julho 21, 2019

A coincidência e a genialidade num livro único

Mais importante do que saber que prémios ganhou este livro — "O Último Samurai" (2000) —, ou que tem surgido em várias listas do que melhor foi publicado até agora neste novo século, é para mim o facto de ser um primeiro livro carregado de experiência, porque é o resultado final de alguém que resolveu deixar para trás uma carreira para se dedicar a dar resposta a um desejo interno que a consumia desde sempre, é o resultado de uma mente chegada aos quarenta com meia-centena de romances inacabados. Foi a perseverança que fez Helen DeWitt deixar tudo para trás e tomar as rédeas da sua condição para passar a dedicar-se a criar a única coisa que daria sentido à sua vida, um romance. Só isto seria mais do que suficiente para eu querer ler o livro e admirá-lo, por mais fraco que fosse o livro, nunca se perderia a possibilidade de admiração de um grito pessoal, experiente e íntimo de alguém, porque nada pode ser mais interessante ou relevante do que isto em literatura.

Ilustração de Matt Cummings sobre o livro e que dá conta da obsessão da mãe e filho por livros e pelo filme "Os Sete Samurais" de Akira Kurosawa.

Ao longo de todo o livro assistimos a um diálogo justaposto, entre uma mãe solteira com inteligência acima da média e o seu filho prodígio, atravessando da infância à pré-adolescência. A relação entre duas mentes brilhantes permite-lhes planar acima do quotidiano e focarem-se exclusivamente na racionalização do real e factual, operando sempre a vários níveis de abstração, ou seja, não discutindo sequer obras, mas antes as meta-linguagens que permitem criar essas obras, da literatura ao cinema, da filosofia à linguística, de tudo um pouco atravessa a paisagem de “O Último Samurai”, mesmo alguma matemática e física, mas com muito menor ênfase.

As referências ao longo do livro são todas do topo canónico, somos brindados com discussões sobre a Odisseia, Ilíada, Gilgamesh, Argonautica, As Mil e uma Noites, Proust ou Joyce; os filmes Sete Samurais, Padrinho; ou os génios precoces de John Stuart Mill e Yo-Yo Ma; ou ainda a música de Brahms ou Olivier Messiaen tudo apresentado e dialogado muitas vezes no grego, islandês ou japonês originais à mistura com francês, alemão ou italiano, enquanto a mãe vai investindo dias a fio a datilografar, para poder pagar a renda e sobreviver, umas revistas britânicas antigas sobre “Pesca Avançada”, “O Criador de Caniches” ou “Esqui Aquático Internacional”, quando não têm de passar horas às voltas numa carruagem de metro para fugir à falta de aquecimento no apartamento em que vivem.

Mas nada disto é apresentado com sobranceria, claramente existe uma noção do que é importante, do que é relevante, do que devemos ir atrás, mas não existe um posicionamento acima de qualquer um pela condição de se ser brilhante menos ainda diferente, antes existe a noção de um investimento tremendo, de uma fuga à preguiça, vista essa sim como a razão pela qual nem todos chegam lá. Como diz a mãe a determinada altura a propósito da pessoa com quem teve uma relação de uma noite da qual acabaria por nascer o seu único filho: “The fact is that 99 out of 100 adults spare themselves the trouble of rational thought 99% of the time”; ou como disse Thomas Edison: “Genius is 1 percent inspiration and 99 percent perspiration”.

DeWitt cobre tudo isto com um esquema adicional que funciona como filosofía implícita de vida e que tem que ver com o acaso, o acidente e a coincidência. Tudo é possível, do pior ao melhor, por mais que nos esforcemos, não existe qualquer certeza de podermos ser recompensados, contudo talvez por isso mesmo não devamos fazer nada em busca dessa recompensa, mas apenas em busca daquilo que nos define. Esta é para mim a grande mensagem do livro, e da autora, alguém claramente muito particular, que foi capaz de produzir uma obra carregada de elevação intelectual e ao mesmo tempo imensamente acessível no campo emocional, tudo numa luta imensa contra os editores (ver o vídeo) que pretendiam um livro bastante mais simples, enquadrado nos cânones contemporâneos.


Uma última nota, é impossível ler este livro sem ir a correr rever "Os Sete Samurais" (1954),  agradecendo desde já a DeWitt toda a interpretação da obra fornecida ao longo do texto que me fez repensar o filme de ângulos que nunca antes tinha imaginado, demonstrando a força e relevância dos processos interpretativos tão caros às ciências humanas.

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