janeiro 29, 2020

"Vício" na rede e nos videojogos

Nas últimas semanas dediquei algum tempo a aprofundar a literatura científica sobre o alegado vício na internet e nos videojogos, porque me pediram para ir falar a uma escola sobre o tema e depois acabei por receber outro convite para ir à RTP2 falar do assunto. O tópico não me é distante, já que aquilo que se discute neste campo está intimamente ligado ao modo como as pessoas se deixam envolver pelos artefactos, o que no fundo acaba estando intimamente relacionado com o design de engajamento sobre o qual escrevi recentemente o livro "Engagement Design Designing for Interaction Motivations" que deverá sair em breve.
Aproveito assim para partilhar o programa da RTP2, o Sociedade Civil, no qual participaram também o Fernando Alvim e a Ivone Patrão. Foi uma conversa bastante leve e divertida. Sendo televisão, o espaço para aprofundamento científico é limitado, o objetivo era apenas lançar o tema e passar algumas ideias.
"Relação com a Internet", in Sociedade Civil, Ep. 11, 20 janeiro 2020 (ver no RTP Play)

Já na palestra que realizei hoje, no Agrupamento de Escolas de Estarreja, aproveitei para ir mais ao fundo da questão. Aliás, recordo agora que durante a VJ2019 um dos artigos focava esta questão do vício, e na altura os dados apresentados conduziam à ideia de que existiria mesmo algo distinto dos outros media nos videojogos. Contudo, do literature review que conduzi, focado em estudos e artigos de 2018 e 2019, não encontrei qualquer evidência de vício criado pelos videojogos em pessoas saudáveis. E foi exatamente seguindo estes preceitos que realizei a palestra. No final dos slides encontrarão todas as referências se quiserem aprofundar a temática.

janeiro 26, 2020

Que diria Hitchcock de "Us"?

Gostei de "Us" (2019) de Jordan Peele, mas não adorei como seria expectável. Tecnicamente é virtuoso, portador de enorme excelência no controlo e manipulação do espectador, fazendo uso dos simples atributos da linguagem fílmica de um modo totalmente ímpar. No domínio estritamente cinematográfico, Hitchcock teria tirado o chapéu a Peele, no resto é que tenho dúvidas.
A mensagem está lá, e bem à superfície, não são necessárias muitas explicações. Somos Nós, e só Nós, a tender para a destruição dos nossos sonhos. E se tenho de aceitar que Peele usa uma metáfora poderosa, julgo que se excede. Não podemos falar num estalo, estamos a falar de algo bastante mais bruto. A metáfora é intensa demais, é extrema, por isso acaba tornando-se no centro da discussão, deixando de lado o cerne de tudo aquilo que Peele teria para dizer.

Pode-se dizer que é apenas um filme de terror, mas os filmes de terror são filmes de género, não se esforçam desta maneira para construir ideias e conceitos. O terror serve para destronar as barreiras conscientes e levar as emoções ao rubro, não deve pelo meio querer que se pare para refletir. Ou é uma coisa, ou é outra, indo pelo meio acaba a fazer-nos rir. Como dizia Hitchcock “To be quite honest, content, I’m not interested in it at all. I don’t give a damn about what the film’s about. I’m more interested in how to handle the material to create an emotion in an audience".

Deixo mais duas curiosidades:

1 - Usar fatos vermelhos cria grande impacto visual, ajuda terrivelmente na produção do mundo-história, mas soa a deja vu após "A Casa de Papel".

2- Não nomear Lupita Nyong'o pelo papel absolutamente magnífico que faz neste filme, e por sua vez nomear Scarlett Johansson neste mesmo ano para melhor atriz e melhor atriz secundária, diz tudo sobre as razões pelas quais os Oscar são mera feira político-económica, sem qualquer caráter artístico de relevo.

janeiro 22, 2020

"My Year of Rest and Relaxation" (2018)

Nunca tinha ouvido falar de Otessa Moshfegh, vi este seu livro numa das muitas listas de livros da década ou dos anos da década e fui procurar mais. Encontrei referências a um prémio PEN/Hemingway e finalista do Booker e do National Book para o seu livro anterior, soube ainda que tem escrito contos para a Granta e para Paris Review. Apesar de americana é filha de pai iraniano e mãe croata. Além disto, aqui e ali dizia-se ser uma autora com traço peculiar e subversiva. Por outro lado, as recensões críticas deste seu novo livro estavam longe da unanimidade. Por isso interessou-me, mas nada disto me preparou para ficar agarrado logo na primeira página e continuar na segunda e assim ficar até ao fechar do livro.
Em “My Year of Rest and Relaxation” encontramos uma personagem feminina nova e bonita, recém-licenciada, vivendo em Nova Iorque no final do milénio passado. Quando entrou para a Universidade perdeu ambos os pais e teve de se desenrascar sozinha, conquanto estes lhe terem deixado meios para continuar a ter casa, comida e fazer o que quisesse sem preocupações financeiras. Prossegue licenciando-se em História de Arte, mas pouco depois de terminar, que é quando a encontramos, parece ser quando tudo finalmente se abate dentro de si. O seu único desejo é dormir, passar o máximo de tempo possível a dormir. Para o efeito recorre a uma psiquiatra alucinada que lhe vai passando drogas cada vez mais fortes para dormir, até começarem a produzir vários efeitos secundários.
Illustração de Dori Liou

No início, ficamos colados a tentar perceber o que leva alguém a querer dormir ininterruptamente, porque em última instância parece uma espécie de suicídio mas sem o problema da irreversibilidade, e talvez tenha sido isso que mais me atraiu. Embora, e tendo em conta as doses de medicamentos usadas, pudesse ser visto como mero entorpecimento por drogas, para esquecer o mundo, que é aquilo que acaba por acontecer com os toxicodependentes. Mas existe algo que descarta essa hipótese que é a consciência da realidade e vontade férrea de conseguir levar o seu projeto de dormir o máximo possível avante.

Se tudo isto é interessante pela estranheza, o enredo e as competências de Moshfegh não são menos já que passamos todo o tempo em casa com a protagonista que vai falando com outros personagens, mas poucos, o que demonstra a grande capacidade de contar e manter-nos interessados da autora. Num livro que atravessa pouco mais de um ano, esse ano é passado numa luta para conseguir dormir mais e mais, dentro de quatro paredes. Nada se faz, nada mais se pretende ou objetiva além de dormir, e no entanto ali estamos a seguir, interessados e focados, a tentar compreender a psique da personagem, a tentar perceber o que se passa na sua cabeça. É impressionante como tudo parece tão banal e natural e no entanto se pensarmos no que vai sendo representado em cada página, no modo como se vão criando mundo e ação de personagens, existe aqui uma capacidade expositiva excepcional atuando para nos manter focados no que irá acontecer a seguir, mesmo sabendo que pouco ou nada se espera que aconteça.

É provável que a escrita na primeira-pessoa e em jeito de memórias ajude, conferindo uma espécie de véu de verdade, mas isso é apenas parte da técnica Moshfegh. Acredito que é também responsável o humor negro utilizado para analisar e depreciar a realidade, as relações humanas, e mostrar o mundo a partir de um olhar distinto, desprendido das necessidades diárias — dinheiro, comida, amor — que nos dá a sentir um mundo em parte decadente, mas ao mesmo tempo liberto de pressões que parece querer conduzir-nos a uma compreensão mais cabal do que representa tudo isto e aquilo que costumamos definir como nós, ou Eu. Tendo em conta o cenário, defini-o como existencialismo naif, uma espécie de preocupação, simultaneamente despreocupada, com aquilo que somos e valemos.

O final é expectável, é impossível ler um livro passado naquelas datas, naquela cidade e não esperar que desemboque naquele fatídico dia, 11 setembro. No entanto ao bater naquela última página não consegui deixar de sentir intensamente o momento que fez com que aquela personagem rodasse integralmente na minha frente, passando em revista os vários momentos vividos com ela ao longo da leitura do livro. Porque querendo ou não, é um momento que recoloca de novo tudo em causa... Pode-se dizer que é uma manobra de Ottessa Moshfegh para garantir um murro emocional, mas repare-se que ela poderia ter gerado todo um turbilhão com o fechar desse dia, no entanto opta por uma descrição sintética, sem grandes divagações, e mais, ao longo das páginas anteriores vai pré-anunciando o evento, retirando-lhe a carga que poderia ter preservado para jogar sobre nós nesse final. Claro que se tivesse usado o evento dessa forma não teria como escapar à acusação acima. Por isso, estamos na presença de alguém muito consciente do que é a literatura, com um domínio magistral não apenas da técnica de escrita, como da compreensão dos leitores e da receção dos textos. Quanto às interpretações, cada um fará as suas.

Nota quantitativa no GoodReads.

janeiro 19, 2020

Virtual Illusion: textos de 2019 mais lidos

Este ano tinha decidido não listar os textos mais lidos, contudo como acabei dando conta de várias mensagens perdidas no blog, e andei a responder às mesmas, acabei por me fixar nos números, e extrair a lista que costumava fazer anteriormente. Na verdade, é interessante para o blog, porque permite a algumas pessoas repescar textos que lhes tinham passado, mas para mim acaba sendo também um profundo exercício de viagem mental no tempo que me permite olhar para as ideias do lado de fora. Permite-me não só recordar certos momentos de composição, mas mais importante do que isso obriga a refletir sobre essas ideias e a tentar compreender se ainda se mantém ou se foram entretanto alteradas. Por isso, talvez faça em breve este exercício para a última década, poderá ser muito interessante viajar dentro de posts ao longo de 10 anos.
1. Sobre o mito: “desde que se leia”, abril 2019
2. Quem fala inglês na Europa e porquê, janeiro 2019
3. SciMed e a humildade em ciência, abril 2019
4. Quando é necessário dizer Não, maio 2019
5. Talento ou motivação para criar?, maio 2019
6. Leonardo, março 2019
7. A ciência de Steven Pinker, e dos seus, junho 2019
8. Design de narrativa, desenho de significado na experiência interativa, abril 2019
9. Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável, janeiro 2019
10. Como ler um livro, outubro 2019
11. Viajar, uma volição de posse, abril 2019
12. Brincando com a mente, Claude Shannon, março 2019
13. Uriel da Costa (1585-1640), março 2019
14. Como começou a linguagem: a história da maior invenção da humanidade, agosto 2019
15. 5 razões porque é difícil fazer videojogos, julho 2019

janeiro 17, 2020

Bonjour Tristesse (1954)

É um pequeno livro, com uma história simples e banal, mas capaz de criar o seu mundo e transportar-nos para ele. Honestamente, tive de ir procurar as razões que fizeram deste livro um sucesso e um clássico, pois detendo-me sobre o texto apenas não as encontrei. Mas do que acabei lendo sobre o livro, também pouco ou nada me convenceu ou satisfez.
O livro conta a história de Cecile, 17 anos, que viaja de Paris para Saint-Tropez com o seu pai, para aí passar as férias de verão. O seu pai leva atrelado uma jovem namorada que a meio das férias resolve trocar por outra. Entretanto Cecile encontra um namorado de verão. Mas ao longo de praticamente todo o livro, pouco ou nada acontece. Existe um twist final, esse sim responsável pelo título, mas que não surpreende.

O livro terá surtido forte efeito por dar conta de uma jovem, aparentemente, libertina(!). A rapariga tem relações com um rapaz quase 10 anos mais velho, em plenas férias de verão. Mas o seu pai não parece muito preocupado. Aliás, se fossemos ficar chocados com ela, o que dizer do pai, que troca de namorada semana a semana, e em plenas férias manda vir uma outra mulher passar as férias consigo e com a filha, enquanto descarta a que inicialmente tinham vindo com eles?

Não sei. A mim a história nada diz, hoje ou em 1954. A literatura está cheia de histórias destas, não apenas depois, mas mesmo séculos antes. Por outro lado, não faltariam historietas de cordel com bastante mais picante nessa altura. Falar do livro como motor da revolução sexual parece-me um exagero. Por isso aquilo que existe aqui que me surpreende é apenas a idade de quem escreve. 17 anos e uma obra cosida desta forma, é obra.

O francês é acessível, nada de muito rebuscado no vocabulário, mas o encadeamento de ideias, a estrutura da narrativa e a construção de mundo ficcional, está tudo muito bem conseguido. Contudo, parece que era mesmo só técnica, já que Françoise Sagan escreveu imensos livros depois desta primeira obra, e nunca mais conseguiu repetir o feito. Pensando bem, "Bonjour Tristesse" mais do que uma história de ficção é um relato autobiográfico, um desfiar em modo novelesco de um conjunto de peripécias, que acabou encontrando o seu público, nada mais. E por isso é estranho, ou mesmo tonto, ver o Le Monde colocar um livro destes na lista das 100 obras mais importantes do século XX, mesmo que esta tenha tido, ou se pense que teve, grande impacto na sociedade francesa e europeia.

O arrepio que vem do Brasil

Há uns meses estive para fazer aqui um post sobre o filme "Menino 23", um documentário brasileiro de 2016 que dá conta da existência de células nazis no Brasil nos anos 1930. Acabei não o fazendo, porque o nazismo é por demais vezes citado para tudo justificar e por acreditar que é algo que não devemos banalizar. Contudo, nesta data, em que o Secretário da Cultura do Brasil, o maior responsável pela Cultura daquele país, lança um comunicado em vídeo, na rede, no qual ele próprio não só plagia textos de Joseph Goebbels, mas imita parâmetros estéticos de forma e conteúdo da propaganda Nazi, não devemos calar.
Repare-se na encenação do local — bandeira com fitas de honra, cruz patriarcal, fotografia do presidente e o resto limpo e austero — e depois na assertividade da linguagem corporal, facial e verbal, como toda a performance emula um tom de certeza absoluta, de Autoridade e Verdade, e ao mesmo tempo de ameaça, pronto a usar da força. Este secretário está longe dos tiques afetados de Goebbels (deem-lhe tempo e eles surgirão) mas a abordagem é a mesma, uma postura de afirmação de verdade única e prontidão para a confrontação.

Falar aqui da evocação da religião ou de Deus é totalmente secundário, muito mais grave é o uso da cruz patriarcal (para se colocar no topo hierarquia) juntamente com o reclamar de "lealdade" e "autossacríficio" para subjugar o povo, evidenciando quem domina, quem deve ser seguido. A partir daqui dizer-se então:
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada.Roberto Alvim, secretário da cultura do Brasil, 16 janeiro 2020
É arrepiante o que diz e quer dizer, mas é muito mais arrepiante saber quem o disse antes e em que condições e a que conduziram essas frases:
"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.Joseph Goebbels
Diz o secretário num tweet (porque não responde à imprensa), que "Foi apenas uma frase do meu discurso na qual havia uma coincidência retórica. Eu não citei ninguém". Bem, posso dizer que isto é o costumam responder os alunos quando são apanhados a plagiar. O problema é que não é só a forma do texto, são as ideias completas, como vemos no resto do texto:
"A cultura é a base da pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte.
(...)
São essas formas estéticas, geradas por uma arte nacional que agora começará a se desenhar, que terão o poder de nos conferir, a todos, energia e impulso para avançarmos na direção da construção de uma nova e pujante civilização brasileira."
Mas se restarem ainda dúvidas, peço-vos que atentem no facto do comunicado, apesar de provir de um membro do governo, vir com banda sonora musical, o que já por si configura a comunicação como propaganda política e não como comunicação de estado. Mas verificando que a música que corre por debaixo é uma ópera ("Lohengrin") de Richard Wagner, torna-se impossível não ver aqui a total orquestração estética da experiência propagandística nazi.

É claro que a direita brasileira pode evocar o facto dos anteriores governos, nomeadamente Lula, terem andado de mão-dada com ditadores de esquerda como Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas um erro não se conserta com outro erro. Menos ainda, quando se usa o pior que a História da Humanidade já conheceu, os causadores da II Guerra Mundial, o acontecimento mais mortífero de sempre perpetrado pela nossa espécie (Sapolsky, 2017).
Imagem do documentário "Menino 23" que podem ver completo, ainda que sem grande qualidade, no Youtube.

Fontes da notícia: 
O Globo, 16 e 17 janeiro 2020 
BBC Brasil, 17 janeiro 2020

janeiro 14, 2020

Envelhecendo com Noah

Há 14 anos expressava aqui o meu espanto com o primeiro vídeo de Noah, na altura feito com fotografias diárias de 6 anos. Hoje trago o vídeo em que Noah nos mostra a passagem de 20 anos em 8 minutos, criado a partir de 7263 fotografias tiradas, entre 11 de Janeiro 2000 e 11 de Janeiro 2020, uma por dia. Quando saiu o primeiro filme ainda não existia a palavra "selfie", quando aqui o partilhei, em 2007, contava com 5 milhões de visualizações, hoje conta com mais 20 milhões.
20 anos separam estas duas imagens

O filme, apesar de mais longo e envolvido numa nova música de Carly Comando — "Circadian" — continua tão hipnótico como o primeiro. Desta vez já não vemos Noah a tornar-se adulto, mas a a envelhecer, com a face a raiar e a pele a quebrar, recordando que também nós já disso nos apercebemos quando nos olhamos ao espelho.



Atualização: 15.1.2020 
Acabei de encontrar uma grande Entrevista com Noah Kalina, por Ryan Essmaker, de julho 2018 para a The Great Discontent, na qual ele fala sobre a sua carreira, o modo como começou e como sempre trabalhou em fotografia, sobre a relação arte e comércio e um conjunto de outros tópicos. Muito interessante.
"I think about it from time to time, and I don’t even know how you would start a career in photography now. You get yourself an Instagram account or something, I guess. But just generally, I’d say take a billion pictures. I mean, that’s what I did, and still do. It’s the only way you’re going to learn. And it’s a cliche, but: look at a lot of photography. Find what styles you like, and try to emulate them. You’ll become whatever you are as a photographer out of the mashup of photographers you admire."

““…people try to put you down, and to discourage you…But for some reason, I just didn’t care. I always believed there was going to be a way to make money doing photography.”

janeiro 06, 2020

Saunders, o Bardo retornado

Lembro-me de quando "Lincoln no Bardo" (2017) saiu, da comoção da crítica e do público, seguida de múltiplos prémios, mas só agora que o li me apercebi totalmente da motivação do uso da expressão Bardo. O meu primeiro contacto com a definição tinha sido exatamente por via do budismo do Tibete, no qual o conceito se define como espaço-tempo que intermedeia a morte e o renascimento. Contudo esta definição do termo é menos comum no ocidente, onde o bardo define também os contadores de histórias medievais — sendo um epíteto muito associado hoje a Shakespeare —, principais responsáveis pelas histórias que se contavam, nomeadamente das façanhas de reis e nobres, criadores da cultura que preservaria momentos e pessoas para a eternidade. Assim, enquanto fui contactando com o livro fui-me sempre movendo entre ambas as definições, apesar de ir lendo que se tratava de uma história passada num cemitério, lia também que era onde os fantasmas contavam as suas histórias. Quando agora resolvi entrar no livro e parei para ler um pouco sobre o mesmo, percebi que era concretamente do bardo tibetano que se falava, dito pelo próprio autor que utilizou tudo aquilo que condicionou o enterro do filho de Lincoln como motivo para o seu enredo no além. Contudo, e talvez contaminado por tudo isto que disse, ao chegar ao final do livro fiquei honestamente em dúvida. Sim, estamos naquele momento após a morte, em que os fantasmas/almas/pessoas aguardam pelo que há-de vir, que cada autor/pensador vai definindo em função da influência religiosa — do bardo ao purgatório, passando pelo limbo — mas na verdade, o que temos neste livro são histórias, histórias de vidas simples e de presidentes quase-reis. Saunders não só "foi" ao Bardo pescar essas histórias, como se transformou ele próprio no Bardo que as relata para todo o sempre.
Entrando no livro, aconselho previamente o visionamento de “Lincoln” (2012), um filme muito acessível sobre os momentos marcantes da presidência de Abraham Lincoln, em que Steven Spielberg explica porque este 16º presidente se tornou num dos três mais influentes da história dos EUA. Para além disso, interessa saber que um, dos três de quatro dos seus filhos que morreram, tendo morrido em 1962, em plena Guerra Civil americana, ficou temporariamente num cemitério em Washington até ser trasladado com o pai em 1965 para a morada final no Illinois. Saunders aproveita este hiato tornado acontecimento, com tudo aquilo que historicamente o circundou, para produzir a sua ficção.
Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln no filme "Lincoln" (2012) de Steven Spielberg

“Lincoln no Bardo” poderia assim ser mais um livro de ficção-histórica, ainda que original pela componente fortemente fantasiosa, ao utilizar o pós-morte para dar conta dos efeitos e impactos da História, mas é mais do que isso. Porque se tudo isto que até aqui relatei parece original, dá apenas conta do contexto daquilo que é a verdadeira originalidade da obra. Saunders queria mais, não fosse ele reconhecido pela sua veia mais cómico-sarcástica, por isso além das vozes dos mortos, resolveu ir buscar vozes reais de registos deixados por múltiplas pessoas que viveram os dias que cercaram o dia retratado no livro. Deste modo, temos além da ficção, registos reais transcritos com aspas — de diários, cartas, registos estatais, livros, jornais, etc. — que Saunders entremeia num relato único. É uma escrita imensamente comum no meio académico — a narração do investigador intermediada com as citações de múltiplos outros autores em debate —, mas imensamente estranha em romance, mesmo histórico.
Lincoln lendo para o seu filho mais novo, Thomas "Tad" Lincoln

Contudo se o ponto de partida (o bardo) e a estrutura (intermediação entre ficção e registos escritos reais) eram já caso para oferecer o rótulo de originalidade, o que realmente faz do livro uma obra original é a inovação de Saunders, ao transformar a forma para nos dar a sentir diferentemente. Ele faz isso exatamente através do cruzamento entre o real e o ficcional, nomeadamente entre as vozes/pensamentos/corpos dos mortos e dos vivos. O presidente Lincoln é dado a ver e a sentir como em nenhuma outra obra antes, tal como aquilo que sente um pai quando perde um filho, e um filho que parte e deixa o pai para trás. Claro que o momento é per se imensamente melodramático, mas o relato de Saunders está longe da lamechice, antes cruza habilmente humor e melancolia, como tão raras vezes se pôde já ver. Porque é de verdade histórica que se trata, de humanos que existiram, mas é de muitos outros que sendo meras invenções em busca da consciência do estado em que se encontram, servem de veículos, de autênticos condutores, entre mundos, pessoas e sentires.
"Lincoln in the Bardo: 360 VR Video" (2017) The New York Times

Notas finais. Além do Booker, o livro foi adaptado a audiolivro tendo sido utilizadas vozes de 160 atores para dar conta da imensidade humana que atravessa o livro, tendo ainda um excerto sido adaptado para uma instalação do New York Times, que pode ser experienciado em parte no Youtube 360º.

janeiro 05, 2020

“The Leftovers” (2014)

Ao acabar a primeira temporada de “The Leftovers” estava estupefacto com a escrita. Puro malabarismo thriller, só conseguia pensar em "S.", "Annihilation" ou “Lost”, e em todas as séries que se baseiam em grandes eventos inexplicáveis — como “Flashforward” ou “Under the Dome” — e nos agarram, e nos prendem, mesmo sabendo nós que não existem respostas. Entretanto percebi que o cocriador de “The Leftovers” tinha sido também o cocriador de “Lost”, Damon Lindelof, e que a série vinha recomendada pelo próprio Stephen King.  Como é que se consegue criar assim? A partir de tão pouco parecer dizer tanto, como se o dissesse diretamente a cada um dos espetadores, premindo os seus botões emocionais, mantendo-os ali presos ao fio narrativo, sabendo estes que nada há ali? Ajuda imenso a partitura de Max Richter que parece tudo fazer levitar e conduzir para um desejar acreditar, para entrar no mundo da série para sentir, sentir, sentir...
A principal técnica de escrita aqui usada é o mistério, tal como JJ Abrams revelou na sua TED, nada mais importa ao leitor/espectador. O virtuosismo assenta no conseguir apresentar o mistério de forma credível e levá-lo até ao limite, obrigando o recetor a imaginar tudo aquilo que é o seu próprio mundo, dentro do espaço que o autor lhe oferece. É isso que torna a abordagem tão emocionalmente poderosa, a dotação de carga pessoal.

Por outro lado, quando colamos o mistério ao sentido da vida humana tudo ganha outra dimensão, e é isso que tão brilhantemente foi feito aqui. Não existem respostas, porque não podem existir, tudo é um jogo, tudo é um questionamento contínuo, sem fim, aconteçam as coisas mais bizarras, ad hoc, aleatórias que aconteçam é a vida a ser apenas a vida... poderia escrever sem fim, e andaria sempre a volta disto, porque daqui não conseguimos sair, e por isso o melhor será deixar-vos com um conjunto de palavras que acabo de ler na Esquire, a propósito da temporada 3, mas que dão conta do que senti no final desta primeira temporada:
“Part of our human experience on this planet is finding peace in an existence defined by the unknown. Although we may seek calm in religion, in science, we'll never know the answers to those existential questions which have driven humanity since they crawled out of caves. Yes, we've unlocked a deeper understanding of physics and chemistry and comfort in Christianity or Buddhism, but that greater question—"why?"—will always be there.
The Leftovers never set out to answer these bigger questions. It's a TV show—that would be ridiculous. Instead, The Leftovers was about the journey that we all experience in contemplating mortality, confusion, religion, loss, grief, and our own mind.” Matt Miller, in Esquire, (2017)