreveu, mas da experiência de quem viveu. Pensar que todo um povo pode a tal ser submetido, pensar que 22 milhões de romenos, 9 milhões de portugueses, mas também muitos milhares de milhões ao longo da história das várias civilizações tiveram de por aqui passar, dói. Como diz Muller, já perto do final, “transfinito é uma janela que não desaparece quando alguém caiu dela”.
Excelente, Nelson, obrigada!
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