maio 23, 2021

"O Passageiro" de Boschwitz

Ulrich Alexander Boschwitz publicou "The Passenger", numa primeira versão, em Inglaterra em 1939, onde chegou depois de ter fugido da Alemanha via um périplo de países — Suécia, França, Luxemburgo e Bélgica. Boschwitz viu-se obrigado a fugir da Alemanha em 1935, foi depois expulso do Luxemburgo, e em Inglaterra, após o início da segunda guerra, foi internado como "estrangeiro inimigo" num campo na Isle of Man, e no verão deportado para a Austrália. No regresso a Inglaterra, em 1942, o barco em que vinha, com mais 300 pessoas, foi torpedeado pelos alemães, resultando na morte de todos os viajantes. O livro desapareceria com ele, nunca mais sendo republicado. Em 2018, uma versão foi encontrada pela sobrinha do autor e completamente revista por Peter Graff, seguindo um conjunto de revisões deixadas pelo autor em cartas enviadas à sua mãe, e publicado na Alemanha, com a versão em inglês a ser publicada, e imensamente aclamada [1, 2, 3], em Abril 2021. 

O resumo acima é necessário porque espelha em parte o que acontece no livro, não sendo autobiográfico é profundamente baseado na experiência do autor, dando conta da vida de um empresário judeu, Otto Silbermann, nos dias imediatamente a seguir à Noite dos Cristais, e a sua tentativa de fuga da Alemanha, passando grande parte do livro a viajar por toda a Alemanha por meio de comboio, daí o título "O Passageiro".

Não faltam obras sobre a segunda guerra, nem sequer diários, contudo quis ler de imediato esta obra pela relação entre romance e documento que nos propõe. Não deixa de nos questionar que alguém que passe por tudo isto, ainda consiga encontrar dentro de si forças para dedicar à novelização dos eventos, em vez de simplesmente descrever, listar, ou gritar aos sete ventos o que lhe fizeram. O texto segue convenções do policial dos anos 1940, a fazer lembrar alguns dos filmes de Hitchcock dessa época, com um suspense clássico que nos mantém sempre colados à leitura até ao virar da última página.

Na Noite dos Cristais, 9 novembro 1938, lojas, casas e sinagogas da Alemanha foram destruídas, tendo resultado na morte de quase 100 judeus

Não se espere grandes novidades sobre o conflito, ainda assim dei por mim a racionalizar, mais uma vez, os modos através dos quais toda a sociedade alemã foi levada a embarcar na ideia nazi. Mas talvez o ponto mais relevante seja mesmo o modo como os países à volta da Alemanha lidaram com os judeus que quiseram fugir para os seus países, ou meramente atravessá-los para chegar a outros. Toda a ânsia e drama de Silbermann são vividos por conta do encerramento de fronteiras, não apenas as da Alemanha, mas também as dos países vizinhos. Já conhecia a recusa de aceitação de judeus refugiados nos EUA, mas ainda não tinha lido nada específico sobre os países vizinhos da Alemanha... 

É a partir do momento em que percebemos o modo como o mundo está a lidar com o que está a acontecer na Alemanha, em 1938, que o livro ganha maior profundidade. Esvai-se o efeito thriller do suspense, e inicia-se a exposição do sentir interior do personagem e do questionamento da sua relação com a sociedade alemã, o que faz com o que o livro se eleve bastante acima do mero policial.

Sem comentários:

Enviar um comentário