junho 17, 2021

Jorge de Sena: sinais de génio e banalidade

Para o texto — composição e ritmo — 5 estrelas não são suficientes, tal a enormidade do virtuosismo apresentado que nos faz parar amiúde apenas para saborear as palavras cadenciadas na folha. Para o historiar, 5 estrelas dão bem conta das imensas competências de Sena na criação de mundo e personagens, assim como no enredo de ações que nos levam da primeira à última página sempre querendo saber mais, instigando a nossa curiosidade como se fosse algo perfeitamente natural. Mas, no campo das ideias, o discurso apresentado não consegue ir além de 1 estrela, é pavorosa a falta de construção de significado, a aridez do mundo conceptual em que vivem alheadas todas aquelas personagens, pensando apenas nos seus umbigos e nos prazeres imediatos.

Depois de ter lido tantos e tantos louvores a esta obra e ao seu autor, e ao longo de décadas, é com alguma desilusão que falo sobre o que li. Existe aqui génio literário, mas como aconteceu com tantos outros criadores, parece não ter conseguido ir além da forma. Claro que temos de situar Sena no contexto da produção nacional, e nessa destaca-se. Aquilo que aqui parece uma escrita direta, simples e comum, é na verdade uma escrita imensamente trabalhada para chegar a essa simplicidade que o distancia de muito do que se escrevia nessa altura, e mesmo antes, no nosso país. Não existem aqui excessos, superfluidades ou vaidades formais. O texto apresenta uma composição carregadamente poética, mas fá-lo de um modo tão direto e acessível que acaba a parecer natural, criando assim um tom completamente realista, mas feito de muito belas composições.

Do mesmo modo, Sena destaca-se de muitos outros autores portugueses na fluidez da arte de contar histórias. Os diálogos são fundamentais para esse efeito, funcionando como portas naturais no acesso ao mundo ficcional que se vai desvelando no papel. Ler Sena é um pouco como sentar-se no café a ouvir uma conversa de amigos, em que os assuntos vão surgindo sem fim, e nunca perdemos o interesse em ouvi-los. Parece algo simples e fácil e, no entanto, é algo que temos dificuldade em encontrar na literatura portuguesa sua contemporânea. Para o conseguir, Sena precisou não só do seu génio com as palavras, mas também de uma outra competência, a da observação, para perscrutar e registar comportamentos, traços e trejeitos de pessoas com quem convivia. Sem esses modelos humanos bem delineados na sua cabeça, não teríamos acesso a um mundo que parece existir, feito num espaço e tempo em que poderíamos ter vivido. Contudo, e não contradizendo o que digo, senti nalgumas situações problemas de empatia nos personagens, ficando a dúvida se são intencionais, ou se são falhas descritivas que poderiam ter sido trabalhadas se o livro tivesse passado por todo um processo normal de edição. 

Não podemos esquecer que esta obra, apesar de ter sido escrita ao longo de décadas, não foi publicada em vida, é fruto de um trabalho de publicação póstuma por parte da sua esposa Mécia de Sena. Nesse sentido, não deixa de ser admirável que perante uma obra destas o autor tenha evitado a sua publicação em vida. E também por isso, não posso ser excessivamente crítico para com aqueles que tecem os maiores elogios à obra de Sena, ainda que se excedam, atirando adjetivação desnecessária e louvores que parecem mais adequados a memórias de obituário. 

Por exemplo, não faz sentido falar em obra “vastíssima” quando Sena nos deixou um único romance, ainda que tenha também alguns contos, peças de teatro e ensaios. É verdade que com 9 filhos e a mudar-se de país em país, fugindo de ditaduras — Portugal e depois Brasil —, não teve a vida facilitada para escrever ficção. Mas não podemos cair em abusos destes, que nos deixam sem chão quando recordamos outros nomes — Camilo, Eça, Aquilino, Agustina, Antunes ou Saramago.

Mas o que mais me incomodou foi o fundo do texto, aquilo que Sena queria dizer com esta obra. A crítica gosta de falar da obra como um fresco dos anos 30-40 portugueses, e tem alguma razão, mas daí a dar conta de uma obra dotada de significado político vai um grande passo. O quadro apresentado dá conta de uma burguesia que se afirma de esquerda mas explora criadas como animais de trabalho, incluindo sexual para satisfação dos machos da casa. Uma burguesia de esquerda que a única coisa que discute são aventuras sexuais, as vaginas e os falos, as "casas de meninas", as "casas de putas", os "pederastas", os "efeminados". Que sai à rua desconhecendo a existência de comícios políticos, passando ao lado das preocupações que assolam o povo do país em que vivem. E ainda, uma burguesia que vê a culpa em tudo e todos, menos em si. 

Aliás, este foi um dos piores traços que encontrei no texto, o da culpabilização do outro, do constante listar de defeitos em todos os que rodeiam o personagem principal, colocando-o num patamar acima, como se apenas ele tivesse acesso a uma verdade pura, e todos os demais fossem desprezíveis, descartáveis. A discussão política apresentada serve apenas para gerar alguma trama e ação, nada se aprofunda, menos ainda tem impacto na vida da personagem principal que mais parece um observador à distância de toda essa realidade, seja em Espanha ou Portugal. Não existe também uma linha sobre literatura ou qualquer arte e seus criadores.

Este ponto é também muito problemático, porque o final do livro conduz-nos para uma espécie de redenção do narrador por via da descoberta da escrita, nomeadamente no modo como é feito: centrado em questionamentos puramente egotistas a partir de 600 páginas de histórias em que não entra um livro, sua leitura ou como tema de conversa. No final, refletindo sobre o modo como se faz um poeta, quase somos levados a acreditar na família do narrador que dizia que "poeta" era sinónimo "de distraído, de pobre de espírito, de idiota chapado”. Isto porque o nosso escritor de versos, o narrador, nada lê, nada discute sobre os problemas da realidade, acabando a passar a ideia de que para se chegar a tal precisamos de passar a vida enfiados em casas de putas, sonhando com vaginas e falos. Isto talvez fizesse algum sentido numa escrita dos anos 50-60, de libertação sexual, mas ainda assim não me convence totalmente porque essa libertação aqui é falsa porque totalmente arrumada em classes.

Ou seja, senti-me não raras vezes, enojado com a leitura, não pelo cariz erótico, mas pela diferenciação de classes que serve de visão do mundo e permite considerar uns mais humanos que outros. As putas, as criadas e os homossexuais não são gente, são objetos de diversão sempre às ordens para cumprir o que dá na gana aos meninos burgueses, e se não o fazem, desprezam-se, repelem-se ou despedem-se.

Claro que tudo isto poderia fazer parte de um mundo real da época, é em parte crível, mas o que me incomoda é saber, porque assim nos é dito, que a obra é profundamente autobiográfica, e que a pessoa que narra e assim pensa é a mesma que escreve o que estou a ler. O Jorge é bem diferente de outras personagens destestáveis, como por exemplo, Harry "Rabbit" Angstrom de "Corre, Coelho" (1960) de John Updike ou Humbert Humbert em "Lolita" de Nabokov, de 1951, que nada têm de autobiográfico, e são trabalhados como crítica humorística.

Dito tudo isto, não admira que Sena se sentisse zangado com Portugal e os portugueses, por estes não o admirarem e não o convidarem para as universidades portuguesas, já que do que é evidenciado nesta obra, Sena era alguém profundamente autocentrado. Por outro lado, por mais que possamos admirar o trabalho virtuoso subjacente à criação desta obra, os problemas de que padece na construção de sentidos sobre a realidade tornam-na muito pouco apetecível.

Arrisco a fazer aqui uma comparação aproximando Sena de Nabokov, desde logo o exílio passado por vários países até à consagração na América, mas acima de tudo a relação virtuosismo e vaidosismo que fez com que se vissem acima de todos os demais, e ainda de que todos lhes deviam. A ideia de que a sua inteligência e arte os colocava acima da necessidade de cumprir com as regras societais é algo também concedido pelas raízes aristocráticas da alta burguesia de que não parecem ter conseguido nunca desligar-se.

2 comentários:

  1. Depois de ler esta excelente recensão sobre Sinais de Fogo, gostaria de ler uma sua sobre Húmus de Raul Brandão. Será que existe?
    Vi sobretudo em Sinais de Fogo a passagem atribulada da adolescência para a idade adulta, numa época que não é a nossa. Os pontos negativos que o Nelson refere bem, não sei se o próprio autor não os teria também vislumbrado, servindo-se então da obra para fazer assim a sua autocrítica ou catarse.
    Um abraço.
    PS: parabéns por conseguir que o seu comentário no Goodreads tenha tantos "likes" no prazo de uma semana.

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    1. Concordo Joaquim, pensei bastante sobre essa hipótese de aquilo ser uma enorme "autocrítica ou catarse", mas não encontrei nada para suportar isso, a não ser especularmos nós por aquilo ser tão hediondo.

      Mas perturbou-me mais até, não ver os críticos da praça portuguesa mencionarem o que ali é claramente negativo como negativo. Por isso fiquei sem saber se existe ali autocrítica, ou se olham para aquilo como algo natural, apenas por se passar no tempo em que passa. Porque natural, só se olharmos para os anos 1930 portugueses como se fossem os 1830 do resto da Europa.

      Quanto ao Húmus, comecei a ler há muitos anos, mas não acabei, mas quero lá voltar, pode ser que com este seu empurrão o faça em breve :)

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