agosto 28, 2018

A primeira história do Cânone

O “Épico de Gilgamesh” data de, aproximadamente, 2000 A.C., perfazendo 4000 anos de história. Terá surgido aquando do fim da primeira civilização conhecida, a Suméria, e o seu desaparecimento pela unificação com o Império Acádio, situado no sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, lugar que é hoje conhecido como sul do Iraque. As primeiras pinturas realizadas em cavernas tal como as primeiras esculturas, ambas na Europa, datam de há sensivelmente 40 mil anos. A proto-escrita surgiu há 10 mil anos, mas a primeira língua escrita, o cuneiforme, surgiu apenas há 5 mil anos, ainda no auge da Suméria. De todos estes dados é impossível não extrair duas conclusões que formam uma: a complexidade da literatura só foi possível de se desenvolver com a estabilização da civilização, e assim temos que a literatura não é fruto de cada um de nós, seres individuais, a sua complexa e intrincada estrutura requer, exige, a presença de uma rede intensa de interação social.

Nas esculturas temos, potencialmente, Gilgamesh agarrando um leão, e o Grande Touro do Céu. Relevos retirados de um palácio do Iraque, do século VIII, agora presentes no Louvre.

Se as histórias elaboradas, na forma escrita, requerem um berço humano dotado de intensa ação cultural, o seu objeto acaba sendo ele próprio a intensificação desse berço e dessa ação. Isto foi compreendido desde cedo por governadores e imperadores, e o do Império de Acádio terá sido o primeiro com essa visão. O recurso à figura de Gilgamesh (um rei da dinastia suméria, 2800-2600 A.C.) terá surgido pelo facto de este ter sido, após a sua morte, deificado, o que conduziu à criação de odes e poemas que foram sendo aumentados no tempo. Assim, terá surgido este primeiro poema épico da nossa história, que junta vários poemas anteriores numa história maior, mais elaborada e completa, capaz de dar conta de feitos de um dos grandes da história.

Capa da edição da Vega, traduzida por Pedro Tamen a partir da edição de NK Sandars de 1960.

Na história, e mais ainda com este recuo é impossível ter certezas, muita da história que se faz é também ela própria literatura, ficcionamento do pouco que se conhece. Digo isto porque os sumérios não estavam sós, pouco distantes destes tínhamos os egípcios que reinaram junto do rio Nilo e criaram os seus próprios impérios imensamente poderosos. Não teriam construído pirâmides daquela grandiosidade sem grande poder sobre os milhares de pessoas necessárias à sua construção. Por isso é de estranhar não encontrarmos no cânone literário qualquer obra proveniente do Antigo Egipto. Do que pude explorar, e imaginando e ficcionando, fico com a ideia que se terão ficado pelas odes e cantos, e não terão conseguido ir além, pela razão de que não se conseguiram desprender da sua mitologia. Contar histórias requer descer ao nível do humano, definir um igual ao leitor, para que ele possa colocar-se no lugar e seguir atrás. Ora os egípcios, ao contrário dos sumérios, tratavam os seus Faraós já como deuses, e tudo o que escreviam ia no sentido da descrição de um mundo imaginário, de um além pleno de deidades. Repare-se como os gregos ultrapassaram este problema colocando os dois universos em paralelo, os deuses de um lado e os humanos do outro, tal como depois fizeram também os romanos.

A “História de Sinuhe” (2000 A.C.) é um dos textos egípcios mais antigos com estrutura narrativa, e o mais interessante da sua leitura acaba sendo a confrontação com o “Épico de Gilgamesh”, tendo surgido ambos na mesma época. Enquanto o poema egípcio se perde em mundos imaginários com homens deuses, o épico sumério dá-nos um homem, que apesar de falar com os deuses, padece de sofrimentos profundamente humanos: a amizade e o amor, o medo e a coragem, a mortalidade e a velhice, o sentido da vida. Muitos destes temas foram trabalhados, seguindo estruturas muito próximas, mais tarde por Homero em a Odisseia (ver "The East Face of Helicon", p.402), mas não só, todos estes temas continuam sendo atuais, porque estes temas são a essência da condição humana, formando a essência daquilo que a literatura representa.
“Não existe permanência. Será que construímos uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Só a ninfa da libélula é que se despe da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência.” (Gilgamesh, p.61)
Por isso não admira que o livro surja como basilar no cânone, não por ser meramente a primeira história elaborada escrita, mas porque o seu conteúdo é basilar na formação daquilo em que nos tornámos quando decidimos viver em sociedades alargadas e criar civilizações capazes de transformar todo o planeta, para o melhor (ex. criação da arte e ciência, da cultura, aprendizagem e curiosidade contínuas, luta pela inclusão e diversidade de todas as raças e animais) e para o pior (ex. armas nucleares, alterações climáticas, etc.).

Voltando à relevância da obra para o império em que surgiu, devo dizer que os impérios se afirmam pelas armas, dobram pela força, mas não convertem sem histórias (o caso do Antigo Egipto apresenta particularidades geográficas — rio de um lado e deserto do outro — que o isolaram do resto do mundo durante milénios, confinando a sua realidade e imaginário e potencialmente a sua capacidade de contar histórias, como parece ter acontecido com as civilizações antigas do continente americano). É mais fácil percepcionar isto na religião cristã que está ainda muito presente à nossa volta, que não necessita, hoje, de armas para reinar, basta-lhe as histórias (aliás, atente-se no facto da história do dilúvio e da Arca de Noé aparecer em Gilgamesh, o que gerou imensa tensão aquando da sua descoberta, por colocar em questão os textos religiosos que davam essa mesma história com base em outros personagens, supostamente reais). Mas se pensarmos no maior império atual, os EUA, percebemos como o seu reinado não se afirma apenas por via de armas nucleares e tecnologia de ponta. Não tendo qualquer nova religião para oferecer, socorre-se do cinema para vender e inculcar os seus princípios e moral a uma escala global, a sua forma de viver, o “american way” tornou-se no desejado modelo e objetivo de todo o planeta. As armas servem apenas para vergar os políticos que tentem fazer face ao domínio, mas são as histórias que agregam e convertem, criam a crença e abrem caminho a manutenção dos impérios. E isto nada tem de inovador, como podemos ler desde “Gilgamesh” a qualquer outro Poema Épico, incluindo o de Camões.

Parte da Tábua V, encontrada apenas em 2011 [fonte]

Sobre as versões existentes, como acontece com muitas destas obras clássicas, os registos existentes estão incompletos, tendo sido encontradas variantes em vários locais ao longo de milénios, o que torna difícil conhecer a sua forma original. Por curiosidade, um dos mais recentes achados data de 2011, pelo Museu Sulaymaniyah do Iraque, de uma parte da Tábua V que permitiu alargar um dos principais episódios do Épico. Assim, e olhando ao panorama nacional apenas, temos duas versões muito interessantes, a primeira da editora Veja, traduzida pela excelência poética de Pedro Tamen, sem notas e baseada numa versão inglesa e em prosa de NK. Sandars, de 1960. A segunda, editada em 2017 pela Assírio & Alvim, traduzida diretamente dos textos originais por Francisco Luís Parreira, em verso e com notas. Parreira é doutorado em Ciências da Comunicação, o que não faz deste um especialista em Literatura ou História (tal como eu não sou). Se faço este reparo não é porque ache condição absoluta ser-se especialista nestas áreas para traduzir uma obra, mas deveria contribuir para uma maior humildade, o que não acontece no modo como na entrevista ao Público vai criticando as outras traduções, nomeadamente o modo como ridiculariza a tradução de Sandars, que apesar de não ter sido uma académica com afiliação, fez imenso trabalho de campo e publicou academicamente. Já não me devia surpreender com nada disto, uma vez que vi acontecer exatamente o mesmo com o clássico “As Mil e uma Noites”, em que o nosso mais recente tradutor em entrevista se assume a uma tal altura perante a obra que mais parece o seu autor. Dito isto, quero ler a tradução de Francisco Luís Parreira, não porque considero má a tradução de Sandars/Tamen, mas porque a sua leitura foi suficientemente boa para me fazer ir à procura de mais. O mesmo digo da tradução de Hugo Maia das “Mil e Uma Noites”, depois de ter lido a de Antoine Galland e ter gostado, irei ler a sua assim que a E-Primatur editar o segundo volume.

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