Mostrar mensagens com a etiqueta cânone_literário. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta cânone_literário. Mostrar todas as mensagens

junho 11, 2020

Auto-de-Fé (1935)

Mais um livro que encosto. Estive para o fazer por volta da página 60, mas insisti. Novamente na página 100, mas insisti. Perto da página 200 dei por mim a ler na diagonal, por isso achei que não valia a pena. Lê-se nalgumas recensões que a escrita é complexa, que não é, se comparado a outros clássicos é até bem acessível. Sim, existem algumas partes com fluxos de consciências mescladas, mas nada que Woolf já não nos tivesse dado a ver. Ou seja, por aí nada de novo. Nas ideias temos ainda menos, já que somos brindados com uma única ideia que se repete sem fim ao longo de todo o livro.
Sobre a escrita, não só não é complexa, como é pouco atrativa. Aliás, o caso que Canetti teve com Iris Murdoch e que tem servido para muita discussão sobre o comportamento de cada um, fez-me lembrar a beleza da escrita dela que se eleva muitos patamares acima de Canetti. Canetti além de escrever frases muito curtas para não ser perder ou não perder o leitor, está continuamente a repetir ideias e a explicar o que aconteceu uma e outra vez. É verdade que este foi o seu único romance, como tal o primeiro, por isso o meu ataque não é tanto ao autor, mas a quem diz que a escrita de Canetti estava repleta de qualidades. Não li os seus livros seguintes de não-ficção, nomeadamente "Massa e Poder" (1960) por isso não posso dizer nada sobre o Nobel.

No campo das ideias, pode-se dizer que existem ali imagens simbólicas, tenho lido relações com o pré-Grande Guerra, com o que levaria à produção dessa mesma segunda guerra em termos comportamentais. Contudo isso parece-me um exagero. O livro foi publicado em 1935, Canetti tinha 30 anos, e do que sabemos o livro baseou-se mais num acontecimento político relacionado com uma Revolta de 1927 em Viena, nomeadamente as fogueiras de livros. Aliás, diz-se mesmo que se terá baseado na reação das pessoas, percepcionada por si, como mais preocupadas com os livros que ardiam do que as pessoas que morriam.

No computo final, o texto acaba por se transformar num chorrilho de repetições que ainda por cima se limitam a dar conta de comportamentos absurdos. Tudo bem que podem servir para demonstrar o absurdo de algumas personagens das nossas sociedades e como estas conduzem a comportamentos desviantes destas sociedades. Contudo se lutamos para não ter de conviver com elas, por que havemos de suportar centenas e centenas de páginas falando sobre elas, apenas do ponto de vista delas? Mais ainda, páginas que não aprofundam a sua psicologia, mas se limitam a repetir os mesmos traços uma e outra vez, provavelmente para gáudio de alguns leitores. Confesso que o humor não é o meu género preferido, menos ainda a sátira, e isso terá contribuído para a minha impaciência.

junho 07, 2020

"A Origem" de Graça Pina de Morais

“A Origem” é considerado um dos livros mais ingratamente esquecidos da nossa literatura, escrito em 1958 pela médica cardiologista e escritora, Graça Pina de Morais, foi reeditado pela Antígona em 1991 e desde então mantido em publicação pela editora de Luis Oliveira. Nas linhas que se seguem procurarei dar conta da importância do livro e também de algumas das suas potenciais fragilidades.
Vista da casa em que Graça Pina de Morais viveu com a família e que serviu de inspiração a este romance

Quando se inicia a leitura na primeira página o impacto é imediato, percebemos que estamos perante um texto particularmente dotado. A escrita apresenta elevada erudição e fabrico. Denota toda uma bagagem de leituras que serve minuciosamente a elaboração discursiva que a autora procura manter sempre num registo acessível. Trabalha com grande fluidez e detalhe as descrições, usando a ação para dar conta dos espaços e das pessoas, evitando assim as imagens descritivas estáticas tão comuns noutros autores nacionais desta época. Existe um conhecimento sobre a psicologia humana que sustenta a forma como vai dando a conhecer e trazendo para a proximidade do leitor cada um dos personagens. A autora trabalha uma galeria alargada de personagens no entanto consegue ilustrar bem cada um destes, usando a especificidade dos seus comportamentos para os individualizar.
Assim, se toda a linha narrativa é apresentada num modo perfeitamente linear, próximo do romance realista do início do século, a galeria de personagens é marcada pela ausência de um protagonista evidente, o que mostra uma estrutura bem menos clássica. Ou seja, o romance linear tendia a agarrar-se ao personagem que tudo atravessa para formular o arco narrativo, dando conta do chamado coming-of-age. Aqui não temos protagonista, podemos indicar pelo menos 3 ou 4 que o poderiam ser, para Pina de Morais todos os seres parecem ter o mesmo valor, nenhum vale mais do que o outro. Fica a dúvida se isso se deve a uma vontade estrutural do romance, ou um sentir ideológico. Vejamos alguns dados.  

A edição que hoje podemos ler foi editada por Luís Oliveira a conselho de Herberto Helder, que nos conta [1] como para uma editora jovem no início dos anos 1990, tinha pouco para oferecer. Contudo a autora não colocou qualquer entrave ao interesse do editor e ofereceu-lhe mesmo o manuscrito, em 1991, não querendo qualquer compensação ou direitos. Aliás, Graça de Morais tinha já recusado um prémio nos anos 1960, por este lhe ser ofertado pelo Estado Novo [1]. Assim como durante anos ofereceu consultas médicas às pessoas da região da casa da família, onde ia de férias para escrever. Estes factos e mais algumas descrições dão conta de uma pessoa que apesar de não ter passado propriamente dificuldades, atendeu particularmente a uma vida simples e frugal [3].

A Casa das Quintans
Pequeno escritório da casa onde escrevia, sem qualquer vista para o Douro

Podemos juntar ainda a estes factos os relacionados com a casa onde decorre toda a ação. A Casa surge sempre grafada com maiúscula, sendo a primeira parte intitulada em sua homenagem, mantendo forte relevância ao longo de todo o romance. À medida que vai progredindo a narrativa, ela vai passando a fundo, mas a sua presença enquanto envolvência é permanente, transformando-se em espaço, direi mesmo em realidade alternativa, desligada das regras e leis naturais. Sente-se que a autora foge do detalhar de certos comportamentos assim como partes da casa, deixando no ar ideias, como se não houvesse palavras para descrever o não descritível. E é quando recorremos à história real da Casa das Quintãs [2] que percebemos melhor aquilo que paira na mente de Graça Morais. A casa foi comprada pelos avôs maternos de Graça Morais Pina, comerciantes de vinho, numa hasta pública. O anterior proprietário tinha perdido a casa por dívidas de jogo, tendo tentado ali, sem sucesso, suicidar-se, deixando ainda marcas na casa como salas inteiramente pintadas de preto [1]. Temos aqui o pano de fundo para “A Origem”, com a autora a usar a liberdade do romance em busca de respostas, tentando dar sentido à Casa e a quem a tinha habitado, à Origem. 

O interior da casa das Quintans

"O ser humano é sujeito, por vezes, a sensações de pavor e angústia que surgem momentâneas e lancinantes, não por um facto real que deveras aterrorize, mas por algo de irreal que não pode discernir, nem concretizar." A Origem, (1958:24)

Sobre a proximidade autobiográfica, a autora dizia em entrevista:

“O romance que me deu mais prazer a escrever foi A Origem. Passava noites acordada, encadeando ideias. Sentia-me uma iluminada. Contava a História da minha própria família absolutamente deformada pela imaginação.” A autora em entrevista [4]

Acrescente-se ainda que nesta mesma casa, que é parte do roteiro dos Escritores do Norte [5] viveram 4 escritores todos ligados a Graça Pina de Morais (1925 - 1992), o seu tio Domingos Monteiro (1903 – 1980), o seu pai João Pina de Morais (1889 – 1953), e a sua irmã Elisa Pina de Morais (1926 – 2001). Os homens têm obra novelística mas são claramente recordados pelo seu envolvimento político, e a irmã por obra no campo do direito. A relação com a casa parece surgir apenas nesta obra de Graça de Morais, contudo surge com tanta força e evidência que acaba por se tornar ela própria na personagem, secundarizando os reais personagens do lugar. A determinada altura, e depois de muito me ter interrogado sobre a postura do narrador, que desgostei, e já explicarei, comecei a sentir que o narrador seria a própria casa, o que explicaria muitos dos problemas desse narrador, mas serviria por outro lado para elevar ainda mais o relevo e alcance do romance.
Temos então um trabalho escrito na terceira-pessoa com um narrador clássico omnisciente, com todos os problemas que daí advém [6] e que aqui se tornam por demais evidentes. Desde a estranha sensação de que o narrador é e não é o autor, de que ele sabe, sem saber, conhece sem conhecer, sem se apresentar. Isto torna-se ainda mais problemático quando esse narrador desata a atacar todos os personagens de que nos dá conta. Não existe uma única personagem em todo o livro que seja inteligente, culta ou dotada, quando tal se diz, passadas poucas páginas é contradito. Apesar da autora ser mulher, a crítica às capacidades femininas é vil. Ao mesmo tempo, não raras vezes se redundam significados, dando a mão ao leitor, parecendo existir receio da sua fraca compreensão. Tudo serve na verdade para aumentar a sensação de grande estranheza. Deixo apenas três exemplos:

"Ana Joaquina não a entendia; a linguagem da senhora era muito elevada para os seus modestos recursos." A Origem (1958:59)

"Não era estúpida como ela própria imaginava. Tinha uma inteligência mediana. Era só excessivamente feminina e todos os assuntos do exame estavam longe dela." A Origem, (1958:149)

"João tinha um total desconhecimento da vida e das suas bases práticas. Nunca abandonara a casa, onde gente perturbada e ilógica vivia." A Origem, (1958:236)

Este dar a mão, por meio de explicações diretas de algo que a autora quer apenas deixar subentendido é particularmente estranho. Parece que a autora sentia a necessidade de reforçar o que queria dizer como se não o tivesse conseguido. Contudo essas explicações não podem deixar de ser encaradas como provindo de um outro personagem daquele mundo. Não faz sentido atribuí-las à autora, já que o comportamento destoa totalmente daquele expresso e reconhecido por muitos na sua pessoa. Por isso resta-nos interpretar o narrador como a Casa, aquela que conheceu todas aquelas pessoas, que as qualificava segundo uma ordem de inteligência, esperteza e poder, sem receios nem pudores. Aquela que determinava a particularidade daquele lugar, fazendo leis próprias que obrigavam a quem ali habitava a servir e a seguir determinados modelos e propósitos.

Não me parece que fosse intenção da autora discutir grandes ideias, propor grandes visões, existe um foco no mal, na sua origem, mas não é algo trabalhado em suficiente profundidade. Contudo vejo um mundo criado por Graça de Morais intenso e real na sua irrealidade. Não é só a boa escrita da autora que nos agarra, é também a construção do mundo-história sólido que nos alberga enquanto leitores e clama por nós sempre que fechamos o livro. Apesar de se referir que o esquecimento da obra de Graça de Morais se deve ao facto de ser mulher, não posso deixar de evocar aqui “O Sino” de Iris Murdoch escrito em Inglaterra em 1958, e “A Sibila” de Agustina Bessa-Luís de 1954. Duas obras, estruturalmente superiores a “A Origem”, mas com as quais Graça de Morais ombreia de igual para igual no domínio da erudição escrita. A autora só escreveria mais um romance, mais de 10 anos depois, “Jerónimo e Eulália” (1969), o que provavelmente impediu o seu crescimento enquanto criadora e pode ter ditado algum do esquecimento referido no início.


Referências

[1] Graça Pina de Morais, a mulher que estava presa à liberdade, in Série Escritoras Esquecidas, Jornal de Negócios, 4 outubro 2019

[2] Casa Museu Quinta das Quintans, Facebook 

[3] Jesus, Isabel Henriques de. (2015). Estrangeiras: Mulheres em Jerónimo e Eulália de Graça Pina de Morais. Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, (33), 23-35. Recuperado em 07 de junho de 2020, de 


[5] Casa de Quintans, Escritores a Norte, Online

[6] "A Mecânica da Ficção" (2008) de James Wood

Descobri que a autora deu uma entrevista a Manuel Poppe mas que esta nunca passou na televisão. Entretanto Poppe terá transcrito a mesma para um livro de memórias que terá servido a muitos dos que trabalham a obra de Graça Pina de Morais.

maio 24, 2020

“Quando Tudo se Desmorona” (1958)

“Quando Tudo se Desmorona” fala de uma tribo em África algures no passado, dando conta dos costumes, hábitos e comportamentos sociais instituídos. Para o leitor Europeu de hoje os costumes apresentados — de governo, de casamento, relações pais e filhos, doenças, etc. — parecem toscos e nalguns casos apresentam-se mesmo como hediondos. Contudo, enquanto lemos, e pela forma quase neutra como tudo vai sendo apresentado, parecemos estar perante uma sociedade com um largo conjunto de regras que formam uma civilização, tal como a nossa já terá sido. É inevitável não parar a tentar compreender porque determinada regra foi instituída, ainda que algumas tenham à mistura algumas incógnitas proporcionadas pelos oráculos, deuses e magias, mas na generalidade é possível extrair as causas e razões da instituição das regras. Os homens mais fortes com as suas tarefas e deveres, as mulheres menos fortes com as suas tarefas e obrigações, e quem não se encaixa no perfilado é ostracizado. Tudo acaba sendo menos violento porque a própria natureza consegue ser ainda mais severa ao permitir que homens e mulheres que dão à luz a uma dezena de filhos os possam perder todos. Por isso, percebe-se que a realidade ali não é a realidade que nós hoje vivemos, as condições ditam, inevitavelmente, os modos de ser da nossa espécie. É no tempo, pela aprendizagem com tudo aquilo que os que vieram antes de nós nos legam que podemos tentar enfrentar e sobreviver com menos dor. O respeito pelos mais velhos, pela experiência passada faz-se relevante e serve de lei, mesmo quando dela duvidamos.


A chegada dos missionários (não é dito, mas foram os portugueses quem primeiro contactou com as tribos Igbo e iniciou o processo de cristianização e ao mesmo tempo de rapto de escravos) abre um olhar novo sobre aquelas vivências, inevitavelmente nos vemos ali representados, compreendendo, mas não aceitando. Porque hoje compreendemos algo que os nossos próprios antepassados não compreendiam, que a cultura dos outros não é pior do que a nossa apenas por ser diferente. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para o que fazíamos pela frente — evangelizar — enquanto por detrás torturávamos, violentávamos, matávamos e raptávamos. Achebe não o diz, mantém sempre a neutralidade, tal como manteve no relato dos costumes mais bárbaros das tribos, com a perspetiva fixa nos personagens de cada tribo que não compreendem quem somos e porque estamos ali. Mas custa muito ler e imaginar como tanto sucedeu durante séculos.

A edição portuguesa foi publicada pela Mercado de Letras

O livro foi primeiramente escrito em inglês porque a Nigéria se tornou numa colónia britânica no século XIX, e esteve debaixo do seu domínio até 1960, sendo um livro obrigatório nas escolas britânicas e em muitos lugares de África. Contudo, considero que deveria ser obrigatório também em Portugal. Temos obrigação de ter muito mais consciência do que fizemos, é difícil pensar hoje que o nosso país chegou a deter o monopólio do transporte de escravos. Claro que tal como não devo condenar os costumes das tribos, mesmo os mais macabros, também não posso condenar um país por erros cometidos há 500 anos.

“Quando Tudo se Desmorona” é um dos maiores legados da literatura africana, mas também do nosso tempo, aproveitemos o conhecimento e experiência proporcionada por Chinua Achebe para nos conhecermos melhor a nós mesmos.

abril 27, 2020

O Enigma de Nabokov

Li vários livros de Nabokov, li sobre a sua pessoa, os seus gostos, preferências e aversões, fui visitar a sua casa de infância e juventude quando estive em São Petersburgo, no entanto nunca compreendi muito bem porque era um autor que eu amava sem conseguir amar completamente a sua obra. “Lolita” deslumbrou-me totalmente em termos formais, contudo, nenhum outro livro seu alguma vez se aproximou. Ao mesmo tempo, não conseguia compreender o seu total desprezo por Dostoiévski, chocava-me ler o que dizia sobre ele, não muito diferente do que me choca ler o que diz Lobo Antunes sobre Fernando Pessoa. E agora, depois de ler "Fala Memória" (1951), julgo ter finalmente compreendido o enigma, sobre o que me deterei nas próximas linhas.
Nabokov teve uma infância digna da monarquia, mas com pais profundamente preocupados com a sua formação, tendo ele, por inclinação própria, sabido bem aproveitar tudo o que lhe foi oferecido. Antes de ter sido exilado, em fuga da Revolução Russa, para Cambridge em 1919, onde foi fazer o seu curso com cerca de 20 anos, tinha já viajado por quase toda a Europa. Aprendeu inglês antes do russo, falava e escrevia fluentemente além destas o francês e o alemão. O seu pai era profundo amante de literatura e ofereceu-lhe todo um mundo de leituras desde a mais tenra idade. Nabokov teve todas as condições para aceder ao melhor de tudo o que ser humano tinha criado até então nas artes literárias. Além disso, começou a prática de escrita desde muito cedo. Juntando a inclinação própria e diga-se alguma sorte pela particularidade oferecida pela sinestesia e o ambiente apropriado, Nabokov iria tornar-se num maestro das letras. A sua prosa evoluiria, o poético ganharia enorme densidade, e isso serviria para impulsionar intensamente a sua arte. Contudo, sinto que Nabokov seria sempre mais artesão do que artista.

Sempre considerei estranhos os dois papéis mais reconhecidos em Nabokov, escritor e colecionador de borboletas, por qualquer razão nunca senti que combinassem. No entanto, a relacioná-los colocava a beleza. A beleza das suas frases e a beleza dos padrões das borboletas. Foi agora, ao ler as suas memórias que compreendi o quão essas duas partes se aproximam, e como definiam a própria escrita de Nabokov. Desde logo, essa relação é evidente no modo distante e frio como fala da sua infância e família, como se tivesse estado sempre a janela vendo os eventos passar. Perto do final, demonstra para meu maior espanto, o prazer que retirava da criação de problemas de xadrez (estes problemas consistiam em montar uma jogada no tabuleiro e definir um número máximo de jogadas permitidas para fazer xeque-mate). O gosto por jogar xadrez não é per se qualquer motivo de surpresa, mas obter profundo prazer na conceção e resolução de problemas formais é um marcador indissipável da psicologia de um criador.

Esta análise que faço está naturalmente imbuída do trabalho que tenho vindo a desenvolver no campo dos perfis psicológicos e do modo como estes definem a nossa curiosidade e motivação, no modo como nos predispõem para o envolvimento com a realidade. Tendo eu definido três perfis — Abstracionista, Experimentador, Dramatista —, Nabokov parece não se encaixar em nenhum, ou encaixar nos dois mais opostos. Em favor do abstracionista, Nabokov apresenta o seu lado colecionista obsessivo e a resolução de problemas. Para o lado dramatista, Nabokov apresentava naturalmente a sua literatura e os seus romances. Contudo, da análise da sua literatura e relação com as qualidades de cada perfil, a conclusão a que chego é que Nabokov foi muito mais abstracionista do que dramatista, ou seja, foi alguém focado em sistemas e estruturas, pouco interessado em pessoas e nos seus dramas, algo que espero demonstrar nos pontos seguintes:


1 – Nabokov não gostava de Dostoiévski porque não compreendia a dramatização da psicologia humana colocada em cena por este. Para Nabokov a escrita era fraca, os enredos repetitivos, faltava beleza formal. Mas Nabokov na verdade não compreendia o que se passava efetivamente no interior de Raskólnikov, e menos ainda daqueles que o liam.

2 – Do mesmo modo Nabokov ridicularizava Stendhal, Balzac, Mann, Faulkner, Camus ou Roth, escritores que muito fizeram pelo avanço do psicologismo no romance, em choque frontal com a larga maioria dos escritores e críticos e de forma ostensiva. Na verdade, Nabokov não conseguia chegar a certos tipos de escrita, não por não ser capaz, mas porque não lhe tocavam, não lhe falavam.

3 - Durante alguns anos admirei Nabokov por ser frontal e falar abertamente contra Sigmund Freud, contudo só agora compreendi que aquilo que o incomodava nada tinha que ver com os seus métodos muito pouco científicos, mas apenas e só com o facto deste trabalhar a psicologia humana.

4 – A curiosidade de que Nabokov terá visitado os 46 estados americanos, referido neste livro mais de uma vez, em busca de borboletas, é mais do que isso, é um elemento central para compreendermos o seu comportamento obsessivo. Nada o faria impedir de ir atrás das suas metas e objetivos, eles foram sempre o seu norte.

5 – Do mesmo modo, os ataques a Boris Pasternak e Alexander Solzhenitsyn, os dois russos a ganhar o Nobel (1958 e 1970) quando Nabokov já era considerado um génio das letras, têm mais que ver com o competitivo inato em Nabokov do que com qualidades desses autores ou até mesmo inveja. O Nobel é um prémio, apesar da competição ser algo exótico no domínio da narrativa, das histórias e das letras, mas era isso apenas que interessava a Nabokov, atingir os objetivos.

6 — Um dos seus livros mais estudados é um poema, mas não é um poema qualquer. “Pale Fire” é um conjunto de significados escondidos por debaixo da capa e forma de um poema, mas “Pale Fire” não é nenhum poema, porque antes de o ser é um puzzle. Os críticos deslumbram-se com as intrincadas métricas que perfazem o poema de exatas  999 linhas, e o modo como os cantos podem ser lidos em série ou paralelo, abrindo caminho ao chamado hipertexto e cibertexto. “Pale Fire” é um problema textual criado por Nabokov, tal como os problemas que adorava criar para xadrez.


Tudo o que elenquei não diz que Nabokov não era escritor, nem que não era dotado de génio na escrita, mas diz-nos que Nabokov era fraco contador de histórias e que na verdade tinha pouco para dizer. O seu foco foram eram coisas e objetos, os humanos eram para si secundários, não relevantes, tal como diz o próprio George Steiner:
"O caso de Nabokov parece envolver uma desumanidade profunda, ou, mais precisamente, uma desumanização. Há compaixão em Nabokov, mas é superada em muito pelo desdém elevado, sombrio." George Steiner, Grandmaster, The New Yorker, December 10, 1990, pp. 153-157.
Para alguém que se considerava a si mesmo um génio e que prezava a arte acima de tudo, parece parco. Porque se admitimos a um cientista que se foque nos objetos em vez das pessoas é porque o seu trabalho contribui para o avanço do conhecimento humano que por sua vez servirá a todos. Já quando um artista se foca apenas na sua arte, no virtuosismo da mesma desligada de tudo e todos, é apenas a si mesmo que serve. No final de cada livro seu, fico sempre encantado com a forma, com a estrutura, com o virtuosismo, mas o que retiro verdadeiramente da leitura sabe a pouco. O único livro em que a forma me bastou, talvez porque tinha de bastar para compensar a abjeção da história contada foi “Lolita”, e é falando sobre esse que quero terminar, porque acredito que o enigma aqui desvelado nos pode ajudar a compreender um pouco melhor essa obra.

“Lolita” apresenta uma escrita absolutamente singular. Não é mera poesia, é toda a textura textual que cria um sentimento de espanto e surpresa no modo como o universo nos vai sendo oferecido, do ritmo do texto às metáforas ricas. Por sua vez, toda essa beleza é contraposta à descrição do mais profundo horror. Esse horror continua, até hoje, a não ser compreendido por quem o lê, gerando interrogações e dúvida sobre o que verdadeiramente está em questão na história que se conta. Contudo, a partir do que discuti acima, parece-me que a explicação está no perfil psicológico de Nabokov, alguém profundamente focado em coisas, não em pessoas. O seu foco era o livro, a obsessão pelo texto perfeito era total, já os personagens e os eventos eram apenas mais uma história, igual a tantas outras. O enigma emerge assim pela falta de empatia de Nabokov, pelo modo como se alheava completamente da relação emocional criada pelos personagens das suas obras com os seus leitores. O abjeto e nojo são por demais evidentes em “Lolita”, contudo Nabokov não parece apresentar nunca consciência de tal ao longo de todo o livro. Claro que se podem evocar sentidos escondidos na relação entre a beleza do texto e a beleza da ninfeta, contudo nada dessas interpretações poderá esconder o negrume do que se apresenta. Ou mais facilmente poderíamos dizer que pessoas más não fazem más histórias, para o que bastaria evocar Raskólnikov, mas para tal o escritor não poderia "esquecer-se" de evidenciar de que lado estava.

março 24, 2020

“O Mar, o Mar” de Iris Murdoch

“O Mar, o Mar” (1978) é um romance feito de múltiplas camadas concebidas num entrosamento de modos, o explícito, ocupado com as necessidades narrativas de manter a história viva e apelativa ao longo de centenas de páginas, e o implícito, de questionamento reflexivo inerente à veia filosófica da autora. Murdoch foi professora de filosofia na Universidade de Oxford, sendo reconhecida tanto pela sua ficção como pelo seu trabalho filosófico. Dito isto, o livro não é nenhum tratado de filosofia, mas não deixa de ser uma obra imensamente densa, talvez até mais pela profundidade descritiva do que propriamente pelas argumentações. Nesse sentido, a escrita de Murdoch recorda Proust através do modo como descreve cenas interiores, pensamentos e memórias, na sua miríade de detalhes, como avança e recua dentro dos personagens, pondo a nu a diferença liminar entre o real exterior e alegadamente objetivo, e o mundo subjetivo criado na cabeça de cada um de nós.
O protagonista é um encenador de teatro, célebre, que na entrada da idade de reforma se retira de Londres para habitar sozinho, numa casa à beira-mar completamente isolada, sem eletricidade nem água. Apesar de desejar estar sozinho, Charles Arrowby acaba por encontrar muitos dos principais personagens da sua vida, tanto recente, como da sua infância, o que vai provocar enormes tumultos interiores, que tornarão evidente o tipo de pessoa que temos em cena, dando a entender que existe ali pouco que se possa qualificar de boa pessoa, mas no entanto vamos avançando e compreendendo que má pessoa também não é, porque no fundo é apenas um humano. Murdoch penetra pelo pensamento de Arrowby adentro e dá-nos a ver e a sentir o mundo da indecisão, da incerteza, da dúvida, do questionamento e ao mesmo tempo o da certeza, do autoritarismo, do desprezo e da discriminação. A leitura senta-nos no ombro do personagem e deixa-nos ouvir e sentir tudo o que ele pensa, o que acaba por inevitavelmente se colar a nós, às nossas próprias incertezas e desejos. Não admira que Murdoch seja comparada a Dostoiévski ou Tolstói, ou nutra grande amor por Shakespeare.

A escrita apesar de apresentar um vocabulário acessível é bastante densa, mas é exatamente por meio dessa densidade que se produz uma aura reflexiva que nos transporta continuamente para o domínio do pensar. Apesar de toda a ação se passar numa casa junto a uma praia de rochedos em que os personagens podem banhar-se, passamos a maior parte do tempo dentro de ideias, quase desligados da realidade espacial-temporal, com muitas cenas a fazer-nos recordar os mundos-história dos filmes de Ingmar Bergman.

Existem algumas partes que me parecem interessantes reter, nomeadamente o modo como olham para a arte, no caso particular do teatro, mas também como discutem a nossa ilusão de realidade, ou ainda como nos introduz à discussão dos nossos anseios e desejos. Aliás, para mim, todo o livro acaba sendo isso, uma introdução aos problemas da crença no desejo de Ser. Porque passamos vidas inteiras em busca do nosso próprio eu, de uma suposta felicidade, sem considerar que essa mesma busca, ou essa mesma felicidade, pode não corresponder àquilo que verdadeiramente queremos, mas apenas àquilo que nos parece que verdadeiramente desejamos. É daqui que emergem as maiores incertezas sobre nós mesmos, somos alguém, mas não sabemos que alguém é esse que somos, temos intuições, fazemos inferências e lançamos suspeitas, mas ao longo das nossas vidas vamos aprendendo que muito daquilo porque tanto ansiámos e acabámos por conseguir afinal não era assim tão importante...

Deixo alguns excertos em inglês, a única versão digital que tenho, apesar de ter lido o livro na edição da Relógio d'Água numa tradução para português de José Miguel Silva.

Sobre o teatro:
“The theatre is an attack on mankind carried on by magic: to victimize an audience every night, to make them laugh and cry and suffer and miss their trains. Of course actors regard audiences as enemies, to be deceived, drugged, incarcerated, stupefied. This is partly because the audience is also a court against which there is no appeal. Art’s relation with its client is here at its closest and most immediate. Drama must create a factitious spell-binding present moment and imprison the spectator in it. The theatre apes the profound truth that we are extended beings who yet can only exist in the present. It is a factitious present because it lacks the free aura of personal reflection and contains its own secret limits and conclusions. Thus life is comic, but though it may be terrible it is not tragic: tragedy belongs to the cunning of the stage. Of course most theatre is gross ephemeral rot; and only plays by great poets can be read, except as directors’ notes. I say ‘great poets’ but I suppose I really mean Shakespeare. It is a paradox that the most essentially frivolous and rootless of all the serious arts has produced the greatest of all writers.”
Nós e a realidade
“We are such inward secret creatures, that inwardness is the most amazing thing about us, even more amazing than our reason. But we cannot just walk into the cavern and look around. Most of what we think we know about our minds is pseudo-knowledge. We are all such shocking poseurs, so good at inflating the importance of what we think we value.”
“Time can divorce us from the reality of people, it can separate us from people and turn them into ghosts. Or rather it is we who turn them into ghosts or demons. Some kinds of fruitless preoccupations with the past can create such simulacra, and they can exercise power, like those heroes at Troy fighting for a phantom Helen.”
“in a few weeks or a few months you’ll have run through it all, looked at it all again and felt it all again and got rid of it. It’s not an eternal thing, nothing human is eternal. For us, eternity is an illusion. It’s like in a fairy tale. When the clock strikes twelve it will all crumble to pieces and vanish.”
“The worshipper endows the worshipped object with power, real power not imaginary power, that is the sense of the ontological proof, one of the most ambiguous ideas clever men ever thought of. But this power is dreadful stuff. Our lusts and attachments compose our god. And when one attachment is cast off another arrives by way of consolation. We never give up a pleasure absolutely, we only barter it for another.”

Nota quantitativa no GoodReads.

janeiro 17, 2020

Bonjour Tristesse (1954)

É um pequeno livro, com uma história simples e banal, mas capaz de criar o seu mundo e transportar-nos para ele. Honestamente, tive de ir procurar as razões que fizeram deste livro um sucesso e um clássico, pois detendo-me sobre o texto apenas não as encontrei. Mas do que acabei lendo sobre o livro, também pouco ou nada me convenceu ou satisfez.
O livro conta a história de Cecile, 17 anos, que viaja de Paris para Saint-Tropez com o seu pai, para aí passar as férias de verão. O seu pai leva atrelado uma jovem namorada que a meio das férias resolve trocar por outra. Entretanto Cecile encontra um namorado de verão. Mas ao longo de praticamente todo o livro, pouco ou nada acontece. Existe um twist final, esse sim responsável pelo título, mas que não surpreende.

O livro terá surtido forte efeito por dar conta de uma jovem, aparentemente, libertina(!). A rapariga tem relações com um rapaz quase 10 anos mais velho, em plenas férias de verão. Mas o seu pai não parece muito preocupado. Aliás, se fossemos ficar chocados com ela, o que dizer do pai, que troca de namorada semana a semana, e em plenas férias manda vir uma outra mulher passar as férias consigo e com a filha, enquanto descarta a que inicialmente tinham vindo com eles?

Não sei. A mim a história nada diz, hoje ou em 1954. A literatura está cheia de histórias destas, não apenas depois, mas mesmo séculos antes. Por outro lado, não faltariam historietas de cordel com bastante mais picante nessa altura. Falar do livro como motor da revolução sexual parece-me um exagero. Por isso aquilo que existe aqui que me surpreende é apenas a idade de quem escreve. 17 anos e uma obra cosida desta forma, é obra.

O francês é acessível, nada de muito rebuscado no vocabulário, mas o encadeamento de ideias, a estrutura da narrativa e a construção de mundo ficcional, está tudo muito bem conseguido. Contudo, parece que era mesmo só técnica, já que Françoise Sagan escreveu imensos livros depois desta primeira obra, e nunca mais conseguiu repetir o feito. Pensando bem, "Bonjour Tristesse" mais do que uma história de ficção é um relato autobiográfico, um desfiar em modo novelesco de um conjunto de peripécias, que acabou encontrando o seu público, nada mais. E por isso é estranho, ou mesmo tonto, ver o Le Monde colocar um livro destes na lista das 100 obras mais importantes do século XX, mesmo que esta tenha tido, ou se pense que teve, grande impacto na sociedade francesa e europeia.

dezembro 22, 2019

Explicação dos Pássaros (1981)

Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.

ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.

O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.

dezembro 18, 2019

"Época de Migração para Norte" (1966)

O maior impacto da leitura desta obra é a lucidez do autor, a luz imaculada que joga sobre diferentes eventos e conceitos para criar acesso a um mundo destilado, perfeitamente transparente. Temos o choque entre civilizações — letrada e iletrada — entre continentes — África e Europa —, mas aquilo que conduz a escrita de Tayeb Salih não são as diferenças, antes as semelhanças entre humanos, pertençam estes ao lugar que pertencerem, tenham eles evoluído e civilizado-se, nunca deixam de ser humanos, presos a padrões culturais e costumes.
"Sim, há camponeses, assim como há de tudo o resto», respondi eu. «Há, entre eles, operários, médicos, camponeses, professores — precisamente como nós.» E preferi não mencionar o que me ocorreu, nesse momento: precisamente como nós, nascem e morrem, transportando consigo sonhos, do berço à sepultura. E, destes, alguns são os que se realizam, gorando-se outros. Temem o desconhecido, buscam o amor e procuram a serenidade junto da mulher e dos filhos. Alguns são fortes, outros são miseráveis; a vida concedeu a alguns mais do que mereciam, consignando outros à privação. No entanto, as diferenças dissiparam-se e a maioria dos fracos deixou de sê-lo." (p.15)
É um livro apenas possível graças ao percurso de vida de Salih que teve oportunidade de sair do Sudão para estudar e trabalhar em Inglaterra e França, numa época de pós-colonialismo que o obrigaria a refletir sobre os contrastes entre o seu país de origem e os países colonizadores. Contudo Salih não se deixa seduzir pelos contrastes, o que seria o mais evidente e expectável, no fundo simples, acaba por se deter no aprofundamento das proximidades e semelhanças, sem esquecer as distâncias, o que acaba a garantir a enorme riqueza do seu texto. Ou seja, não se trata de um mero texto que aponta o dedo aos europeus ou aos africanos, antes coloca em choque de um lado e do outro as incoerências e fá-lo de um modo tão direto e límpido, como se nos permitisse ver a realidade pelos olhos de alguém completamente externo e sem partido. Como se Salih nos conduzisse através da representação do humano, nas suas diferentes fações, mostrando o bom e o mau, não como bom e mau, mas como essência do que é ser-se humano em cada lugar.

A escrita é belíssima.

novembro 12, 2019

O Diabo, Pôncio e o Gato

Adoro clássicos russos, são um dos marcos do estado corrente civilizacional, responsáveis não apenas pelo avanço da arte mas também por vários avanços societais pelo modo como os seus autores foram expondo e criticando a sociedade e seus avanços. Bulgakov não pertence à primeira geração, séc. XIX — Tolstói, Dostoiévski, Pushkin, Turgueniev, Tchékov, Gogol — mas antes a uma segunda, séc. XX — junto com Nabokov ou Soljenítsin — marcada pela ditadura soviética. Se Nabokov optou por virar as costas à Rússia, outros como Bulgakov e Soljenítsin nunca desistiram de tentar fazer-se ouvir dentro do seu próprio país. Bulgakov não foi perseguido, nem preso como Soljenítsin, teve a sorte de cair na graça do ditador que lhe permitiu sobreviver com um mero emprego de assistente num teatro da capital, contudo raramente viu aprovadas as suas obras pela censura do estado, e passou os últimos anos de vida sem nada publicar, relegando esse trabalho à sua mulher, que viria a acontecer apenas duas décadas depois da sua morte. “A Margarita e o Mestre” (1967) é uma espécie de viagem ao mundo de um criador impedido de criar, é uma espécie de portal para uma realidade alternativa criada pela mente de alguém a quem foi dito que tinha de se manter calado. O livro ganha assim, desde logo, uma aura tremenda, impossível de classificar, porque não é mero livro, mas antes documento, um legado expressivo que nos explica como vive um ser sensível e criativo num mundo em que não é livre de externalizar as suas ideias.

O trio louco, protagonistas do “A Margarita e o Mestre”

A história é simples, apesar do enredo duplo — o Diabo chega a Moscovo e desencadeia uma série de eventos loucos, enquanto noutro tempo, Pôncio Pilatos enfrenta o encontro e a crucificação de Jesus. Os personagens oferecem-se imediatamente às mais mirabolantes interpretações dada a sua força simbólica. Contudo, do que me foi dado a ler, e da minha experiência de leitura, a importância da obra assenta mais no contraste entre o deslumbrante mundo criativo do romance e o desmoralizante mundo cinzento da realidade soviética da época. O mundo criativo é trabalhado por meio da sátira, que é um género que pouco me cativa. Ainda assim posso dizer que a primeira parte é deliciosa, dado que o non sense surge como a resposta mais aceitável à insanidade do regime político de Estaline. Os problemas para mim surgem na segunda-parte, porque esperava que o non sense fosse dando lugar a cada vez mais sentido, mas tal nunca chega a acontecer. O livro é non sense do início ao final. Bulgakov dá rédea livre à criatividade, divaga e deambula sem fim. Pode-se ler, ou interpretar, aqui e ali, partes conectadas com a sua realidade, com o tratamento dado pelos colegas de profissão, pelo estado, pela sociedade russa, mas dificilmente se pode dizer que Bulgakov estava interessado na crítica contundente ou na produção de ataques contra os opressores da liberdade. Talvez Bulgakov tenha optado por limar excessivamente o seu trabalho, realizando auto-censura, mas não creio, dado o imenso non sense que prospera ao longo de toda a obra.

Um bom resumo visual do livro feito pelo TED.Ed

Se aqui e ali se lê que o Diabo seria Estaline, tal não tem qualquer sustentabilidade, e em parte esse foi um dos meus erros na experiência de leitura, o tentar ler ou forçar a identificação de significados. Por isso no final senti um certo amargar da experiência, porque não consegui chegar a uma chave descodificadora do universo apresentado. E não adianta ler muito mais à volta da obra na sua senda, porque essa chave não existe. “A Margarita e o Mestre” mais do que uma sátira, é um universo de fantasia e acima de tudo o resultado de um processo de externalização da força de uma imaginação oprimida.

outubro 26, 2019

O Ridículo de Zeno

Enquanto lia "A Consciência de Zeno" (1923) de Italo Svevo lembrei-me por várias vezes de Thomas Bernhard, este último não sabe escrever sem dizer mal dos outros, o primeiro não sabe escrever sem se queixar e vitimizar. O problema agrava-se porque essa forma de escrever não é algo simplesmente ficcionado, mas antes está patente nas personalidades de ambos. Por isso dispenso. Os dois escrevem muitíssimo bem, e Svevo é não só imensamente poético como dono de uma capacidade rítmica quase perfeita. Mas dizerem que Svevo inventava aqui o narrador em primeira pessoa e não confiável modernista, parece-me um exagero, mais de 40 anos antes, na transição do romantismo para o realismo, já Machado de Assis nos dava isso em todo o seu esplendor com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881).


Alguns comparam Zeno a Dom Quixote, mas parecem-me bastante distantes. A loucura de Quixote é assumida, é frontal, enquanto em Zeno roça a seriedade. Podemos entender que Zeno apenas brinca, mas também podemos dizer que aquela é a personalidade real de Zeno. Mais, conhecendo um pouco mais sobre Svevo, nomeadamente por via da sua esposa, ele era neurótico, psicologicamente instável, e na maior parte do tempo completamente alheio à realidade. Ora isto é exatamente aquilo que Zeno é, por isso dizer-se que tudo aquilo é apenas ironia é apenas uma forma subtil de desculpar toda a alienação hipocondríaca de desprezo pelo outro, principalmente do sexo feminino, que trespassa toda a obra.

Do lado positivo, além da técnica, existem dois focos que me interessaram particularmente, as fortes críticas à psicanálise e à bolsa de valores, demonstrando uma certa presciência da parte de Svevo, uma vez que a psicanálise viria a ser desmascarada pela sua incapacidade de tratar as patologias da mente, e a bolsa viria a produzir uma das maiores crises económicas de sempre, poucos anos depois, em 1929.

Por outro lado, a colagem de Svevo a Proust, como "o Proust Italiano", também não cola para mim. Sim, a escrita é de grande qualidade, mas está imensamente distante do virtuosismo de Proust. Por outro, fico sem perceber propriamente de onde adviria o interesse apaixonado de James Joyce por Svevo. Até porque dizer que "Ulysses" segue "A Consciência de Zeno" é uma total descaracterização de ambas as obras. Sim, temos dois narradores/personagens principais neuróticos que nada têm para oferecer a quem os segue — Leopold Bloom e Zeno — mas a proximidade entre os textos termina aí.

Posso estar a ser demasiado duro com a obra, sinto isto em parte por todos os laudos que têm sido feitos ao livro e ao seu autor, mas também porque a boa escrita me faz sentir pena de chegar ao final com este sentimento. Posso ainda dizer que Svevo realiza uma excelente introdução ao mundo de Zeno no primeiro capítulo, e fecha também bastante bem com o último capítulo, mas esses dois capítulos não salvaram o livro, para mim.

Romances que nos questionam

Ben Roth é professor de Filosofia em Harvard, onde dá aulas de escrita baseadas em filosofia aos alunos dos primeiros anos, sendo o seu domínio de especialização a Narrativa do Eu. Para os seus alunos, Roth criou um fluxograma de recomendações de leitura no domínio dos romances filosóficos que foi agora partilhado na rede.  O fluxograma é enorme, mas é excelente no sentido em que proporciona um conjunto de livros de reconhecida qualidade e conteúdo reflexivo por meio de orientações gerais que ajudam a quem quiser aventurar-se neste tipo de leituras. Gostei particularmente de uma dessas recomendações — O romance filosófico mais subestimado — sem dúvida um dos romances que não me canso de recomendar. Mas existe ali muito mais, muitas delas de inestimável valor, algumas pela forma, mas a maior parte pelo conteúdo.


Tendo em conta que o fluxograma é enorme, podem descarregar o JPG, ou então aceder à versão PDF aqui abaixo, usando o zoom para perscrutar todo o gráfico. Recomendo esta segunda abordagem para uma visão geral. Se desconhecerem as capas e precisarem de ler alguns dos títulos menos legíveis, será melhor descarregar o jpg ou pdf porque o leitor aqui embebido não permite ampliação total.

Fluxograma de Ben Roth

outubro 15, 2019

A Espera de Coetzee

“À Espera dos Bárbaros” é um livro de Coetzee de 1980, escrito em pleno clima de Apartheid, na África do Sul, ao qual não é alheio, antes pelo contrário. A grande influência de Coetzee está na obra maior de Dino Buzzati, “O Deserto dos Tártaros” de 1940, escrito em plena Itália fascista. As obras tocam-se pela alegoria do forte fronteiriço e do inimigo quase invisível que a todos afeta a todos oprime trabalhando uma espécie de impotência nos protagonistas, ainda que os objetos que os motivam e sustentam sejam bastante distintos, o que acaba por ditar também todo um tom e fluxo estéticos distintos.


Assim, Buzzati usa a alegoria da espera e do tempo que passa para dar conta da inconsequência das nossas ações enquanto condição de vida, o que alguns veem como alegoria de uma luta contra o fascismo, embora para mim Buzatti tenha conseguido ir além dessa variável temporal, geográfica e política. Já Coetzee centra-se num conflito de forças que definem um mal-estar condicionador de uma vida sob um aparelho ideológico, o Apartheid. O magistrado de Coetzee percebe que o modo como os “bárbaros” são tratados é desumano, no entanto existe uma espécie de impotência que paira sobre si e o conduz a um isolamento e alheamento do sofrimento humano. Quando resolve dar um passo e atuar, tudo na sua vida é virado ao contrário, porque é essa a força da condição do lugar, “ou estás connosco ou estás com eles”, mesmo que ele na verdade não tenha percebido aquilo que fez como qualquer ajuda. Isto acaba sendo o mais interessante da obra de Coetzee, o facto da pessoa do magistrado nunca chegar a ganhar plena consciência dos problemas, apenas nele emerge uma espécie de instinto ou intuição que lhe mostra que o tratamento dado aos “bárbaros” é desprovido de senso.

Placa numa praia de Durban, 1989.

Contudo, o magistrado não deixa de se aproveitar da situação, da sua condição hierárquica para continuar a viver a sua vida, obter os seus prazeres, como se nada daquilo fosse verdadeiramente relevante para a sua condição individual. Claramente que sofre na pele os efeitos de uma potencial revolta contra o sistema, o que põe a nu como o sistema se perpetua. Por outro lado, se Buzzati deixa em aberto o fechamento, atirando para a consciência de cada um a extrapolação dos efeitos e impactos, Coetzee não é tão contido, e atira mesmo com uma proposta de desígnio ou cenário final expectável, como que prevendo o que viria a suceder 14 anos depois da publicação do livro.

Tendo a preferir Buzzati, a sua escrita é particularmente bela, e o modo como trabalha a alegoria, pela abstração, permite adaptar os contornos da narrativa à realidade de cada leitor, servindo em qualquer tempo e lugar. E no entanto o interessante é que é Coetzee quem mais abstracciona o espaço e o tempo, tornando difícil situar aquele forte em qualquer lugar específico, no entanto não o faz tão bem ao nível das ações, e nomeadamente ao nível das implicações sobre o protagonista. Não é por acaso que “O Desertos dos Tártaros” pertence à minha lista das melhores 15 obras de sempre.

outubro 07, 2019

The Sportswriter (1986)

Cheguei a este livro por meio da pesquisa de livros sobre crises existenciais da meia-idade, tendo-o visto referido em várias listas acabei procurando mais sobre o autor e sobre a obra, percebi que se tratava de mais uma saga sobre o everyman americano, à lá Rabbit de Updike ou Zuckerman de Roth, tendo Frank Bascombe, o protagonista, já tido direito a 4 volumes — “The Sportswriter” (1986), “Independence Day” (1995), “The Lay of the Land” (2006), “Let Me Be Frank With You” (2014) — pelas mãos de Richard Ford. Apesar de irem saindo de 10 em 10 anos como os Rabbit de Updike, Bascombe começa neste primeiro volume já com 38 anos, divorciado, 2 filhos, e um terceiro acabado de morrer antes de chegar à adolescência, ou seja, com todas as condições para se lançar nos questionamentos dos porquês e para quês de tudo o que pensamos, desejamos, conseguimos ou fazemos.


Ford escreve muito bem, constrói frases que transportam ideias e sentimento capazes de nos envolver e manter fixados em cada momento do que vai relatando. Por vezes excede-se, perde-se, mas quase sempre mantém um nível elevado de técnica e controlo do texto produzindo fluidez e interesse. O tema ajuda a este tipo de escrita, já que apesar de existir enredo, o que está em causa é o interior de Bascombe, o modo como este vê o mundo, como se dá e recebe esse mesmo mundo. Do mesmo modo ajuda aos devaneios que nem sempre nos agarram, e se perdem na falta de foco ou objeto. Contudo, a experiência geral é bastante boa, pela elevação criada, mas também por vários momentos de indagação que funcionam como apaziguadores a quem está também em modo de crise e questionamento da travessia.

O mundo de Bascombe são os subúrbios da América, tão insistentemente palco de muito e muito cinema, tanto que quase parecem fazer parte da nossa realidade europeia. Neles tudo parece perfeito, criado para tornar todos felizes, com todas as condições que as sociedades industrializadas e ricas conseguem oferecer. Ainda assim, nada disso parece ser suficiente para apaziguar a sede humana de respostas, mesmo quando não se conseguem formular as perguntas. Luta-se todos os dias para ter mais, para chegar a ter tanto como os demais, e quando se lá chega, coloca-se tudo em questão, porquê e para quê. Era só isto?

Subúrbios americanos

Cartoon de Liana Finck, na The New Yorker

Comecei por ler o livro na versão original, a meio percebi que ia sair uma tradução pela Porto Editora, o que me fez descobrir a existência de uma tradução antiga pela Teorema. Por estar a atravessar uma das partes menos boas, resolvi tentar a versão portuguesa para ver se fluía melhor. Depois de perceber que a Porto Editora tinha optado por colocar os diálogos com travessão, alterando drasticamente a apresentação do texto corrido com os diálogos entre aspas, optei por comprar a da Teorema. Reparei ainda que o português da tradução de 1992 era mais próximo do inglês de 1986, do que a tradução deste ano da Porto Editora. Tudo isto voltou a fazer-me pensar nas novas traduções portuguesas dos Clássicos, serão os mesmos livros, essas traduções atualizadas que vamos lendo?

Por fim, o título não tem, ou tem muito pouco, que ver com o conteúdo do livro, como se percebe do que escrevi.

agosto 25, 2019

O Doente Inglês (1992)

Li-o há duas semanas, e não foi só por estar de férias e sem computador que não escrevi sobre ele, foi também porque a impressão que deixou não era clara. Clara, no sentido de poder ser traduzida em palavras. Escrevi quando o terminei — “Imensamente sensorial...” — e continuo sentindo-o como tal. Ondaatje apresenta não só um vocabulário rico como uma prosa elaborada e poética. Existe uma história, entre várias histórias por cada uma das personagens, cada uma carrega consigo as suas morais, cada uma toca-nos à sua maneira, permitindo-nos ler o livro a partir de múltiplas perspectivas de sentido, daí a minha dificuldade em verbalizar uma ideia central única. Espero no entanto ver emergir essa ideia nas linhas seguintes...


Vi o filme quando saiu, não era de todo o meu tipo de filme, e surpreendentemente adorei, talvez porque no meio da expectável fórmula de Hollywood tenha visto algo mais, algo que já nessa altura não consegui verbalizar, mas que senti como diferente de anteriores obras de grande aura pedestalizada pelos Oscars. Nos Oscars estava a torcer por “Fargo” e “Shine”, mas nunca senti que tivesse sido um erro perder-se para o Paciente, diga-se que Geoffrey Rush ("Shine") levou o melhor actor e Frances McDormand ("Fargo") a melhor atriz. O Paciente tinha algo não só de épico, mas também de incompreensível e contraditório. As múltiplas personagens, distintas e opostas, puxavam em cada direção, e na fragmentação ofereciam unidade, que os atores suportavam muito bem, mas acima de tudo a direção e cinematografia levavam para níveis de transcendência. Não num sentido místico, mas de belo, de pura beleza formal, que tudo envolvia e a tudo garantia sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme de Anthony Minghella, o deserto quente parecia transmigrar por entre as imagens captadas.


Quando comecei a ler o livro, passados 23 anos sobre o visionamento do filme, esse mesmo calor do deserto, amarelo torrado, denso e a perder de vista, ressurgiu. O paciente na sua cama, Juliette Binoche sempre a seu lado, e Kristin Scott Thomas nos sonhos do passado do paciente. A estrutura narrativa usa o espaço do improvisado e abandonado hospital na Toscânia, para a partir dos personagens viajar geograficamente até ao Norte de África, Canada, a Segunda Guerra e Hiroshima, num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do que vamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores e morais. A narrativa deslinearizada vai emergindo da densa malha de factos que se vão solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos. Os personagens que chegam a atingir um ponto de equilíbrio, visto por nós a partir da compreensão do seu passado e assunção da sua presença real, ali naquele lugar e naquele tempo presente, começam a dissolver-se, a perder força, e a desagregar-se, abandonando o lugar e as pessoas, parecendo emocionalmente seguir o rumo da aproximação do fim da Guerra, que apesar de caminhar para a vitória terminaria profundamente negra.


À superfície temos um triângulo amoroso e as consequências funestas para todos os envolvidos, mas isso é apenas o suporte humano daquilo que Ondaatje quer contar, ou melhor criar. Porque na verdade, e daí a minha dificuldade em verbalizar, Ondaatje não quer mesmo contar, ele quer fazer sentir. E faz sentir, porque usa todos aqueles personagens, os do triângulo e todos os que o envolvem, com os seus passados, ligações e missões de vida e dá-lhes forma por meio de um texto que se assume como ele próprio também personagem, porque é ele que todos liga, e é dele que obtemos respostas às nossas perguntas, mas essas respostas nunca são diretas, nem tão pouco completas, porque as respostas de Ondaatje não são textuais mas antes texturais. Porque as personagens não contribuem com respostas cabais, antes aceitam apenas alargar a nossa compreensão do que estamos a ler, alargando o sentido do artefacto, oferecendo-lhe textura por via do espaço viajado e comportamento desfiado. Se no final fica imenso por responder, nem por isso sentimos que não atingimos o final, porque o final daquele espaço-tempo foi sentido, e aquelas personagens, cada uma à sua maneira, ficaram em nós.

Se não temos respostas, se é difícil verbalizar o que nos dá o livro, se se sente mais do que se reflete, nem por isso nos deixa de questionar, e um dos momentos altos que só com esta idade poderia compreender, chegou com a frase abaixo que poderia servir de definição do existencialismo da meia-idade:
“Quando somos jovens não nos vemos ao espelho. Fazemo-lo quando chegamos a velhos, quando nos preocupamos com o nosso nome, com a nossa lenda, com o significado que as nossas vidas terão para o futuro. Envaidecemo-nos dos nomes que usamos, da nossa pretensão a termos sido os primeiros olhos, o exército mais forte, o mercador mais astuto. É depois de velho que Narciso quer uma imagem gravada de si próprio.” (p.151)

Edição lida: Círculo de Leitores, capa dura, 1997

julho 21, 2019

A coincidência e a genialidade num livro único

Mais importante do que saber que prémios ganhou este livro — "O Último Samurai" (2000) —, ou que tem surgido em várias listas do que melhor foi publicado até agora neste novo século, é para mim o facto de ser um primeiro livro carregado de experiência, porque é o resultado final de alguém que resolveu deixar para trás uma carreira para se dedicar a dar resposta a um desejo interno que a consumia desde sempre, é o resultado de uma mente chegada aos quarenta com meia-centena de romances inacabados. Foi a perseverança que fez Helen DeWitt deixar tudo para trás e tomar as rédeas da sua condição para passar a dedicar-se a criar a única coisa que daria sentido à sua vida, um romance. Só isto seria mais do que suficiente para eu querer ler o livro e admirá-lo, por mais fraco que fosse o livro, nunca se perderia a possibilidade de admiração de um grito pessoal, experiente e íntimo de alguém, porque nada pode ser mais interessante ou relevante do que isto em literatura.

Ilustração de Matt Cummings sobre o livro e que dá conta da obsessão da mãe e filho por livros e pelo filme "Os Sete Samurais" de Akira Kurosawa.

Ao longo de todo o livro assistimos a um diálogo justaposto, entre uma mãe solteira com inteligência acima da média e o seu filho prodígio, atravessando da infância à pré-adolescência. A relação entre duas mentes brilhantes permite-lhes planar acima do quotidiano e focarem-se exclusivamente na racionalização do real e factual, operando sempre a vários níveis de abstração, ou seja, não discutindo sequer obras, mas antes as meta-linguagens que permitem criar essas obras, da literatura ao cinema, da filosofia à linguística, de tudo um pouco atravessa a paisagem de “O Último Samurai”, mesmo alguma matemática e física, mas com muito menor ênfase.

As referências ao longo do livro são todas do topo canónico, somos brindados com discussões sobre a Odisseia, Ilíada, Gilgamesh, Argonautica, As Mil e uma Noites, Proust ou Joyce; os filmes Sete Samurais, Padrinho; ou os génios precoces de John Stuart Mill e Yo-Yo Ma; ou ainda a música de Brahms ou Olivier Messiaen tudo apresentado e dialogado muitas vezes no grego, islandês ou japonês originais à mistura com francês, alemão ou italiano, enquanto a mãe vai investindo dias a fio a datilografar, para poder pagar a renda e sobreviver, umas revistas britânicas antigas sobre “Pesca Avançada”, “O Criador de Caniches” ou “Esqui Aquático Internacional”, quando não têm de passar horas às voltas numa carruagem de metro para fugir à falta de aquecimento no apartamento em que vivem.

Mas nada disto é apresentado com sobranceria, claramente existe uma noção do que é importante, do que é relevante, do que devemos ir atrás, mas não existe um posicionamento acima de qualquer um pela condição de se ser brilhante menos ainda diferente, antes existe a noção de um investimento tremendo, de uma fuga à preguiça, vista essa sim como a razão pela qual nem todos chegam lá. Como diz a mãe a determinada altura a propósito da pessoa com quem teve uma relação de uma noite da qual acabaria por nascer o seu único filho: “The fact is that 99 out of 100 adults spare themselves the trouble of rational thought 99% of the time”; ou como disse Thomas Edison: “Genius is 1 percent inspiration and 99 percent perspiration”.

DeWitt cobre tudo isto com um esquema adicional que funciona como filosofía implícita de vida e que tem que ver com o acaso, o acidente e a coincidência. Tudo é possível, do pior ao melhor, por mais que nos esforcemos, não existe qualquer certeza de podermos ser recompensados, contudo talvez por isso mesmo não devamos fazer nada em busca dessa recompensa, mas apenas em busca daquilo que nos define. Esta é para mim a grande mensagem do livro, e da autora, alguém claramente muito particular, que foi capaz de produzir uma obra carregada de elevação intelectual e ao mesmo tempo imensamente acessível no campo emocional, tudo numa luta imensa contra os editores (ver o vídeo) que pretendiam um livro bastante mais simples, enquadrado nos cânones contemporâneos.


Uma última nota, é impossível ler este livro sem ir a correr rever "Os Sete Samurais" (1954),  agradecendo desde já a DeWitt toda a interpretação da obra fornecida ao longo do texto que me fez repensar o filme de ângulos que nunca antes tinha imaginado, demonstrando a força e relevância dos processos interpretativos tão caros às ciências humanas.

julho 08, 2019

Therese Raquin (1867)

"Therese Raquin" (1867) é um romance curto, quase uma novela, centrado num triângulo amoroso com crime, e as consequências psicológicas desse crime. O cenário é tão antigo como o humano, a novidade assenta no modo como Zola trabalha os efeitos do crime, como entra pelas mentes dos criminosos adentro que soltos de culpa oficial não conseguem livrar a sua consciência da mesma. É algo que já tinha sido feito, com grande sagacidade no ano anterior, pelas mãos de Dostoiévski com “Crime e Castigo” (1866). Zola não desilude, mas corre mais riscos, apesar de naturalista não consegue evitar uns certos traços de terror psicológico por via de algum exageramento. O livro continua a ler-se bem ainda hoje, mas talvez o mais interessante seja mesma a parte académica, o lançamento da obra e as críticas duras que recebeu, o que pretendia Zola fazer e as justificações nos prefácios seguintes, assim como as adaptações para teatro e depois cinema.


Deixo ainda uma nota, estes clássicos têm sempre algo de mais relevante que é o modo como nos dão a ver outras épocas, os costumes e comportamentos, os receios e os despreendimentos. Uma das cenas mais impressionantes deste livro acontece na descrição do funcionamento da morgue de Paris em 1860. É uma descrição absolutamente macabra. Deixo um excerto:
“A Morgue é espetáculo ao alcance de todas as bolsas, que pobres ou ricos oferecem gratuitamente a si próprios.
A porta está aberta, entra quem quer. Amadores há que fazem um desvio para não perder uma destas representações da morte. Se as lajes estão vazias, saem desapontados, murmurando entre dentes. Quando estão bem providas, quando há uma boa exposição de carne humana, os visitantes comprimem-se, dando-se emoções baratas, assustam-se, deleitam-se, aplaudem ou assobiam como no teatro e retiram-se satisfeitos, declarando que a Morgue nesse dia saiu-se bem.
Laurent conheceu depressa o público que ali acorria, público heterogéneo que se compadecia e escarnecia em comum. Entravam operários, a caminho do trabalho, com um pão e as ferramentas debaixo do braço; achavam a morte divertida. Entre eles encontravam-se os que faziam sorrir a galeria a cada frase sobre o rito de cada cadáver; chamavam carvoeiros aos que tinham morrido queimados; os enforcados, os assassinados, os afogados, os cadáveres estripados ou esmagados, excitavam-lhes a imaginação zombeteira e com voz que lhes tremia ligeiramente balbuciavam frases cómicas no silêncio arrepiante da sala.”

maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

abril 20, 2019

A importância de “Antígona”

“Antígona” (-442) é a parte final de uma trilogia que se inicia com “Rei Édipo” (-427) a que se segue “Édipo em Colono” (-406), ou seja, a última parte, mas a primeira a ser escrita por Sófocles (-497 — -405). Assim, se a primeira parte ganhou repercussão no nosso imaginário contemporâneo deve-o não só à hábil estrutura narrativa, capaz de prender o leitor e agitar as suas emoções do início ao final, mas principalmente a Freud por ter inventado um complexo incestuoso, que nunca existiu, já que Édipo só descobre que tem uma relação com a própria mãe depois de com ela ter casado. “Édipo em Colono” funciona como episódio intermédio, contribuindo para aumentar o universo dramático, nomeadamente do seu espaço, como das personagens fundamentais, pondo em cena o fim de Édipo, estando Sófocles perto da sua própria morte, e dando corpo às duas percentagens centrais de “Antígona”, Antígona e Polinices.

Recorte de "Antigone donnant la sépulture à Polynice"(1825) de Sébastien Norblin [ver Galeria]

Se o “Rei Édipo” nos choca pelo conflito com a natureza, pelo incesto, Antígona agarra-nos pelo conflito entre o indivíduo e o coletivo. Não admira que Antígona tenha sido a primeira peça, e uma das primeiras peças de Sófocles, é muito mais liberal, centrada nos valores sonhadores da autodeterminação, enquanto Rei Édipo é quase uma aceitação tácita do determinismo que sepulta o livre-arbítrio.

Temos uma Antígona que questiona a lei, desafia o governador, o rei Creonte, aceitando a morte em troca da defesa dos seus princípios, o direito de enterrar o irmão. Podemos ler na vontade de Antígona apenas o cumprimento dos desejos dos deuses, e do seu irmão expresso em “Édipo em Colono”, de que se sepultem os mortos sob terra, mas isso é apenas um pretexto dramático. O que temos é, Antígona, uma mulher respeitada por toda a sociedade a questionar uma ordem do governador, da autoridade, provocando um conflito na sociedade, que por ter em tanta consideração Antígona, e por aquilo que pede não lhes parecer indigno, a coloca face a um dilema, aceitar ou não aceitar a vontade de Antígona. Este conflito é ainda mais ampliado com a entrada em cena de Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona. Habilmente, Sófocles não dá espaço à emocionalidade básica da historieta do amor cego, antes aproveita para captar do confronto pai-filho, a mesma problemática da auto-determinação do indivíduo, entrando aqui no território sagrado do “Honrarás Pai e Mãe”.

A peça questiona assim, sem rodeios, a autoridade daqueles que se dispõem a dispor das vidas dos outros, seu povo ou seus filhos. Deve um cidadão deixar de se afirmar, de se edificar, enquanto ser humano individual e livre, apenas para cumprir os desígnios de um líder, que o é temporariamente. E um filho? Deve ele submeter-se a todas as vontades de um pai, apenas porque dele nasceu? Com que direito podemos pôr e dispor das vidas dos nossos filhos (cf. “Uma Educação”, 2018)?

Refletindo agora, esta questão vai ao coração do Rei Édipo, dando a parecer que Sófocles quis aprofundar o dilema daquilo que somos e do poder que detemos para determinar o que somos. Poderemos, mesmo pelas supostas leis da natureza, anti-incesto, condenar Édipo? Quanto daquilo que somos depende de nós? dos outros? da natureza? Temos mesmo acesso a um livre-arbítrio?

Tendo-o ou não, devemos, não, acredito que temos a obrigação de nos edificar, de trabalhar para o que é justo, que não podendo ser escrito como lei, por nenhum rei ou governante, por nenhuma sociedade, nem por nenhum pai ou mãe, já que o que é justo é emanado da moral que se escreve momento a momento pela própria evolução da civilização, podendo apenas basear-se no princípio basilar que suporta todos os ditames filosóficos e religiosos desde sempre, sendo hoje reconhecida como Regra Dourada: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”