“David Copperfield” foi a minha segunda incursão pelo universo de Dickens, depois de “Grandes Esperanças” (1861). Dickens é um ícone das letras britânicas, elemento fundamental dessa engrenagem literária, o Eça inglês, continuamente idolatrado pelos seus concidadãos que pela força da imposição da cultura anglo-saxónica no mundo tem feito de Dickens um ícone da cultura mundial. A sua escrita tem a vantagem de cruzar uma enorme eloquência com personagens e tramas simples, completamente liberto dos complexos e obscuros traços do romantismo, imensamente fluída e conhecedora das necessidades do enredo, o que faz com que facilmente consiga chegar a um grande público.
Quando li “Grandes Esperanças” deixei-me levar pelas interpretações aduzidas por muitos dos estudiosos da sua obra, e acabei aceitando algumas fragilidades como qualidades. Contudo desta vez furtei-me a aceitar outras interpretações, desde logo porque experimentei enfado durante 2/3 da leitura. Dickens escreve de forma belíssima, mas alonga-se, estende-se, dilata desnecessariamente as tramas que vai urdindo. Podemos pensar que o facto de estarmos a ler uma obra com mais de 150 anos torna inevitável o choque de velocidades a que se vive e por consequência pensa e sente. Ainda assim e descontando esse fator, não chega, nomeadamente se comparado com outras obras desta época, considero existir algo mais por detrás desta forma de escrever.
Dickens iniciou-se na escrita como jornalista, e o seu primeiro livro “The Pickwick Papers” (1837) surge a partir de um conjunto de textos publicados mensalmente num jornal como crónica ficcional seriada, a partir do que depois se compilou o seu primeiro livro, tal como hoje conhecemos. Todos os seus restantes livros seguiram o mesmo modelo, o que volvidos mais de 10 anos, e mais de 10 obras, terá contribuído para a construção de um modo perfeitamente rotinado de criação e escrita. “David Copperfield” acusa terrivelmente o impacto dessas rotinas, transformadas em artifícios e expedientes para manter a chama do leitor acesa. Neste sentido, temos imensos capítulos que podemos rotular de “enchimento", em que nada acontece, em que o autor se detém em particularidades completamente irrelevantes para a trama central, ou até mesmo para os protagonistas da obra. Não sendo Dickens um esteta nem um filósofo, estes momentos sentem-se com demasiado impacto, porque não acrescentam nada a trama, mas também não acrescentam nada ao romance em si, à sua cosmovisão.
Por outro lado, este modo rotinado de escrever tende a perder-se nos mecanismos narrativos de manutenção do sistema de relações causais, numa lógica de construção de consistência à superfície, mas que secundariza o aprofundamento de nós narrativos e nomeadamente de personagens, já que exigem toda uma outra postura investigativa e de dedicação de quem escreve. Assim, e apesar do romance ter mais de mil páginas (nas edições clássicas), e de ser inteiramente dedicado a um único personagem, David Copperfield, conseguimos chegar ao final da viagem sem conhecer completamente David, ou melhor, conhecendo apenas o David bondoso, generoso e caridoso, podemos quase dizer, David o santo que caminha sempre em frente e no caminho certo. Nada ficamos a saber sobre o David que não gosta, que detesta, que se revolta contra as injustiças, que se quer vingar, como se esse David não existisse, fosse homem pronto a ser canonizado, apesar de todas as maldades, algumas autênticas desumanidades, que lhe vão sendo impostas tanto pelos mais próximos, como pelos mais distantes e indiferentes.
Dickens escreve de forma belíssima, merece com certeza todo o lugar de destaque nas letras britânicas, até porque li apenas dois livros e o homem fez tanto mais para além dos livros que escreveu. Mas não nos deixemos seduzir pelo endeusamento do ícone para em tudo ver apenas qualidades e excecionalidades.
janeiro 25, 2019
janeiro 21, 2019
Regresso a "Choose Your Own Adventure"
Voltei a este formato de livros apenas para poder analisar melhor as técnicas e o design por detrás das escolhas oferecidas ao leitor. Para quem não conhece, "Mystery of the Maya" pertence a uma série que dá pelo nome de "Escolha a Sua Própria Aventura" criada por Edward Packard, que consiste em fazer desenrolar uma aventura base que se diversifica por meio de escolhas conducentes a uma miríade de diferentes desenlaces. O leitor é personagem da própria história e as decisões do personagem são as suas.
A nostalgia que tinha destes livros era fraca. As vezes em que lhes peguei nunca me convenceram. Sempre que chegava ao final da página e surgiam as escolhas desistia. Durante anos convenci-me que este modo de gerar interação com histórias era ridículo. Quando vi os primeiros filmes — "I'm Your Man" (1992) — com este sistema de escolhas, fiquei ainda mais certo disso. As escolhas pareciam ser mais dirigidas a quem escreve o livro ou realiza o filme, e menos a quem vive uma história. É verdade que as histórias se alteravam com grande impacto, mas eu não sentia as escolhas como algo pessoal, mas antes como algo distante, fora de mim. Ou seja, escolhia apenas para ver no que dava, eram escolhas de lógica e não emocionais. Por mais emotivo que o enredo fosse, as escolhas pareciam surgir como meros nós de definição do desenrolar dos eventos, e não como uma verdadeira ação minha. As consequências eram enormes, mas não eram motivadas por mim, apesar de supostamente ter sido eu a escolher. Era como se eu estivesse apenas a tentar aceder às diferentes opções que o autor me dava, nada mais.
Isto mudou com os videojogos, mas apenas neste milénio, já que nos anos 1980 e 1990 tivemos muitos que se socorriam do mesmo paradigma de escolhas e sem sucesso. Foi com videojogos como "Heavy Rain" (2010), "Mass Effect" (2007), "Life is Strange" (2015) ou ainda "The Walking Dead" (2012) que pela primeira vez experimentámos escolhas emocionais. O personagem existe, tem vida própria na história, mas em certos momentos somos chamados a decidir por ele, e desse modo, as escolhas acabam por estranhamente tornar-se pessoais. Ou seja, constrói-se um modelo empático entre o leitor e o personagem, e depois então inserem-se as escolhas, deste modo, vemo-nos numa relação de obrigação para com o personagem. Por meio da empatia gerada, sentimos como ele e por ele, e por isso as escolhas que fizermos fazem-nos sentir aquilo que acontece ao personagem no desenrolar da narrativa.
Ao ler este pequeno livro, “Mystery of the Maya” (1981), voltei a viajar no tempo das técnicas de escolhas. A série tem cerca de 60 livros, mas este é um dos 4 ou 5 mais citados, nomeadamente por ter bastantes finais, 39, alguns bastante alucinantes. Mas como disse, as nossas escolhas não impactam o sentimento narrativo, elas são como nós lógicos que nos permitem ver variantes de um universo, como se fossem máquinas do tempo que nos permitem aceder a: “e se fosse assim”. Claramente que isto pode ser atrativo para um público juvenil, até aos 10 anos, nomeadamente aquele público mais dedicado à experimentação e a sistemas, que gosta de perceber como funcionam as coisas e o mundo. Estes livros dão-se muito bem a esse público porque lhes permite visualizar todo o sistema narrativo como mapa de nós, e perscrutar assim todos os caminhos possíveis. Já para o público que tenha adquirido o gosto pelo contar de histórias, que tenha encontrado o acesso aos sentires dos personagens e suas interdependências com os mundos-história, estes livros dirão muito pouco.
Artigos de interesse sobre a série:
These Maps Reveal the Hidden Structures of ‘Choose Your Own Adventure’ Books, Atlas Obscura
One Book, Many Readings, Christian Swinehart
A Brief History of Choose Your Own Adventure, Edward Packard
A Brief History of "Choose Your Own Adventure", Jack Rossen
A nostalgia que tinha destes livros era fraca. As vezes em que lhes peguei nunca me convenceram. Sempre que chegava ao final da página e surgiam as escolhas desistia. Durante anos convenci-me que este modo de gerar interação com histórias era ridículo. Quando vi os primeiros filmes — "I'm Your Man" (1992) — com este sistema de escolhas, fiquei ainda mais certo disso. As escolhas pareciam ser mais dirigidas a quem escreve o livro ou realiza o filme, e menos a quem vive uma história. É verdade que as histórias se alteravam com grande impacto, mas eu não sentia as escolhas como algo pessoal, mas antes como algo distante, fora de mim. Ou seja, escolhia apenas para ver no que dava, eram escolhas de lógica e não emocionais. Por mais emotivo que o enredo fosse, as escolhas pareciam surgir como meros nós de definição do desenrolar dos eventos, e não como uma verdadeira ação minha. As consequências eram enormes, mas não eram motivadas por mim, apesar de supostamente ter sido eu a escolher. Era como se eu estivesse apenas a tentar aceder às diferentes opções que o autor me dava, nada mais.
Ao ler este pequeno livro, “Mystery of the Maya” (1981), voltei a viajar no tempo das técnicas de escolhas. A série tem cerca de 60 livros, mas este é um dos 4 ou 5 mais citados, nomeadamente por ter bastantes finais, 39, alguns bastante alucinantes. Mas como disse, as nossas escolhas não impactam o sentimento narrativo, elas são como nós lógicos que nos permitem ver variantes de um universo, como se fossem máquinas do tempo que nos permitem aceder a: “e se fosse assim”. Claramente que isto pode ser atrativo para um público juvenil, até aos 10 anos, nomeadamente aquele público mais dedicado à experimentação e a sistemas, que gosta de perceber como funcionam as coisas e o mundo. Estes livros dão-se muito bem a esse público porque lhes permite visualizar todo o sistema narrativo como mapa de nós, e perscrutar assim todos os caminhos possíveis. Já para o público que tenha adquirido o gosto pelo contar de histórias, que tenha encontrado o acesso aos sentires dos personagens e suas interdependências com os mundos-história, estes livros dirão muito pouco.
Artigos de interesse sobre a série:
These Maps Reveal the Hidden Structures of ‘Choose Your Own Adventure’ Books, Atlas Obscura
One Book, Many Readings, Christian Swinehart
A Brief History of Choose Your Own Adventure, Edward Packard
A Brief History of "Choose Your Own Adventure", Jack Rossen
janeiro 18, 2019
Melancolia sim, misantropia não
Talvez se tivesse lido "O Náufrago" (1983), de Thomas Bernhard, com 20 anos o tivesse admirado diferentemente. Num tempo em que almejava tornar-me cineasta, sonhava realizar os meus filmes e acreditava que a culpa por isso não acontecer era de todos os outros que não compreendiam tal. O artista estava acima do mundo, via mais longe, via diferente porque era diferente, e fazia questão de ser diferente, era melhor do que todos. Mas o crescimento, o amadurecimento e a aprendizagem daquilo que constitui o mundo e o real leva-nos a compreender que diferentes somos todos. E por isso, se a escrita de Thomas Bernhard é muito boa, a história que tem para contar neste pequeno livro é demasiado imberbe, apesar dos seus 52 anos à data de escrita.
O narrador conta-nos a sua história, focando-se sobre o período em que conheceu e estudou com Wertheimer e Glenn Gould (o pianista real) no curso superior de música em Salzburgo. Dá conta do antes e do depois, de quem ele e Wertheimer eram e foram depois de conhecer o génio do piano. Assim, o narrador desiste de um dia para o outro do piano, e Wertheimer simplesmente termina com a sua vida. Ao longo das 150 páginas, Thomas Bernhard dedica-se a desconstruir, em repetição e com amplas contradições, numa espécie de fluxo de consciência mas perfeitamente linearizada, o porquê do sucedido. Fá-lo seguindo uma lógica de culpa, todos desde a escola de música, aos professores, à família, pais e irmã, amigos, a Áustria, Salzburgo, Viena e seus cidadãos, todos tiveram culpa. Tanto Wertheimer como o narrador, são apresentados como puros misantropos, que acreditam que o mundo conspirou contra eles.
Chegados ao final, podemos questionar: que é feito da suposta alta sensibilidade do artista, como é que essa não lhe permitiu ver através da mediocridade da culpa? Essa sensibilidade serve apenas para sentir o seu próprio umbigo? Afinal que sensibilidade artística é essa? Diga-se que não me surpreende, olhando para muitas comunidades de artistas jovens, e outras menos jovens, ainda hoje, é exatamente este discurso de Bernhard que continuo a ver, e por isso não admira que ao resto da sociedade não reste outra opção que seja ignorar.
Porque melancolia é muito diferente de misantropia, e é preciso aprender a lidar com a diferença. Desse modo deixo excertos do discurso inaugural proferido por David Foster Wallace, para os alunos de artes do Kenyon College, EUA, a 21 de maio de 2005, entretanto publicado como “This Is Water: Some Thoughts, Delivered on a Significant Occasion, about Living a Compassionate Life” (texto completo inglês e português), que ilustra bem o caminho de aprendizagem do Ser.
This is Water, David Foster Wallace, 21 maio de 2005
Não é a primeira vez que cito este texto de DFW, em 2013 trouxe-o aqui porque tinha sido alvo de um belíssimo trabalho de ilustração audiovisual.
O narrador conta-nos a sua história, focando-se sobre o período em que conheceu e estudou com Wertheimer e Glenn Gould (o pianista real) no curso superior de música em Salzburgo. Dá conta do antes e do depois, de quem ele e Wertheimer eram e foram depois de conhecer o génio do piano. Assim, o narrador desiste de um dia para o outro do piano, e Wertheimer simplesmente termina com a sua vida. Ao longo das 150 páginas, Thomas Bernhard dedica-se a desconstruir, em repetição e com amplas contradições, numa espécie de fluxo de consciência mas perfeitamente linearizada, o porquê do sucedido. Fá-lo seguindo uma lógica de culpa, todos desde a escola de música, aos professores, à família, pais e irmã, amigos, a Áustria, Salzburgo, Viena e seus cidadãos, todos tiveram culpa. Tanto Wertheimer como o narrador, são apresentados como puros misantropos, que acreditam que o mundo conspirou contra eles.
Chegados ao final, podemos questionar: que é feito da suposta alta sensibilidade do artista, como é que essa não lhe permitiu ver através da mediocridade da culpa? Essa sensibilidade serve apenas para sentir o seu próprio umbigo? Afinal que sensibilidade artística é essa? Diga-se que não me surpreende, olhando para muitas comunidades de artistas jovens, e outras menos jovens, ainda hoje, é exatamente este discurso de Bernhard que continuo a ver, e por isso não admira que ao resto da sociedade não reste outra opção que seja ignorar.
Porque melancolia é muito diferente de misantropia, e é preciso aprender a lidar com a diferença. Desse modo deixo excertos do discurso inaugural proferido por David Foster Wallace, para os alunos de artes do Kenyon College, EUA, a 21 de maio de 2005, entretanto publicado como “This Is Water: Some Thoughts, Delivered on a Significant Occasion, about Living a Compassionate Life” (texto completo inglês e português), que ilustra bem o caminho de aprendizagem do Ser.
This is Water, David Foster Wallace, 21 maio de 2005
"Here is just one example of the total wrongness of something I tend to be automatically sure of: everything in my own immediate experience supports my deep belief that I am the absolute centre of the universe; the realest, most vivid and important person in existence. We rarely think about this sort of natural, basic self-centredness because it's so socially repulsive. But it's pretty much the same for all of us. It is our default setting, hard-wired into our boards at birth. Think about it: there is no experience you have had that you are not the absolute centre of.
(..)
it is extremely difficult to stay alert and attentive, instead of getting hypnotised by the constant monologue inside your own head (may be happening right now). Twenty years after my own graduation, I have come gradually to understand that the liberal arts cliché about teaching you how to think is actually shorthand for a much deeper, more serious idea: learning how to think really means learning how to exercise some control over how and what you think. It means being conscious and aware enough to choose what you pay attention to and to choose how you construct meaning from experience. Because if you cannot exercise this kind of choice in adult life, you will be totally hosed. Think of the old cliché about "the mind being an excellent servant but a terrible master".
This, like many clichés, so lame and unexciting on the surface, actually expresses a great and terrible truth. It is not the least bit coincidental that adults who commit suicide with firearms almost always shoot themselves in: the head. They shoot the terrible master. And the truth is that most of these suicides are actually dead long before they pull the trigger.
(..)
By way of example, let's say it's an average adult day, and you get up in the morning, go to your challenging, white-collar, college-graduate job, and you work hard for eight or ten hours, and at the end of the day you're tired and somewhat stressed and all you want is to go home (..) remember there's no food at home (..) of course it's the time of day when all the other people with jobs also try to squeeze in some grocery shopping. And the store is hideously lit and infused with soul-killing muzak or corporate pop and it's pretty much the last place you want to be but you can't just get in and quickly out; you have to wander all over the huge, over-lit store's confusing aisles to find the stuff you want and you have to manoeuvre your junky cart (..) now it turns out there aren't enough check-out lanes open even though it's the end-of-the-day rush. So the checkout line is incredibly long, which is stupid and infuriating. But you can't take your frustration out on the frantic lady working the register, who is overworked at a job whose daily tedium and meaninglessness surpasses the imagination of any of us here at a prestigious college.
(..)
The point is that petty, frustrating crap like this is exactly where the work of choosing is gonna come in. Because the traffic jams and crowded aisles and long checkout lines give me time to think, and if I don't make a conscious decision about how to think and what to pay attention to, I'm gonna be pissed and miserable every time I have to shop. Because my natural default setting is the certainty that situations like this are really all about me. About MY hungriness and MY fatigue and MY desire to just get home, and it's going to seem for all the world like everybody else is just in my way. And who are all these people in my way? And look at how repulsive most of them are, and how stupid and cow-like and dead-eyed and nonhuman they seem in the checkout line, or at how annoying and rude it is that people are talking loudly on cell phones in the middle of the line. And look at how deeply and personally unfair this is.
(..)
But most days, if you're aware enough to give yourself a choice, you can choose to look differently at this fat, dead-eyed, over-made-up lady who just screamed at her kid in the checkout line. Maybe she's not usually like this. Maybe she's been up three straight nights holding the hand of a husband who is dying of bone cancer. Or maybe this very lady is the low-wage clerk at the motor vehicle department, who just yesterday helped your spouse resolve a horrific, infuriating, red-tape problem through some small act of bureaucratic kindness. Of course, none of this is likely, but it's also not impossible. (..) If you're automatically sure that you know what reality is, and you are operating on your default setting, then you, like me, probably won't consider possibilities that aren't annoying and miserable. (..) The only thing that's capital-T True is that you get to decide how you're gonna try to see it.
(..)
This, I submit, is the freedom of a real education, of learning how to be well-adjusted. You get to consciously decide what has meaning and what doesn't."
Não é a primeira vez que cito este texto de DFW, em 2013 trouxe-o aqui porque tinha sido alvo de um belíssimo trabalho de ilustração audiovisual.
janeiro 12, 2019
Quem fala inglês na Europa e porquê
A partir de uma visualização do mapa europeu, com percentagens de população capaz de manter uma conversa em inglês, poderíamos rapidamente inferir que afinal o impacto do cinema e música, que a esmagadora maioria de portugueses consome em inglês e legendado, não surte grande efeito nas nossas capacidades linguísticas. Diferencia-nos muito pouco dos colegas de península que só vêem cinema na sua língua, e ouvem muito mais música própria. Depois começamos a olhar para o resto do mapa, e parece surgir um padrão, a Europa do Norte fala muito mais inglês que a Europa do Sul. Porquê?
Uma primeira resposta que surge de imediato é o facto da Europa do Sul ser mais pobre, e ter menores níveis educativos. Com este indicador poderíamos atacar o nosso país mais uma vez, pelo seu problema crónico de falta Educação, dizendo que tudo se resolveria com maior investimento no ensino da língua inglesa. Isto é suportado pela correlação entre o GDP dos países europeus e o seu domínio do inglês, o mais baixo tem menor domínio do inglês. No entanto, se olharmos melhor para o mapa, nem a Europa do Sul nem o baixo GDP, encaixam no mesmo padrão. A Grécia apresenta uma percentagem tão alta como a Alemanha.
O criador do mapa original, Jakub Marian, resolveu então olhar para os dados e estratificar as diferenças de falantes de inglês em função dos idioma de origem — Românicas, Germânicas, Helénicas, Bálticas, Eslavas e Fino-úgricas. — e então um padrão novo emerge. O inglês é uma língua germânica, já o português, espanhol, francês, italiano e romenos são línguas românicas. As variáveis de GDP e de vizinhança, entre outras, terão o seu peso nesta distribuição, ainda assim é inevitável reconhecer o peso da herança cultural. Talvez por isso mesmo, devíamos pensar em não desprezar a nossa língua como desprezamos, menos ainda aqueles que produzem cultura todos os dias nas nossas línguas. Claro que podemos sempre optar por esquecer quem somos.
O criador do mapa original, Jakub Marian, resolveu então olhar para os dados e estratificar as diferenças de falantes de inglês em função dos idioma de origem — Românicas, Germânicas, Helénicas, Bálticas, Eslavas e Fino-úgricas. — e então um padrão novo emerge. O inglês é uma língua germânica, já o português, espanhol, francês, italiano e romenos são línguas românicas. As variáveis de GDP e de vizinhança, entre outras, terão o seu peso nesta distribuição, ainda assim é inevitável reconhecer o peso da herança cultural. Talvez por isso mesmo, devíamos pensar em não desprezar a nossa língua como desprezamos, menos ainda aqueles que produzem cultura todos os dias nas nossas línguas. Claro que podemos sempre optar por esquecer quem somos.
janeiro 08, 2019
Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável
“Red Dead Redemption 2” (RDR2) fica como sinónimo do mais completo e irrepreensível mundo-história criado até hoje nos videojogos, o que é diferente de dizer que é um videojogo perfeito. A experiência criada pela obra, ao longo de mais de 60 horas, vai para além daquilo a que o cinema nos habituou, aproximando-se, amiúde, da experiência literária, mantendo, no entanto, sempre a sua marca como videojogo. O que impede a obra de ser perfeita é talvez também aquilo que a torna tão singular, a teimosia da visão pessoal, autoral, do seu diretor criativo Dan Houser (44), nomeadamente no design de jogo e de narrativa.
Parte I
Começando pelo melhor, e mais impactante, o mundo-história. É uma vitória da multidisciplinaridade entre a arte e a tecnologia, contando para o efeito com todo um trabalho de qualidade elevada em quase todos os domínios das artes narrativas — mundos, personagens e eventos — das artes visuais — modelação (elementos estáticos: arquitetura e geografia; e dinâmicos: pessoas e animais), texturas, iluminação (atmosfera e clima), animação, cinematografia ¬— das artes sonoras — design de som e música — assim como artes cénicas — performances, guarda-roupa e palcos (interiores e exteriores). Mas este trabalho artístico, de altíssimo nível, só se dá à criação desse mundo-história admirável porque conjuntamente com este se estenderam até ao limite as possibilidades tecnológicas que garantem a vivacidade do mundo, assentes numa variedade de sistemas computacionais, nomeadamente inteligência artificial de suporte ao movimento, a animação de todo o mundo, tanto nos campos áudio e visual como sistemicamente, com a rede de eventos e micro-eventos, por via das uniões, interseções e interdependências, a garantir níveis impressionantes de organicidade.
A entrada no mundo aberto pleno, na primeira visita que fazemos a uma vila, logo após a fase introdutória do jogo, é de total estupefação, os nossos olhos nem querem acreditar no que estão a presenciar, a navegação pelo universo é quase surreal, ultrapassando tudo o que o cinema ou os parques temáticos já nos tinham oferecido. Não é questão de interatividade, é acima de tudo um trabalho de direção de arte, que ao contrário do que acontecia no cinema, em que se construíam maquetes para filmar e se procuravam geografias alusivas, pode aqui controlar tudo desde o primeiro ao último pixel. Temos paredes, portas, janelas, carroças e palanques de madeira que transpiram texturas de madeira, lama no chão que brilha com chuva e levanta em pó com o sol, tal como as roupas, os cabelos e as peles, todas as formas nunca perfeitas, nunca iguais, nunca simétricas. Ao que se juntam miríades de objetos —cordas, laços, roupas, candeeiros, caixas, cartazes, quadros, fotografias, armas, guitarras, cachimbos, etc. etc. — pendurados nas paredes, nas portas, nas carroças, nas pessoas. Mas se o mundo estático impacta, é o seu movimento, a miríade de animações que suportam as pessoas, nas suas formas de andar particulares de cada personagem, os animais — cães, cavalos, galinhas, pássaros, esquilos — que correm e saltam, as carroças que atascam na lama, que andam mais rápido em descidas do que em subidas, as suas rodas que ficam carregadas de lama e sobem quando pisam pequenas pedras, é a luz do sol e as sombras das nuvens carregadas que nos fazem sentir cada momento, como um momento vivo.
Claro que se fosse isto, uma representação em movimento, era uma animação excecional mas não diferente de outras maravilhas que o cinema de animação já nos ofereceu, a diferença é que este mundo descrito não surge apenas em pequenos quadros e durante breves segundos, este mundo está ali pronto a ser experimentado pelo tempo que nós quisermos e em 360º. Por isso, não basta animá-lo é preciso garantir a sua interatividade, e aí a Rockstar vai aonde nenhum jogo foi, com centenas de pessoas singulares — com traços extraídos de mais de 1200 atores — em movimento contínuo nas vilas, tratando das suas vidas, com quem podemos falar, que sempre têm uma palavra para nos dizer ou uma expressão para fazer. Ao que se juntam quase duas centenas de animais, cada um com o seu comportamento, e capaz de se relacionar com humanos assim como com outros animais, em função do seu lugar na cadeia alimentar. E ainda, meios de transporte — carroças, diligências, comboios, trolleys, barcos, barcos a motor — dezenas de armas e equipamentos — lanternas, máquina fotográficas, laços, binóculos, canas de pesca, sacolas e peles.
Todo este manancial de elementos em movimento é gerido por um sistema complexo que fornece vários níveis de autonomia a cada camada do universo, conseguindo criar a ilusão de um mundo onde penetramos, tal Alice, e sentimos como realidade, vivo. Esta componente orgânica acaba por ser responsável pelo nosso deslumbre, não apenas pela beleza e complexidade, mas também pela capacidade de nos surpreender graças ao que vai emergindo da junção de tantos elementos e das suas interações, tal como nos surpreendemos todos os dias com o mundo em que vivemos.
Parte II
Passando agora àquilo que impossibilita RDR2 de ser perfeito, e que tem servido para impedir o mesmo de ganhar os maiores galardões dos festivais de videojogos — o Design de Jogo — tenho de dizer que até ao final, antes de entrar nos dois epílogos, considerei que eram meras opções estéticas da Rockstar e Dan Houser, mas quando começaram a subir os créditos, e vi como tinha sido tratado o Design de Narrativa, fui obrigado a redimir-me e aceitar as críticas que vêm sendo feitas. Aquilo que foi feito com estes dois epílogos, juntamente com o design de jogo das missões, mostra uma teimosia artística incapaz de aceitar o conhecimento e savoir faire do design. Começo pelo jogo e depois falarei da narrativa.
A Rockstar tem fama pela incoerência do design entre o mundo aberto e as missões. Nos mundos, os jogadores podem fazer quase tudo o quiserem, mas nas missões não podem fazer nada que não esteja pré-estabelecido, algo que as discussões recentes têm gostado de confrontar com uma suposta superioridade do mundo aberto e agência de "The Legend of Zelda: Breath of the Wild" (ver Mark Brown e Discussão sobre agência em RDR2). Discordo desta visão, desde logo porque muito daquilo que Zelda faz é a custa de uma narrativa vazia, mas porque o problema da Rockstar não é esse, esse é antes uma consequência de uma opção estética, ou obsessão, e que tem que ver com o facto da Rockstar se manter agarrada a um ideal que foi ultrapassado pelas necessidades do meio, a imitação cinematográfica. Assim, procura diminuir ao mínimo possível os sistema de informação de suporte ao jogo (UI ou HUD), mantendo a interação quase toda a um nível diegético, impedindo que se utilizem sistemas de feedback de competências e experiência (Skill Trees) ou de progresso (analíticas e métricas de mundo e equipamento), como fazem hoje todos os jogos em mundo-aberto, de "Assassin’s Creed" a "Witcher 3" (2015) ou "Horizon Zero Dawn" (2017). Ora sem estes sistemas, que organizam todo o mundo virtual, e oferecem feedback ao jogador, torna-se complicado, se não impossível, fazer passar aquilo que vamos fazendo no mundo aberto para as missões da história. Nas entrevistas Rob Nelson, um dos produtores de RDR2, fala muito do sistema de Honra, que vai ficando mais negativo ou positivo, consoante o modo como nos vamos comportando, mas na verdade isso nunca afeta o desenrolar das missões. Do mesmo modo, temos de comer, porque ficamos magros ou gordos, mas isso não impacta nada no resto do jogo, porque o jogo não tem um sistema de feedback que alerte o jogador. O jogador não pode estar a meio de uma missão e cair para o lado com fome ou sono, se ele não sabe a percentagem de fome ou sono que ainda lhe resta quando decide entrar na missão. Ou seja, o jogo “fala” com o jogador apenas por meio diegético (mostra que estamos magros ou que temos olheiras, mas para determinar o impacto desse feedback, seria preciso todo um manual de nuances e tempo de aprendizagem para ler esses sinais) mas esse não é suficiente para criar sistemas com a complexidade do que se espera de um mundo-aberto. Pode funcionar, em jogos lineares e bem delimitados, como “The Last Guardian” (2016), mas é impossível de realizar num jogo abrangente como RDR2.
Por fim, o design de narrativa, mas aqui tenho de avisar que entrarei com spoilers, mas avisando. Antes de atacar os epílogos, dizer que existe muito de genial neste jogo, no campo do design de narrativa, sendo o melhor, o início de cada missão. Todas, sem exceção começam com Arthur a seguir para a missão com um ou vários companheiros, a cavalo ou a pé, durante o que se dão breves conversas, que estão magistralmente bem escritas, não apenas porque realizam toda a exposição necessária, sem precisarmos de qualquer cutscene, como pela performance desse guião se consegue criar o sentimento de cada um dos 23 indivíduos que constituem o gangue de Dutch, Arthur e Marston. Mas se isto é o melhor, acaba sendo também responsável pela separação forte, em termos narrativos, que se sente entre o mundo-aberto e as missões, porque apesar de a Rockstar dizer que todos os personagens reagem a nós, e são dotados de imensas linhas de diálogo e expressões, a verdade é que nenhuma dessas capacidades dos NPC se compara nunca a nenhuma das performances que “vivenciamos” com cada um dos elementos em cada missão. São esses momentos, em que nos preparamos para avançar para a “quest”, que nos fazem entrar no espírito daquele gangue, compreender quem são aquelas pessoas, o que as uniu e mantém unidas, o que as singulariza e acaba dando toda a vida de que RDR2 é feito. Nestes momentos respira-se forte inspiração literária, e por mero acaso andava a ler "David Copperfield", sentindo a momentos algo no tom que aproximava imenso RDR2 de Dickens. Parecia-me estranho até que li uma entrevista com Dan Houser, em que este dizia que se tinha servido de centenas de referências, "mas nada contemporâneo para não o virem a acusar de roubar ideias", dando conta de Henry James, Keats, Émile Zola, Arthur Conan Doyle, frisando esta pérola — "Mas não há maior personagem na história da literatura do que Uriah Heep" — uma personagem de "David Copperfield" de Dickens, explicando o que senti, e tanto daquilo que temos por detrás daqueles personagens do gangue.
*** Spoilers *********************************
Epílogos. RDR2 termina verdadeiramente quando Arthur Morgan morre. Basta procurar as resenhas, as leituras e tributos feitos na net ao jogo, e veremos que Arthur é o personagem que agarrou o imaginário dos jogadores (https://www.youtube.com/watch?v=ES1Td5Pm2IE ). O personagem está imensamente bem escrito, e é suportado por uma performance e curva dramática soberbas. O jogo é sobre Arthur, não sobre John Marston. Sim, antes de RDR2 a audiência vivia fascinada por Marston, ele seria o ego da série, e talvez isso também tenha pesado na decisão de criar dois epílogos de 3 horas cada um, para nos colocar a jogar como Marston, mas foi um erro colossal como podemos ver em vários textos na rede (Forbes, VGR, Collider). Quando Arthur morre, senti o zénite de RDR2, senti a perfeição de uma história, a sua mensagem total ali plasmada e fechada. Os dois epílogos oferecem nada, mesmo a parte final, da morte de Micah, é completamente irrelevante, se era para matar alguém, era Dutch quem queria morto, desde que ele abandonou Arthur à sua sorte. Ainda assim, se os epílogos fossem uma ou duas missões na quinta, para fecharem em modo espiritual, agora horas a fio de tarefas inconsequentes, com mais gangues sanguinárias, e apenas Marston e três amigos para encher. Quando cheguei ao final dos epílogos já nem queria ouvir a música da banda sonora, só queria desligar, fechar, de tão aborrecido que estava. Para mim, não se tratou de nenhum epílogo, mas antes de dois DLC enxertados no final do jogo, um dedicado a Abigail e outro dedicado aos três amigos — Tio, Charles e Sadie e à Quinta. O design de narrativa falha completamente na gestão emocional do jogador, não aproveita a relação criada com a personagem, que deixou marca, para fazer o jogador passar por dois epílogos distantes, sem qualquer relação emocional com as 50 horas que tinha acabado de jogar.
****************************************************
Dito tudo isto, quero fechar apenas dizendo que RDR2 é uma das maiores conquistas desta geração de videojogos. Tecnicamente será superado pela próxima geração, mas o Gangue de Dutch e Arthur Morgan ficarão na memória dos videojogos, nomeadamente na de todos aqueles que jogaram esta maravilha do entretenimento, arte e design.
Referências
Red Dead Redemption 2: A deep dive into Rockstar’s game design, VentureBeat
Red Dead Redemption 2 – how advanced AI and physics create the most believable open world yet, VG247
The Story Behind the Story of ‘Red Dead Redemption 2’, Variety
How the West Was Digitized The making of Rockstar Games’ Red Dead Redemption 2, Vulture
Red Dead Redemption 2: The inside story of the most lifelike video game ever, Entrevista Dan Houser pela GQ
Rockstar Games Reveals New Plot Details for 'Red Dead Redemption 2', Entrevista com os diretores de arte, Hollywood Reporter
Red Dead Redemption 2 Is True Art, NYT
Avec Red Dear Redemption Interview Rob Nelson, JeuxActu
Parte I
Começando pelo melhor, e mais impactante, o mundo-história. É uma vitória da multidisciplinaridade entre a arte e a tecnologia, contando para o efeito com todo um trabalho de qualidade elevada em quase todos os domínios das artes narrativas — mundos, personagens e eventos — das artes visuais — modelação (elementos estáticos: arquitetura e geografia; e dinâmicos: pessoas e animais), texturas, iluminação (atmosfera e clima), animação, cinematografia ¬— das artes sonoras — design de som e música — assim como artes cénicas — performances, guarda-roupa e palcos (interiores e exteriores). Mas este trabalho artístico, de altíssimo nível, só se dá à criação desse mundo-história admirável porque conjuntamente com este se estenderam até ao limite as possibilidades tecnológicas que garantem a vivacidade do mundo, assentes numa variedade de sistemas computacionais, nomeadamente inteligência artificial de suporte ao movimento, a animação de todo o mundo, tanto nos campos áudio e visual como sistemicamente, com a rede de eventos e micro-eventos, por via das uniões, interseções e interdependências, a garantir níveis impressionantes de organicidade.
A entrada no mundo aberto pleno, na primeira visita que fazemos a uma vila, logo após a fase introdutória do jogo, é de total estupefação, os nossos olhos nem querem acreditar no que estão a presenciar, a navegação pelo universo é quase surreal, ultrapassando tudo o que o cinema ou os parques temáticos já nos tinham oferecido. Não é questão de interatividade, é acima de tudo um trabalho de direção de arte, que ao contrário do que acontecia no cinema, em que se construíam maquetes para filmar e se procuravam geografias alusivas, pode aqui controlar tudo desde o primeiro ao último pixel. Temos paredes, portas, janelas, carroças e palanques de madeira que transpiram texturas de madeira, lama no chão que brilha com chuva e levanta em pó com o sol, tal como as roupas, os cabelos e as peles, todas as formas nunca perfeitas, nunca iguais, nunca simétricas. Ao que se juntam miríades de objetos —cordas, laços, roupas, candeeiros, caixas, cartazes, quadros, fotografias, armas, guitarras, cachimbos, etc. etc. — pendurados nas paredes, nas portas, nas carroças, nas pessoas. Mas se o mundo estático impacta, é o seu movimento, a miríade de animações que suportam as pessoas, nas suas formas de andar particulares de cada personagem, os animais — cães, cavalos, galinhas, pássaros, esquilos — que correm e saltam, as carroças que atascam na lama, que andam mais rápido em descidas do que em subidas, as suas rodas que ficam carregadas de lama e sobem quando pisam pequenas pedras, é a luz do sol e as sombras das nuvens carregadas que nos fazem sentir cada momento, como um momento vivo.
Claro que se fosse isto, uma representação em movimento, era uma animação excecional mas não diferente de outras maravilhas que o cinema de animação já nos ofereceu, a diferença é que este mundo descrito não surge apenas em pequenos quadros e durante breves segundos, este mundo está ali pronto a ser experimentado pelo tempo que nós quisermos e em 360º. Por isso, não basta animá-lo é preciso garantir a sua interatividade, e aí a Rockstar vai aonde nenhum jogo foi, com centenas de pessoas singulares — com traços extraídos de mais de 1200 atores — em movimento contínuo nas vilas, tratando das suas vidas, com quem podemos falar, que sempre têm uma palavra para nos dizer ou uma expressão para fazer. Ao que se juntam quase duas centenas de animais, cada um com o seu comportamento, e capaz de se relacionar com humanos assim como com outros animais, em função do seu lugar na cadeia alimentar. E ainda, meios de transporte — carroças, diligências, comboios, trolleys, barcos, barcos a motor — dezenas de armas e equipamentos — lanternas, máquina fotográficas, laços, binóculos, canas de pesca, sacolas e peles.
Todo este manancial de elementos em movimento é gerido por um sistema complexo que fornece vários níveis de autonomia a cada camada do universo, conseguindo criar a ilusão de um mundo onde penetramos, tal Alice, e sentimos como realidade, vivo. Esta componente orgânica acaba por ser responsável pelo nosso deslumbre, não apenas pela beleza e complexidade, mas também pela capacidade de nos surpreender graças ao que vai emergindo da junção de tantos elementos e das suas interações, tal como nos surpreendemos todos os dias com o mundo em que vivemos.
Parte II
Passando agora àquilo que impossibilita RDR2 de ser perfeito, e que tem servido para impedir o mesmo de ganhar os maiores galardões dos festivais de videojogos — o Design de Jogo — tenho de dizer que até ao final, antes de entrar nos dois epílogos, considerei que eram meras opções estéticas da Rockstar e Dan Houser, mas quando começaram a subir os créditos, e vi como tinha sido tratado o Design de Narrativa, fui obrigado a redimir-me e aceitar as críticas que vêm sendo feitas. Aquilo que foi feito com estes dois epílogos, juntamente com o design de jogo das missões, mostra uma teimosia artística incapaz de aceitar o conhecimento e savoir faire do design. Começo pelo jogo e depois falarei da narrativa.
A Rockstar tem fama pela incoerência do design entre o mundo aberto e as missões. Nos mundos, os jogadores podem fazer quase tudo o quiserem, mas nas missões não podem fazer nada que não esteja pré-estabelecido, algo que as discussões recentes têm gostado de confrontar com uma suposta superioridade do mundo aberto e agência de "The Legend of Zelda: Breath of the Wild" (ver Mark Brown e Discussão sobre agência em RDR2). Discordo desta visão, desde logo porque muito daquilo que Zelda faz é a custa de uma narrativa vazia, mas porque o problema da Rockstar não é esse, esse é antes uma consequência de uma opção estética, ou obsessão, e que tem que ver com o facto da Rockstar se manter agarrada a um ideal que foi ultrapassado pelas necessidades do meio, a imitação cinematográfica. Assim, procura diminuir ao mínimo possível os sistema de informação de suporte ao jogo (UI ou HUD), mantendo a interação quase toda a um nível diegético, impedindo que se utilizem sistemas de feedback de competências e experiência (Skill Trees) ou de progresso (analíticas e métricas de mundo e equipamento), como fazem hoje todos os jogos em mundo-aberto, de "Assassin’s Creed" a "Witcher 3" (2015) ou "Horizon Zero Dawn" (2017). Ora sem estes sistemas, que organizam todo o mundo virtual, e oferecem feedback ao jogador, torna-se complicado, se não impossível, fazer passar aquilo que vamos fazendo no mundo aberto para as missões da história. Nas entrevistas Rob Nelson, um dos produtores de RDR2, fala muito do sistema de Honra, que vai ficando mais negativo ou positivo, consoante o modo como nos vamos comportando, mas na verdade isso nunca afeta o desenrolar das missões. Do mesmo modo, temos de comer, porque ficamos magros ou gordos, mas isso não impacta nada no resto do jogo, porque o jogo não tem um sistema de feedback que alerte o jogador. O jogador não pode estar a meio de uma missão e cair para o lado com fome ou sono, se ele não sabe a percentagem de fome ou sono que ainda lhe resta quando decide entrar na missão. Ou seja, o jogo “fala” com o jogador apenas por meio diegético (mostra que estamos magros ou que temos olheiras, mas para determinar o impacto desse feedback, seria preciso todo um manual de nuances e tempo de aprendizagem para ler esses sinais) mas esse não é suficiente para criar sistemas com a complexidade do que se espera de um mundo-aberto. Pode funcionar, em jogos lineares e bem delimitados, como “The Last Guardian” (2016), mas é impossível de realizar num jogo abrangente como RDR2.
Por fim, o design de narrativa, mas aqui tenho de avisar que entrarei com spoilers, mas avisando. Antes de atacar os epílogos, dizer que existe muito de genial neste jogo, no campo do design de narrativa, sendo o melhor, o início de cada missão. Todas, sem exceção começam com Arthur a seguir para a missão com um ou vários companheiros, a cavalo ou a pé, durante o que se dão breves conversas, que estão magistralmente bem escritas, não apenas porque realizam toda a exposição necessária, sem precisarmos de qualquer cutscene, como pela performance desse guião se consegue criar o sentimento de cada um dos 23 indivíduos que constituem o gangue de Dutch, Arthur e Marston. Mas se isto é o melhor, acaba sendo também responsável pela separação forte, em termos narrativos, que se sente entre o mundo-aberto e as missões, porque apesar de a Rockstar dizer que todos os personagens reagem a nós, e são dotados de imensas linhas de diálogo e expressões, a verdade é que nenhuma dessas capacidades dos NPC se compara nunca a nenhuma das performances que “vivenciamos” com cada um dos elementos em cada missão. São esses momentos, em que nos preparamos para avançar para a “quest”, que nos fazem entrar no espírito daquele gangue, compreender quem são aquelas pessoas, o que as uniu e mantém unidas, o que as singulariza e acaba dando toda a vida de que RDR2 é feito. Nestes momentos respira-se forte inspiração literária, e por mero acaso andava a ler "David Copperfield", sentindo a momentos algo no tom que aproximava imenso RDR2 de Dickens. Parecia-me estranho até que li uma entrevista com Dan Houser, em que este dizia que se tinha servido de centenas de referências, "mas nada contemporâneo para não o virem a acusar de roubar ideias", dando conta de Henry James, Keats, Émile Zola, Arthur Conan Doyle, frisando esta pérola — "Mas não há maior personagem na história da literatura do que Uriah Heep" — uma personagem de "David Copperfield" de Dickens, explicando o que senti, e tanto daquilo que temos por detrás daqueles personagens do gangue.
*** Spoilers *********************************
Epílogos. RDR2 termina verdadeiramente quando Arthur Morgan morre. Basta procurar as resenhas, as leituras e tributos feitos na net ao jogo, e veremos que Arthur é o personagem que agarrou o imaginário dos jogadores (https://www.youtube.com/watch?v=ES1Td5Pm2IE ). O personagem está imensamente bem escrito, e é suportado por uma performance e curva dramática soberbas. O jogo é sobre Arthur, não sobre John Marston. Sim, antes de RDR2 a audiência vivia fascinada por Marston, ele seria o ego da série, e talvez isso também tenha pesado na decisão de criar dois epílogos de 3 horas cada um, para nos colocar a jogar como Marston, mas foi um erro colossal como podemos ver em vários textos na rede (Forbes, VGR, Collider). Quando Arthur morre, senti o zénite de RDR2, senti a perfeição de uma história, a sua mensagem total ali plasmada e fechada. Os dois epílogos oferecem nada, mesmo a parte final, da morte de Micah, é completamente irrelevante, se era para matar alguém, era Dutch quem queria morto, desde que ele abandonou Arthur à sua sorte. Ainda assim, se os epílogos fossem uma ou duas missões na quinta, para fecharem em modo espiritual, agora horas a fio de tarefas inconsequentes, com mais gangues sanguinárias, e apenas Marston e três amigos para encher. Quando cheguei ao final dos epílogos já nem queria ouvir a música da banda sonora, só queria desligar, fechar, de tão aborrecido que estava. Para mim, não se tratou de nenhum epílogo, mas antes de dois DLC enxertados no final do jogo, um dedicado a Abigail e outro dedicado aos três amigos — Tio, Charles e Sadie e à Quinta. O design de narrativa falha completamente na gestão emocional do jogador, não aproveita a relação criada com a personagem, que deixou marca, para fazer o jogador passar por dois epílogos distantes, sem qualquer relação emocional com as 50 horas que tinha acabado de jogar.
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Dito tudo isto, quero fechar apenas dizendo que RDR2 é uma das maiores conquistas desta geração de videojogos. Tecnicamente será superado pela próxima geração, mas o Gangue de Dutch e Arthur Morgan ficarão na memória dos videojogos, nomeadamente na de todos aqueles que jogaram esta maravilha do entretenimento, arte e design.
Referências
Red Dead Redemption 2: A deep dive into Rockstar’s game design, VentureBeat
Red Dead Redemption 2 – how advanced AI and physics create the most believable open world yet, VG247
The Story Behind the Story of ‘Red Dead Redemption 2’, Variety
How the West Was Digitized The making of Rockstar Games’ Red Dead Redemption 2, Vulture
Red Dead Redemption 2: The inside story of the most lifelike video game ever, Entrevista Dan Houser pela GQ
Rockstar Games Reveals New Plot Details for 'Red Dead Redemption 2', Entrevista com os diretores de arte, Hollywood Reporter
Red Dead Redemption 2 Is True Art, NYT
Avec Red Dear Redemption Interview Rob Nelson, JeuxActu
janeiro 04, 2019
Ilustrar e animar a justiça e moral
Nem sempre é fácil compreender ou explicar conceitos como justiça e moral, muitas vezes carregados de preconceito e imaginários erróneos. O primeiro associa-se a tribunais, a juízes e advogados que acontece em salas escuras, com muito jargão à mistura e pouco clareza. O segundo, surge muitas vezes como lei emanada das religiões que pululam nas diferentes comunidades, parecendo fazer parte de um qualquer mantra transcendente e inacessível. No entanto, ambos formam o principal pilar de sustentação de qualquer comunidade, sem justiça nem moral, tarde ou cedo qualquer comunidade colapsa.
Nesta nova animação, "Hors de l'eau" (2018), de Simon Duong Van Huyen, Joël Durand, Thibault Leclercq, Valentin Lucas e Andrei Sitari, grupo de alunos da escola francesa GOBELINS, apresenta-se em apenas 8 minutos, uma parábola com macacos-japoneses que nos dá compreender o sentido de Justiça e Moral na sociedade, sem recurso a infografia, texto ou sequer diálogo. O comportamento aqui representado não é claramente o desta espécie de macacos, como foi já expresso em algumas reações ao filme, ele serve no entanto de veículo à representação do comportamento da nossa espécie.
Em relação à animação, a relatar que esta foi criada a partir de uma mistura entre fotografia real e ilustração 2d, o que lhe confere uma estética particular, com momentos extremamente bem conseguidos. Nomeadamente melhores na animação e na ilustração 2d, com alguns muito bons momentos na relação com a fotografia real, mas nem sempre porque o trabalho de unir animação e fotografia é complexo. Ainda assim, um trabalho excepcional, tanto do argumento como na componente estética final da animação.
Atualização 15.4.2019
Entretanto descobri que os macacos e a piscina natural de água quente são reais, existem mesmo na região de Yamanouchi, Nagano, Japão. O local é um parque protegido — Jigokudani Monkey Park — contudo muito fustigado por turistas, como se pode ver na imagem abaixo.
Nesta nova animação, "Hors de l'eau" (2018), de Simon Duong Van Huyen, Joël Durand, Thibault Leclercq, Valentin Lucas e Andrei Sitari, grupo de alunos da escola francesa GOBELINS, apresenta-se em apenas 8 minutos, uma parábola com macacos-japoneses que nos dá compreender o sentido de Justiça e Moral na sociedade, sem recurso a infografia, texto ou sequer diálogo. O comportamento aqui representado não é claramente o desta espécie de macacos, como foi já expresso em algumas reações ao filme, ele serve no entanto de veículo à representação do comportamento da nossa espécie.
Em relação à animação, a relatar que esta foi criada a partir de uma mistura entre fotografia real e ilustração 2d, o que lhe confere uma estética particular, com momentos extremamente bem conseguidos. Nomeadamente melhores na animação e na ilustração 2d, com alguns muito bons momentos na relação com a fotografia real, mas nem sempre porque o trabalho de unir animação e fotografia é complexo. Ainda assim, um trabalho excepcional, tanto do argumento como na componente estética final da animação.
"Hors de l’eau" (2018) da Gobelins, Facebook
Atualização 15.4.2019
Entretanto descobri que os macacos e a piscina natural de água quente são reais, existem mesmo na região de Yamanouchi, Nagano, Japão. O local é um parque protegido — Jigokudani Monkey Park — contudo muito fustigado por turistas, como se pode ver na imagem abaixo.
janeiro 03, 2019
10 posts de 2018
Em 2018 este blog fez 15 anos. Ainda me custa encarar tanto ano, é muito tempo, mas passa, e nunca pára, e cada vez mais rápido. Do que ficou deste ano, pouco mais de 100 posts, e pouco mais de 100 mil visitas, e apesar de contar para mim mais os textos que aqui vou deixando, não quero fechar o ano sem deixar aqueles que recolheram mais entusiasmo junto de quem lê. Por isso aqui ficam os 10 textos mais lidos, por ordem descendente.
1 - Cowboys Youtubers, 1.2018
2 - Fábula da Academia do século XXI, 7, 2018
3 - Humor com poder transformador, 7.2018
4 - Design de Comportamento, 10.2018
5 - Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia, 9.2018
6 - A Cultura de Imitação Chinesa, 2.2018
7 - Primeiro Eça, depois os Maias, 7.2018
8 - La Casa de Papel (2017), 4.2018
9 - Divina Comédia (1320), 2.2018
10 - Monumentos feitos de Livros, 7.2018
"O Empíreo" (1861) por Gustave Doré a partir da "Divina Comédia" (1320) de Dante
1 - Cowboys Youtubers, 1.2018
2 - Fábula da Academia do século XXI, 7, 2018
3 - Humor com poder transformador, 7.2018
4 - Design de Comportamento, 10.2018
5 - Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia, 9.2018
6 - A Cultura de Imitação Chinesa, 2.2018
7 - Primeiro Eça, depois os Maias, 7.2018
8 - La Casa de Papel (2017), 4.2018
9 - Divina Comédia (1320), 2.2018
10 - Monumentos feitos de Livros, 7.2018
janeiro 02, 2019
os dez melhores lidos em 2018
Aproveito para deixar aqui uma pequena lista de livros, independentemente de serem ficção ou não-ficção, assim como do ano em que foram escritos ou publicados, representando apenas e só as minhas melhores experiências de leitura ao longo do ano 2018. São 10 livros que recomendaria a qualquer pessoa, não são os únicos a que dei 5 estrelas este ano, mas são os 10 que recomendaria como leitura fundamental ,pela sua capacidade de nos transformar. Se quiserem ver a lista completa, fica a página do GoodReads.
"A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer", (1952), Stig Dagerman
"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" (2000), Michael Chabon
"Demónios" (1872), Fiódor Dostoiévski
"Educated" (2018), Tara Westover
"Filhos da Meia-Noite, Os" (1981), Salman Rushdie
"Ilusões Perdidas" (1837), Honoré de Balzac
"Imaginação e Criatividade na Infância" (1930), Lev Vygotsky,
"Manual dos Inquisidores, O" (1996), António Lobo Antunes
"Neve" (2002), Orhan Pamuk
"Order of Time, The", (2017), Carlo Rovelli
Os livros são apresentados por ordem alfabética. Podem ler as resenhas de cada um clicando nos mesmos.
"A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer", (1952), Stig Dagerman
"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" (2000), Michael Chabon
"Demónios" (1872), Fiódor Dostoiévski
"Educated" (2018), Tara Westover
"Filhos da Meia-Noite, Os" (1981), Salman Rushdie
"Ilusões Perdidas" (1837), Honoré de Balzac
"Imaginação e Criatividade na Infância" (1930), Lev Vygotsky,
"Manual dos Inquisidores, O" (1996), António Lobo Antunes
"Neve" (2002), Orhan Pamuk
"Order of Time, The", (2017), Carlo Rovelli
Os livros são apresentados por ordem alfabética. Podem ler as resenhas de cada um clicando nos mesmos.
dezembro 31, 2018
Medeia (431 a.c.)
Uma viagem de 2500 anos para encontrar um problema humano que continua igual a si mesmo, capaz ainda hoje das mesmas consequências trágicas. Antes de se iniciar o relato de Eurípides, Medeia terá traído o pai e morto o irmão para ajudar Jasão e os Argonautas, abandonando depois o seu país com Jasão, de quem viria a ter dois filhos. O relato começa com Medeia já na Grécia, um país estranho para ela, descobrindo que Jason decidiu abandoná-la para casar com a filha de Creonte, rei de Corinto. O que sucede depois só pode ser tragédia, mas porquê?
De tanto que se poderia destacar nesta pequena peça de Eurípedes opto por me focar nesta questão porque ao longo dos anos me tenho debruçado invariavelmente sobre ela, dada a intensa emocionalidade que tende a gerar, sendo grandemente responsável por muito daquilo que conhecemos hoje como violência doméstica. Aliás, não é por acaso que nos meus 30 livros preferidos tenho “Os Dias do Abandono” (2002) de Elena Ferrante, o livro que me veio de imediato à mente assim que comecei a “ouvir a voz” de Medeia.
A meio da peça Jasão apresenta as suas razões para casar com a filha do rei, que como diz o Coro e Medeia, não passam de bem falar, sem substrato. Repare-se como é este o cerne: a razão para o abandono. Porque o casamento não é uma cerimónia, é um contrato, um contrato que requer uma razão para ser quebrado. O problema é que a razão precisa de satisfazer ambas as partes no mesmo momento, e isso só muito raramente acontece. Assim, quando não existe o encontro e a sincronia entre as partes para aceitar o fim, abandonamos o reino da razão e da lógica, e entramos pelo reino exclusivo da emoção adentro. Aí começam a surgir os grandes substantivos — traição, deslealdade, engano, impostura — que levam ao pior do humano: a vingança, a punição, a destruição.
"Medeia e a Urna" (1873) de Anselm Feuerbach
De tanto que se poderia destacar nesta pequena peça de Eurípedes opto por me focar nesta questão porque ao longo dos anos me tenho debruçado invariavelmente sobre ela, dada a intensa emocionalidade que tende a gerar, sendo grandemente responsável por muito daquilo que conhecemos hoje como violência doméstica. Aliás, não é por acaso que nos meus 30 livros preferidos tenho “Os Dias do Abandono” (2002) de Elena Ferrante, o livro que me veio de imediato à mente assim que comecei a “ouvir a voz” de Medeia.
A meio da peça Jasão apresenta as suas razões para casar com a filha do rei, que como diz o Coro e Medeia, não passam de bem falar, sem substrato. Repare-se como é este o cerne: a razão para o abandono. Porque o casamento não é uma cerimónia, é um contrato, um contrato que requer uma razão para ser quebrado. O problema é que a razão precisa de satisfazer ambas as partes no mesmo momento, e isso só muito raramente acontece. Assim, quando não existe o encontro e a sincronia entre as partes para aceitar o fim, abandonamos o reino da razão e da lógica, e entramos pelo reino exclusivo da emoção adentro. Aí começam a surgir os grandes substantivos — traição, deslealdade, engano, impostura — que levam ao pior do humano: a vingança, a punição, a destruição.
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