novembro 19, 2022

Imersão, literatura e videojogos

"A Oeste Nada de Novo" (1928) é uma leitura obrigatória sobre a I Grande Guerra (1914-1918), é um clássico. A particularidade do livro assenta numa escrita direta, a partir de uma primeira pessoa no interior da guerra; num tom quase confessional e em jeito de memórias que  apesar da passagem pela guerra do autor não o são; ao que se junta por fim uma perspectiva imparcial sobre o conflito. Esta abordagem oferece-nos assim uma experiência extremamente imersiva, pelo modo como se relata a partir do teatro de guerra, mas sem nos guiar ou procurar conduzir a qualquer tomada de posição sobre os diferentes lados do conflito. Em nenhum momento Erich Maria Remarque dá conta do que conduziu ao conflito, não fala das razões nem motivações de qualquer lado das trincheiras, nem se queixa ou culpa quem para ali o atirou. A imersão produzida coloca-nos em plena guerra, oferecendo-nos um olhar, o mais natural e inocente possível, sobre o estado das coisas por forma a obrigar-nos a questionar o fundamento de tudo aquilo que se vive na Guerra, algo que é profundamente contaminado pela força emocional contida em vários dos episódios experienciados pelo narrador.

novembro 12, 2022

Histórias que não fazem um livro

Strout demonstra algumas competências muito interessantes, nomeadamente no contar de pequenas histórias, mas apresenta imensas fragilidades quando sai do micro-conto. Mesmo que seja capaz de a largas passadas interligar os pontos, e criar boas recompensas, mais ainda inter-livros, não chega para atenuar o que falta no todo. "O meu nome é Lucy Barton" é de 2016 e "Oh, William!" de 2021, os pequenos momentos oferecidos pelo interior psicológico da personagem, acabam por não contribuir para qualquer ideia maior, nem em cada livro, nem em ambos lidos em sucessão. Talvez não ajude o facto dos livros sere imensamente pequenos, e claro não contarem uma história, mas apenas pequenas historias. Quando lemos o primeiro livro, e partimos para o seguinte, nada muda, continuamos no exato mesmo universo, a mesma escrita, a mesma personagem, o mesmo de tudo em mais páginas. Isto faz lembrar a academia atual, que pega na sua investigação e retalha em bocados para dar mais artigos, números mais elevados na contabilidade métrica. Apesar disso, não faltam louvores ao trabalho da autora, e agora mais recente à sua proficuidade. Mas todos estes livros na verdade não o são, são antes secções de mesmos livros que a autora, por alguma razão, preferiu ir publicando à medida que os foi terminando. Diga-se que para a sua editora é muito melhor assim. 

novembro 01, 2022

"Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio" (2021)

A história do livro é relevante, não só por tratar dos efeitos de famílias disfuncionais sobre menores, mas em particular porque a autora é especialista na jurisdição de família e menores. Contudo a estrutura criada para dar conta dessa mensagem perde-se no meio de um excesso de camadas simbólicas que acabam por ocultar aquilo que se pretende dizer.

A autora não se limitou a criar uma estrutura em que os 21 dias se movem ao revés, do final para o princípio. Acrescentou-lhe ainda todo um museu, o Rijksmuseum de Amsterdão, a partir do qual utiliza um conjunto de telas, desde "A Ronda da Noite" de Reembrandt a "Retrato de uma Jovem Mulher, com 'Puck' o Cão" de Thérèse Schwartze, a partir das quais vai realizando leituras e colocando em ação alguns dos seus elementos. E por fim, comete o pecado original português, do embelezamento do discurso com constantes figuras de estilo que contribuem para ofuscar ainda mais todo o significado do texto.

"A Ronda da Noite" (1642) de Reembrandt no Rijksmuseum

Faltou aconselhamento ou reflexão sobre os impactos desta estrutura. Os autores são livres, mas os autores não podem deixar de se colocar no lugar dos leitores, e tentar compreender como é que eles vão reconstruir a mensagem das suas obras. A liberdade artística não é total, o trabalho de um artista é um trabalho de comunicação, por mais que alguns artistas teimem em dizer que não criam para um público. Naturalmente espera-se que os artistas quebrem as regras, inventem, surpreendam, mas espera-se que o façam juntamente com todo um trabalho de ir ao encontro do seu público.

"Retrato de uma Jovem Mulher, com 'Puck' o Cão" (1879-1885) de Thérèse Schwartze

outubro 30, 2022

"Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow” (2022)

Em "Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow” de Gabrielle Zevin, dois adolescentes, Sam e Sadie, conhecem-se num hospital onde formam uma ligação de amizade jogando centenas de horas numa consola Nintendo. O resto do livro conta a sua história desde dos anos 1980 aos dias de hoje, desfiando desde o momento em que resolvem criar o primeiro jogo juntos até ao momento em que criam a sua empresa de jogos e começam a contratar pessoas. A história fala-nos da relação entre duas pessoas criativas, unidas pelo amor aos videojogos e um profundo sentimento de amizade. Ao longo das 400 páginas, que passam a voar, vários momentos complicados acontecem, muitas angústias são vividas, mas a compreensão do mundo e da vida à luz do design de videojogos é o que mantém toda o universo coerente e as personagens plenas de substrato.

Regular o capitalismo

Shoshana Zuboff é um nome que surge amiúde sempre que se fala dos impactos problemáticos das atuais tecnologias de comunicação, nomeadamente as produzidas pelas 4 grandes tecnológicas — GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon). Tendo lido uma enorme quantidade de coisas boas sobre a autora, que vem com o pedigree da Ivy League, não fiquei depois muito impressionado com o modo como discute a técnica por detrás da tecnologia, parecendo ficar muitas vezes à porta da complexidade desta, focando-se mais nos quadros de impactos macro, muitas vezes desligados da efetiva capacidade das tecnologias. E assim, talvez não seja surpreedente não ter gostado particularmente do seu livro "The Age of Surveillance Capitalism" (2019).

outubro 29, 2022

O foco desfocado

Cheguei a "Stolen Focus: Why You Can't Pay Attention- and How to Think Deeply Again" (2022) por meio de um excerto do mesmo que discutia as questões do multitasking, tendo logo ganho o meu interesse pelos resultados dos estudos que citava. Quando procurei mais pelo autor, percebi que vinha atrelado a acusações de plágio e consequente despedimento de um jornal britânico. Acreditando que as pessoas têm direito a reabilitação, decidi avançar para a leitura do livro, ainda que munido de algumas cautelas extra. A experiência final não foi das melhores, mas ainda me interrogo se foi por causa do seu passado, ou pela sua incapacidade de manter o foco, exatamente aquilo que no título diz pretender explicar a quem o lê. 

Do escurecimento provocado pelo cristianismo

Tivesse eu lido este livro há alguns anos, teria ficado chocado com o que aqui se escreve sobre a vasta destruição dos pagãos pelos cristãos. Contudo, nada disto pode ser apresentado desta forma leve, desde logo porque a destruição apresentada ocorreu ao longo de séculos, sendo aqui apresentada como uma sucessão narrativa de causas e efeitos imediatos, o que retira alguma credibilidade ao relato. Os clássicos têm dois mil anos, as evidências que temos do que aconteceu são fragmentos de fragmentos. Não podemos a partir dos mesmos, pegar em momentos avulso no tempo, escolhidos pela sua intensidade, e criar um fio condutor que explica tudo com uma única dimensão ou causalidade. Claro que num pequeno livro, tal como num documentário, sobre assuntos complexos, não se pode entrar pelo detalhe dos múltiplos pontos-de-vista, arriscando a fragmentar o discurso, perdendo o foco e a atenção do leitor/espectador. Mas a simplificação do complexo, por mais ressalvas de imparcialidade que se façam, tende demasiadas vezes a criar viéses marcados pelo que se escolhe apresentar e não apresentar.

outubro 23, 2022

"Cadernos da Água" de João Reis

A escrita muito direta, sem floreados nem simbolismos, mas elaborada e centrada no que está a acontecer, torna a leitura de "Cadernos da Água" (2022) próxima da experiência audiovisual. O mundo apresentado é distópico. Sofrem-se os efeitos das alterações climáticas que obrigam populações a deslocarem-se para zonas onde ainda existem recursos hídricos. O tom imprimido é particular, cruza a ação americana com a frieza escandinava, colocando-nos no lugar de portugueses refugiados fugidos de um país que já não existe. A particularidade da experiência estética criada só tem par em "Station Eleven" (2014) de Emily St. John Mandel.

setembro 19, 2022

Facebook e a Saúde Mental

O estudo, "Social Media and Mental Health" (2022) (publicado em preprint na SSRN, em breve disponível no American Economic Review) que retrata os efeitos do Facebook na saúde mental dos seus utilizadores foi tornado público por estes dias e os dados são pouco animadores. O estudo foi feito a partir de dados empíricos de: a) momento em que o Facebook foi tornado a acessível em cada universidade americana no ano de 2014, que permitiu perceber o exato momento em que cada aluno começou a aceder à ferramenta; e b) os questionários semi-anuais da National College Health Assessment, que chegam a mais de 430,000 respondentes, inquirindo sobre saúde mental e bem-estar nas universidades americanas. Os resultados: a introdução do Facebook nas universidades levou a um aumento da depressão grave em 7% e do distúrbio da ansiedade em 20%. Para além destes resultados, uma percentagem de estudantes iniciaram tratamento com psicoterapia e/ou antidepressivos. "O efeito negativo do Facebook é comparável, em magnitude, a cerca de 22% do efeito da perda de emprego na saúde mental". Os investigadores apontam como principal razão o facto do Facebook promover "comparações sociais desfavoráveis".