junho 10, 2023

Drogas na Alemanha Nazi

“Blitzed: Drugs in Nazi Germany” (2015) chamou-me a atenção por ser um assunto muito pouco discutido, apesar da poderosa indústria química alemã. No início do século XIX, a Merck criava a Morfina a partir do ópio e no final desse século a Bayer criava não só a Aspirina mas também a Heroína que iria promover "para as dores de cabeça” assim como na forma de xarope "para a tosse das crianças”, recomendando-a mesmo para as “cólicas dos bebés", tendo conseguido manter a droga legal na Alemanha até aos anos 1950. Ainda na Primeira Grande Guerra, o nobel da Química, Fritz Haber, dedicava-se ao desenvolvimento de armas químicas, ganhando o rótulo de "pai da guerra química", acabando por impactar fortemente a Segunda Grande Guerra, uma vez que os processos químicos por si criados viriam a dar origem ao Zyklon B, o veneno que seria aspergido pelos chuveiros das câmaras de gás de Auschwitz. 

junho 04, 2023

Fukushima dramatizada

"The Days" (2023) é a mais recente série da Netflix. Conta a história do acidente da central nuclear de Fukushima, Japão, provocado por um terramoto seguido de tsunami, ocorridos em 2011. Em termos técnicos não está, de todo, ao nível de "Chernobyl" (2019), no entanto enquanto drama documental faz muitíssimo bem o seu trabalho, usando uma estética marcadamente japonesa, que a partir do 3º episódio se torna impossível parar de ver.

junho 03, 2023

Distorção da realidade

Dei por mim quase a chorar e a ter de me afastar da televisão quando esta semana estava sentado ao lado do meu pai que via um documentário no National Geographic sobre vida selvagem. Primeiro, foi um crocodilo que abocanhou o traseiro de uma cria de bufalo e ficou ali a prende-la durante uns agoniantes 10 minutos, enquanto a mãe da cria se limitava a lamber-lhe o focinho, até que o crocodilo a puxou para baixo e a afogou. Depois, veio um macho zebra que começou a atacar violentamente uma cria zebra porque esta não lhe pertencia, segundo o narrador para evitar que essa cria se revoltasse contra ele mais tarde, tendo a mãe da cria tudo feito para evitar que o macho se aproximasse, mas acabando por não conseguir evitar o pior.

maio 27, 2023

Alexander von Humboldt [1769 - 1859]

Começo por dizer que se conhecia o nome Humboldt era apenas porque ao longo da minha vida o tenho encontrado um pouco por todo o lado — de cidades a rios, serras, baías, cascatas, uma região na Lua, mais de 300 plantas e mais de 100 animais carregam ainda hoje o seu nome. Mas não fazia grande ideia sobre quem era ou o porquê dessa sua quase omnipresença, em sintonia com a grande maioria da sociedade no século XXI, apesar de em 14 de setembro 1869, na marca dos 100 anos do nascimento de Alexander von Humboldt, se terem realizado festejos por toda a Europa, Américas, África e Austrália. Houve discursos, paradas e procissões em seu nome de Melbourne a Buenos Aires, de Moscovo a Alexandria, com milhares de pessoas nas ruas de São Francisco a Nova Iorque a acenar bandeiras e cartazes com a cara de Humboldt. 

maio 20, 2023

Esquizofrenia em defesa da IA

A defesa da IA geralmente começa por identificar tecnologias anteriores que surgiram e que foram também atacadas, mas que demonstraram ser depois bem assimiladas pela sociedade. Fala-se da electricidade ou da calculadora, assim como se fala da automação de fábricas ou da internet. Apontam-se os ganhos, nada se diz sobre os impactos negativos, menos ainda sobre o enorme trabalho que foi necessário para criar regulação que sustentasse essa integração societal. Bastaria dar o exemplo do RGPD para percebermos que a internet não nos trouxe só maravilhas, e que sem regulação estaríamos bem mal. Esta mesma defesa, diz depois que a IA não está aqui para substituir o humano, é apenas um complemento. E vai mais longe, dizendo que quem não quer ficar para trás tem de entrar no comboio, usando uma expressão que já se tornou mantra no domínio: uma IA não vai substituir uma pessoa, mas uma pessoa com IA vai substituir uma sem IA. Analisemos ambos os argumentos mais em detalhe, nomeadamente o impacto das tecnologias mais recentes nas funções cognitivas.

maio 14, 2023

Sobre a Treta

"On Bullshit" (Sobre a Treta) é um pequeno livro de Harry G. Frankfurt de 2005 baseado num ensaio de 1986. Em 1986 o presidente dos EUA era Ronald Reagan, em 2005 era George W. Bush, eu ouvi falar do livro pela primeira vez em 2018, quando Trump era presidente dos EUA. Este enquadramento serve para perceber que o livro se foca no estudo da comunicação pública, nomeadamente de figuras com autoridade, apesar de não serem mencionadas no livro.

maio 13, 2023

Alucinando com Michel Foucault

"Hallucinating Foucault" (1996) é um romance de homenagem à obra de Michel Foucault. Patricia Duncker inventa um escritor de romances francês chamado Paul Michel e defini-o como espelho do verdadeiro Foucault. Se Foucault queria escrever romances e não escreveu, Paul Michel escreve-os e dedica-os a Foucault. Se Foucault teorizou sobre os processos de loucura e encarceramento, Paul Michel passa ele mesmo por esses processos. Se Foucault começou a sua carreira em Clermont Ferrand, é aí que Paul Michel termina a sua, internado depois de ter enlouquecido com a morte de Foucault. Se Foucault teorizou sobre a função do autor, Paul Michel centra-se na relevância do leitor. O livro leva-nos pela mão de um jovem doutorando que estuda a obra de Paul Michel e tenta compreender a pessoa por detrás da obra, apesar de defender que não lhe interessa a pessoa, o autor, apenas a obra. 

maio 12, 2023

As Visionárias: Rand, Weil, Beauvoir e Arendt

Wolfram Eilenberger, filósofo alemão, surgiu recentemente na cena internacional como divulgador de filosofia com o livro "O Tempo dos Mágicos" (2018), dedicado a Walter Benjamin, Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Ludwig Wittgenstein, focado no friso temporal 1919-1929. Para dar continuidade à fórmula de sucesso, avançou para o intervalo 1933-1943, mas desta vez escolheu quatro mulheres — Ayn Rand, Simone Weil,  Simone de Beauvoir e Hannah Arendt —, intitulando o livro como "O Fogo da Liberdade" (2020). Eilenberger faz lembrar Sarah Bakewell, pelo modo como cruza bem história, filosofia e arte, contudo, falta-lhe alguma capacidade de síntese e visão holística, ficando-se por um tom mais jornalístico, de descrição cronológica de eventos. 

maio 10, 2023

O descarrilar de um romance filosófico

Vi o filme quando saiu, mas já não recordava nada além do Jeremy Irons passeando pelas ruas de Lisboa. Entretanto encontrei o livro numa lista de livros relacionados com romances filosóficos, e relendo a premissa fui a correr adquiri-lo. As primeiras 100 páginas foram ouro, com uma viagem por entre poesia, melancolia e existencialismo, do centro da Europa para a costa oeste portuguesa. Mas a partir do meio iniciou-se um declínio, atingindo o total estrambelhamento perto do final. Não se aproveita nada no fim da leitura. São demasiados erros narrativos a que se juntam ainda problemas morais que tornam os personagens insustentáveis. Ainda fui rever o filme, e nota-se que houve um esforço dos guionistas para resolver alguns problemas, mas não sendo o meio adequado ao tipo de premissa, fica também bastante aquém da experiência esperada.