agosto 25, 2023

"Filho Nativo" (1940) de Richard Wright

"Filho Nativo" (1940) é um clássico da literatura americana, um dos primeiros livros a colocar o dedo na ferida do racismo nos EUA. À altura, Richard Wright vivia sob a sedução do marxismo, que lhe serviria aqui para colocar em evidência a opressão dos valores identitários. Pouco depois haveria de abandonar a militância do comunismo por esta se recusar a sair da redoma restrita da luta de classes. Tudo isto é trabalhado segundo uma estética noir que não se coíbe de usar imagens de grande violência, a roçar o verdadeiro horror, trabalhada por uma trama repleta de surpresa capaz de envolver os mais diversos públicos. A mais recente adaptação ao cinema de 2019, por Rashid Johnson para a HBO, procura atualizar alguns dos tópicos em face da evolução da sociedade americana, mas sendo interessante diria que é menos conseguida, particularmente porque Wright impregna toda a sua escrita de uma raiva fervilhante que o filme é incapaz de atingir.

agosto 24, 2023

“Los Vencejos” de Fernando Aramburu

“Los Vencejos” (2021) é o sucessor de “Patria” (2016), o livro que trouxe reconhecimento internacional, incluindo direito a série HBO, a Fernando Aramburu. Se o estilo, de contador de histórias, permanece inalterado, o tema distancia-se, tal como a abordagem. Deixa-se para trás o terrorismo vasco e adentra-se agora os efeitos sociais do pós-patriarcado na figura masculina. Mantém-se a visão acutilante, mas em vez de sustentada pela tragédia, esta é agora baseada na sátira e humor negro que se tornam centrais no suportar de toda a vil misantropia ao longo de 700 páginas.

Imagem da web, lido na versão audiolivro com narração de Germán Gijón (Scribd).

agosto 18, 2023

Histórias da Noite

Há algum tempo que não começava a ler um livro e a experiência não fluía tão perfeita, agarrando-me, e clamando por mim sempre que dele me desligava. A escrita de Mauvignier faz lembrar Proust no modo como estende as frases de modo lírico, mas simultaneamente causal, ativando o nosso desejo por querer saber mais, e assim não conseguir parar de ler. O tema é a narrativa clássica de crime e mistério do ataque, a meio da noite, a uma casa de família por um grupo de malfeitores. Mas a forma não segue o género, é antes literária em profundidade, com uma escrita elaborada e erudita que acaba por criar uma experiência de leitura muito particular.

Imagem da web, lido na versão digital no Kindle.

agosto 16, 2023

" A Trilogia de Copenhaga" de Tove Ditlevsen

Tove Ditlevsen (1917-1976) foi uma das mais importantes escritoras da Dinamarca no século XX, tal como Sophia Andersen (1919-2004) foi em Portugal. Mas se Andersen tinha também raízes dinamarquesas, os estatutos sociais das suas famílias não poderiam ser mais opostos. Nascida numa família da classe operária, os pais de Ditlevsen estavam mais focados em empurrá-la para o primeiro que aparecesse disposto a casar e levá-la do que a educá-la. O seu principal legado são três pequenos livros de memórias romanceadas, escritas entre 1967–1971, só totalmente traduzidas para inglês em 2019 e publicadas num volume único pela Penguin, alcançando reconhecimento na imprensa internacional em 2020 e traduzidas para português em 2022 pelo João Reis. A sua escrita é lírica mas escorreita, centrada na compreensão psicológica de si através das suas atitudes, motivações e comportamentos.

Edição portuguesa da D. Quixote com tradução de João Reis

agosto 13, 2023

A Era das Intuições

Eric Kandel ganhou o Nobel de Medicina em 2000 pelo seu trabalho na área da fisiologia da memória. Depois do prémio, resolveu escrever vários livros de divulgação, sendo este “The Age of Insight” (2012) um dos mais citados nomeadamente na área dos estudos da consciência (ex. Anil Seth), pelo modo como relaciona os processos de consciência com os processos criativos. Dito isto, o livro é mais e menos, porque tenta fazer um dois em um, ao escrever toda uma primeira parte de enaltecimento à ciência criada na cidade de Viena, no início do século vinte, daí o subtítulo — “The Quest to Understand the Unconscious in Art, Mind, and Brain, from Vienna 1900 to the Present”; e uma segunda parte, dedicada à discussão da teorização científicia que suporta a existência da arte. A primeira parte é uma espécie de resposta, agradecimento, à oferta de cidadania da cidade após o Nobel, que tinha sido uma resposta de Viena ao facto de Kandel afirmar que o seu Nobel não era austríaco, mas americano-judeu


julho 22, 2023

No interior da mente de uma juíza

A Decisão” (2022), de Karine Tuil, apresenta uma primeira parte intensa em diálogos e introspeções que poderia facilmente ser transformada numa série de televisão de trocas acesas entre juízes e advogados. A segunda parte diverge, as discussões hipotéticas e potenciais passam aos atos, e tudo se transforma numa larga tragédia grega que nos agarra e impede de parar de virar as páginas. A autora trabalha muito habilmente a trama para nos enredar e suspender, mas não só, trabalha ainda melhor o questionamento interior das personagens, colocando-nos a assistir a tudo o que acontece na primeira fila desse espetáculo interior. Cria uma experiência que se consome sofregamente, com medo de acabar depressa demais, porque não queremos abandonar nenhuma daquelas personagens. A cereja colocada sobre tudo isto não enaltece, antes se desfaz numa subtil perceção de artificialismo, escolhas autorais certeiras para produzir emoção, ainda que possamos sem problema retirar a cereja para o lado, ou seja, suspender a descrença e deliciar com tudo o resto que a autora nos entregou.


O assunto de fundo é a vida de uma juíza que pertence à principal equipa francesa de instrução dos processos antiterroristas, situado temporalmente entre o ataque ao jornal Charlie Hebdo (12 mortos) e à sala de espétaculos do Bataclan (90 mortos). Somos colocados dentro da cabeça dessa juíza que todos os dias tem de tomar decisões quanto a manter presos ou soltar potenciais terroristas.

Biografia de Søren Kierkegaard

Quis ler “Philosopher of the Heart: The Restless Life of Søren Kierkegaard” (2019) porque tentei várivas vezes ler os livros de Kierkegaard, mas sem sucesso. A escrita de Kierkegaard é demasiado enrolada, rebuscada, escamada. Os temas demasiado fantasistas repletos de dor e sofrimento existencial entremeados por discussões religiosas. 


Contudo Kierkegaard é uma das referências pioneiras do existencialismo, mais particularmente da melancolia, o que me leva encontrar constantes referências ao seu trabalho. O livro de Clare Carlisle desenvolve uma biografia seguindo um registo próximo da escrita de Kierkegaard, que será excelente para quem leu avidamente o autor, mas para outros, como eu, acaba por não servir de ponte para o trabalho, mantendo tudo igualmente à distância. Interrogava-me no final se o problema estava na escrita e religiosidade do autor, ou se num desfasamento identitário promovido pela idade em mim, isto porque senti o mesmo amargo que senti no ano passado com “Nos Cumes do Desespero” (1933) de Emil Cioran, uma desconexão total. Palavras belas de enaltecimento total do interior para questionar tudo e todos teriam sido a minha delícia com 20 anos, hoje não me dizem nada. Tivesse Carlisle realizado um trabalho documental próprio, como fez Sarah Bakewell com o existencialismo de Heidegger e Sartre e talvez tivesse adorado, mesmo que me tivesse ajudado a desistir de uma vez desses autores.

julho 16, 2023

Exalação, Ted Chiang

Neste segundo livro, "Exhalation" (2019), depois de “Stories of Your Life and Others” (2002), podemos voltar a perscrutar o brilho da mente de Ted Chiang no laborar de design fiction, ou seja, na criação de cenários credíveis de experimentação conceptual. Algumas das ideias estão centradas em problemas contemporâneos criados pelos média digitais, tornando as histórias uma espécie de variação do universo Black Mirror. Outras, estão fundamentadas em conceitos da ciência, explorando metáforas que nos fazem questionar o nosso corpo, a nossa mente e a nossa relação com as outras espécies. Estes dois temas juntam as melhores histórias do livro. Depois temos duas histórias cliché, uma de viagens no tempo e outra de multiversos, que eu tendo, nos dias de hoje, a considerar mais fantasia do que ficção científica. Na última, Chiang diverte-se a explorar como funcionaria uma ciência baseada no criacionismo.

julho 15, 2023

I Am, I Am, I Am

Humano. Feminino. Maternal. “Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva”. Quarto livro de Maggie O’Farrell que li nos últimos 2 anos, o que evidencia o quanto me apaixonei pelo seu trabalho desde que li “Hamnet”. A sua escrita não é meramente bela, é dotada de uma capacidade descritiva particular pelo modo como produz parágrafos longamente fluídos descrevendo ações a partir dos seus efeitos psicológicos. Tendo a compará-la, ainda que cada um na sua particularidade, a Jonathan Franzen e Zadie Smith. O conteúdo do que cada um destes tende a expressar não podia ser mais distinto, nomeadamente O’Farrell não é comparável em erudição, mas o seu realismo junto à pele é bastante mais cortante. O modo é tão relevante a ponto de neste livro de memórias discordar várias vezes da sua definição do mundo, mas a intensidade honesta e humilde da forma usada apaga toda a distância que existe entre esse seu mundo e o meu.