abril 22, 2023

O Retrato do Casamento (2022)

O livro abre com a seguinte nota histórica: "Em 1560, com quinze anos, Lucrezia de' Medici, deixou Florença para iniciar a sua vida de casada com Alfonso II d'Este, duque de Ferrara. Menos de um ano depois estaria morta. A causa oficial de morte foi "febre pútrida", mas houve rumores de que teria sido assassinada pelo marido." E fecha com uma nota da autora, em que aprendo uma nova palavra "uxoricídio" (do latim uxor, esposa + cídio, matar; "assassínio da mulher pelo próprio cônjuge"), apresentada a propósito do rumor do uxoricídio da irmã de Lucrezia, Isabella em 1575, e ainda da cunhada Dianora, pelas mãos do irmão Pietro de' Medici, que tendo-o admitido nada lhe aconteceu.

Depois do enorme sucesso de "Hamnet" em 2020, li o primeiro livro de Maggie O'Farrell, "After You'd Gone" de 2000, e agora este de 2022, todos apresentam uma escrita sumptuosa. Não só pela forma como consegue dançar entre perspetivas — primeira, segunda e terceira pessoas — para nos dar a ver o interior das mentes dos intervenientes, como depois no entrelaçar de tudo isso na construção de cada cena de forma clara e compreensiva, sabendo sempre o leitor onde está — pessoa, espaço e tempo. A partir do meio dos seus livros torna-se tudo tão regular e funcional que parece simples, fácil, mas tão longe disso, basta pegar noutro qualquer livro para compreender a diferença. 

Retrato de Lucrezia por Bronzino, 1560

Tendo em conta o carácter histórico destes dois últimos livros, tendo, para já, a sentir que Hillary Mantel superava, mas talvez porque estou a comparar a sua trilogia de fim-de-carreira, enquanto O'Farrell ainda está a meio da sua, assim espero (tem apenas mais 2 anos que eu). Mantel adensava mais a malha de factos e eventos, tornava mais obscuro o que estava a acontecer, por vezes excessivamente, mas isso contribuia para uma visão aparentemente mais realista por estarmos distantes no tempo. Por outro lado, O'Farrell vai mais fundo na caracterização interior dos personagens, no modo como psicologiza as suas perspectivas, ainda assim mantendo sempre grande acuidade histórica. Ainda, e não servindo de desculpa, o facto de O'Farrell ter de escrever enquanto trata dos seus 3 filhos, particularmente este último escrito durante a pandemia com os filhos em casa em telescola, talvez não lhe permita ainda o aprofundar meticulosamente histórico de Mantel. 

Voltando ao início deste texto, o livro impressionou-me bastante, não só pela qualidade da escrita e descrição da época — Ferrara, Florença e os Médici — mas pela vida das jovens "princesas". Coloco entre aspas porque o que aqui lemos está tão longe do mar de rosas que nos habituámos a idealizar. Claro que as suas vidas são feitas de enormes facilidades, nomeadamente quando comparadas com as criadas, e se imaginarmos ainda as vidas daquelas que viviam no campo fora destes meios mais privilegiados. Mas ainda assim, o facto de se ser "vendida" pelos pais a um qualquer duque (o dote rondou, em valor atual, 50 milhões de euros), normalmente com o dobro da idade, e ainda menores, rasga-nos por dentro. E se acrescentarmos ainda o facto de elas serem vistas pela família desses duques como meras galinhas poedeiras, a aberração eleva-se a níveis insuportáveis. Como foi possível chegar a isto? Como é que famílias tão importantes, os Médici que foram detentores do Banco mais poderoso da Europa e davam uma educação de enorme elevação tanto a filhas como filhos, podiam olhar para isto como aceitável? Como é que se coloca um ser humano na condição de escravo sexual de outro e se considera isso um casamento, se lhe chama sacramento abençoado pelo padre supremo da igreja?

Excerto para admirar a qualidade da escrita narrativa.

Sente-se muito nestes mundos da realeza o peso conservador das tradições, do "sempre foi assim", e por isso assim terá de continuar a ser, sem o que não seremos dignos dos nossos progenitores. Mas impressiona que tenham sido precisos séculos para que se começasse a questionar tudo isto. Na verdade essa realeza não mudou, tudo mudou porque essa realeza foi deposta na maior parte do planeta, permitindo que a humanidade avançasse e deixasse para trás tamanha barbárie.

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