maio 24, 2020

“Quando Tudo se Desmorona” (1958)

“Quando Tudo se Desmorona” fala de uma tribo em África algures no passado, dando conta dos costumes, hábitos e comportamentos sociais instituídos. Para o leitor Europeu de hoje os costumes apresentados — de governo, de casamento, relações pais e filhos, doenças, etc. — parecem toscos e nalguns casos apresentam-se mesmo como hediondos. Contudo, enquanto lemos, e pela forma quase neutra como tudo vai sendo apresentado, parecemos estar perante uma sociedade com um largo conjunto de regras que formam uma civilização, tal como a nossa já terá sido. É inevitável não parar a tentar compreender porque determinada regra foi instituída, ainda que algumas tenham à mistura algumas incógnitas proporcionadas pelos oráculos, deuses e magias, mas na generalidade é possível extrair as causas e razões da instituição das regras. Os homens mais fortes com as suas tarefas e deveres, as mulheres menos fortes com as suas tarefas e obrigações, e quem não se encaixa no perfilado é ostracizado. Tudo acaba sendo menos violento porque a própria natureza consegue ser ainda mais severa ao permitir que homens e mulheres que dão à luz a uma dezena de filhos os possam perder todos. Por isso, percebe-se que a realidade ali não é a realidade que nós hoje vivemos, as condições ditam, inevitavelmente, os modos de ser da nossa espécie. É no tempo, pela aprendizagem com tudo aquilo que os que vieram antes de nós nos legam que podemos tentar enfrentar e sobreviver com menos dor. O respeito pelos mais velhos, pela experiência passada faz-se relevante e serve de lei, mesmo quando dela duvidamos.


A chegada dos missionários (não é dito, mas foram os portugueses quem primeiro contactou com as tribos Igbo e iniciou o processo de cristianização e ao mesmo tempo de rapto de escravos) abre um olhar novo sobre aquelas vivências, inevitavelmente nos vemos ali representados, compreendendo, mas não aceitando. Porque hoje compreendemos algo que os nossos próprios antepassados não compreendiam, que a cultura dos outros não é pior do que a nossa apenas por ser diferente. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para o que fazíamos pela frente — evangelizar — enquanto por detrás torturávamos, violentávamos, matávamos e raptávamos. Achebe não o diz, mantém sempre a neutralidade, tal como manteve no relato dos costumes mais bárbaros das tribos, com a perspetiva fixa nos personagens de cada tribo que não compreendem quem somos e porque estamos ali. Mas custa muito ler e imaginar como tanto sucedeu durante séculos.

A edição portuguesa foi publicada pela Mercado de Letras

O livro foi primeiramente escrito em inglês porque a Nigéria se tornou numa colónia britânica no século XIX, e esteve debaixo do seu domínio até 1960, sendo um livro obrigatório nas escolas britânicas e em muitos lugares de África. Contudo, considero que deveria ser obrigatório também em Portugal. Temos obrigação de ter muito mais consciência do que fizemos, é difícil pensar hoje que o nosso país chegou a deter o monopólio do transporte de escravos. Claro que tal como não devo condenar os costumes das tribos, mesmo os mais macabros, também não posso condenar um país por erros cometidos há 500 anos.

“Quando Tudo se Desmorona” é um dos maiores legados da literatura africana, mas também do nosso tempo, aproveitemos o conhecimento e experiência proporcionada por Chinua Achebe para nos conhecermos melhor a nós mesmos.

Sem comentários:

Enviar um comentário