Tove Ditlevsen (1917-1976) foi uma das mais importantes escritoras da Dinamarca no século XX, tal como Sophia Andersen (1919-2004) foi em Portugal. Mas se Andersen tinha também raízes dinamarquesas, os estatutos sociais das suas famílias não poderiam ser mais opostos. Nascida numa família da classe operária, os pais de Ditlevsen estavam mais focados em empurrá-la para o primeiro que aparecesse disposto a casar e levá-la do que a educá-la. O seu principal legado são três pequenos livros de memórias romanceadas, escritas entre 1967–1971, só totalmente traduzidas para inglês em 2019 e publicadas num volume único pela Penguin, alcançando reconhecimento na imprensa internacional em 2020 e traduzidas para português em 2022 pelo João Reis. A sua escrita é lírica mas escorreita, centrada na compreensão psicológica de si através das suas atitudes, motivações e comportamentos.
Infância (1967)
É a primeira parte do volume, no qual ficamos a saber de onde proveio, o tipo de família e mundo que a moldou. Mas é especialmente relevante pelos aspetos formais através dos quais cruza a consciência de si enquanto criança e adulta. Ou seja, Ditlevsen vai saltando entre a primeira-pessoa da criança que foi, e a primeira-pessoa da adulta que era em 1967, oferecendo desse modo não apenas um acesso ao que foi, mas também à consciência que ganhou com a maturidade. A escrita funciona como uma dança entre as duas pessoas que enriquecem a experiência de leitura.
"Os meus colegas acham-me imensa piada, e eu já me habituei ao papel de palhaça, do qual até retiro um prazer triste, porque, aliada à minha estupidez já profusamente confirmada, me protege da estranha maldade que manifestam com tudo o que é diferente."
Juventude (1967)
O segundo livro é o menos atrativo do todo. A escrita continua profusamente direta, com Ditlevsen a não esconder nada do que sentiu em cada momento e por cada pessoa que foi conhecendo. Tão crua não sua necessidade por se emancipar do mundo raso de onde provinha, disposta a tudo para conseguir o que pretendia. O modo como apresenta a defesa da sua motivação artística aproxima-a totalmente do mundo defendido por Ayn Rand em "The Fountainhead" (1943). Vale tudo, pôr-se a si em primeiro e acima de todos os outros para que a sua arte possa chegar a ser reconhecida. Em sua defesa, Ditlevsen era uma adolescente de 16 anos, no vigor da idade, enfrentando o desespero da pobreza com que convivia, recorrendo a toda a força interior que conseguiu. Já Rand, limitou-se a pegar nessa energia criadora da adolescência para a transformar num modo de vida, sem nunca parar para empatizar com o outro.
Relações Tóxicas (1971)
O último livro funciona na perfeição como fechamento da trilogia, com Ditlevsen a debitar o seu trajeto mas a elevar ainda mais alto, algo que parecia impossível, o desvelar honesto e íntimo da sua pessoa. Quatro casamentos, duas filhas e uma relação intensa com opioides, tudo exposto com enorme naturalidade, a ponto de me obrigar a ir verificar se este último livro tinha mesmo sido publicado ainda em vida.
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