abril 23, 2019

Às pessoas do Drama falta Ciência

"As Pessoas do Drama" (2017) pode ser lido como continuação de "Impunidade" (2014) ou remake, a continuidade não é perfeita, existem vários elementos narrativos que não oferecem suporte à continuidade, ainda assim pode tentar-se a aproximação. Dizendo isto apenas, já sabem o que vos espera, ainda que sendo um trabalho muito menos violento, mais focado, mas também talvez por isso mais repetitivo, fez-me sentir falta de mundo. O mundo que habitamos é vasto, denso e complexo e no entanto para Cancela, dois romances resumem tudo a meia-dúzia de personagens alienados, sofrendo todos das mesmas patologias do foro mental. Eu tentei, li vários textos sobre o livro, muitos deles pareciam escritos por quem nem sequer o tinha lido, mas chegado ao final, a convicção de que não é um bom livro é grande, embora admita que possa ter falhado na leitura, mas é o que sinto agora.


A obra recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela 2018, segundo o júri "pela leitura crítica da História e da Cultura europeia na sua relação com a cultura árabe, através de uma temática poderosa (a culpa, a impunidade, o drama, o olhar, o incesto, a tensão e a violência familiares), e de uma revisitação de personagens e de mitos do nosso património cultural ocidental"." Bem, devem ter lido um livro que eu não li. Sim a Cultura Europeia está em destaque, temos Antiga Grécia (Antígona), temos Itália (Roma), Espanha (Badajoz e Cordoba) e Portugal (Alentejo, Elvas e Lisboa). Mas Cultura Árabe, a sério? Porque existe um personagem secundário marroquino, que passa por espanhol, mas porque é mudo, não fala uma língua, todos lhe dizem que é de parte nenhuma?

Quando terminei de ler "Impunidade" senti-me defraudado. Mais de metade do livro tinha sido passado a tentar interpretar algo, quando apenas a 1/3 do final Cancela resolve tirar o tapete. Desta vez Cancela termina o livro, e só na nota final que define os personagens, tal como nas peças de teatro, é que percebemos quem é quem. É um jogo vil. Das duas vezes optou por manipular o leitor, não disse ao que vinha, quis jogá-los para o meio da tragédia, obrigá-los a sentir, para depois revelar o que se passava. A isto chamamos manipulação. Hitchcock foi um dos seus maiores mestres, mas Hitchcock não brincava com temas destes, e menos ainda se repetia. Chegar ao final de "As Pessoas do Drama" e reencontrar o incesto como o segredo que tudo explica, é como ir ao cinema ver o último filme de M. Night Shyamalan, e chegar ao final e descobrir que afinal o personagem estava morto desde o início.

Por outro lado, escrever quase 300 páginas sem nunca revelar quem é quem é obra, um verdadeiro tour-de-force, ainda que conseguido à custa de muita redundância, e paciência do leitor, que perto do final já em desespero deixa sequer de querer saber quem são todos aqueles personagens que na frente dele se movem. Mas chegar ao fim e ver a mesma resposta dada no romance anterior, é anti-climático, desolador. Se existe algo que o autor quer dizer sobre o tema que escreva um ensaio, agora usar o romance para rodear, tornear a questão parece-me de mau gosto. Porque o texto não é inocente. Cancela não está propriamente a escrever um livro para chocar e vender, ele usa a escrita para afirmar um ponto de vista, tal como diz:
"É algo a que me proponho enquanto projecto de escrita e de literatura: cada livro tem de merecer a atenção do leitor. Deve dar-lhe algo em troca daquilo que exige. E deve dar-lhe tanto mais quanto maior é o que exige. Não tem de ser fácil ou imediato, mas deve ser intelectual e esteticamente gratificante. Deve acrescentar algo à experiência do leitor."  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Cancela quer ampliar a nossa experiência da realidade, e a melhor forma que encontrou para fazer foi escrever dois livros seguidos sobre o incesto? Muito sinceramente, a mim parece-me mais sentido de missão:
“Se há alguma coisa que possa ser a função das artes na actualidade é a capacidade de experimentar os valores. Aquilo que não é legítimo no plano político ou no plano social é desejável no plano artístico. Se a arte não é um espaço de experimentação, de encostar o mundo aos seus próprios limites, então não sei para que serve a arte.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Não sendo legítimo, é desejável na arte. Concordo. Mas a arte não é mera experimentação do que é ilegítimo, a função da arte é exatamente a de quebrar os tabus da sociedade, de a fazer abrir-se e aceitar o que moralmente vai sendo questionado. Repare-se no que diz ainda:
"a literatura é um extraordinário organizador de experiência e um espaço de construção da nossa própria identidade. O autor constrói-se através do processo de escrever, é a escrita que suporta a construção da sua identidade.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Ou seja, o texto não é mera ficção, existe algo no seu interior que move Cancela. Não me move realizar aqui qualquer psicologia, menos ainda psicanálise. Interessa-me antes compreender o que livro tem para dizer, e faço-o também porque é o próprio autor que questiona o silêncio de quem o lê, o que me leva a falar, já que confesso que chegado ao final, senti mais vontade de atirar o livro para o monte e esquecê-lo, juntamente com o livro anterior e o seu autor.
"Não podemos contra-argumentar com o silêncio. Contra um insulto, sim, podemos reagir. Mas não podemos reagir dentro do silêncio. Em relação ao Impunidade o silêncio foi quase absoluto.” Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
E afinal o que se retira desta leitura? Como é que a minha experiência do real se altera ao ler esta obra? Na verdade alterou-se apenas no meu respeito por quem escreve bem, e tem um enorme talento na construção de texto e trama narrativa, que deixou de acreditar que essas condições são suficientes para alguém criar obras relevantes. Algo que me custa ainda mais num autor nacional. Não é apenas a questão do incesto, foram vários os momentos ao longo da leitura em que estaquei a questionar o suporte científico do que se apresenta. Temos um filha que renuncia aos pais adoptivos, para se tornar uma alma vagante apenas porque é adoptada? Que potencialmente se tornaria um ser alienado porque é fruto da consanguinidade, apesar de ter vivido toda uma vida normal até descobrir que era adoptada? Como se os pais biológicos fossem a razão de tudo, e 16 anos de educação, desde o dia em que se nasceu, tivesse tido impacto nulo naquele ser? Esta é toda uma visão retrógrada sem suporte no que sabemos hoje sobre o modo como se edifica o ser-humano. A biologia define muito do que somos, mas não é uma cruz que se carrega desde que se nasce até que se morre.

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