março 05, 2023

Re-interpretando a História, segundo as nossas agendas

Não vou tecer elogios ao livro, "The Dawn of Everything: A New History of Humanity" (2021) porque tenta claramente ser mais do que aquilo que é, apesar de inexplicavelmente ter uma enorme quantidade de pessoas a tecer louvores, nomeadamente a crítica jornalística e autores de best-sellers. Mas também por força desse enorme suporte, não sinto qualquer obrigação de inibir a minha crítica. Até porque, todo o livro está escrito como um ataque direto a outros autores, nomeadamente três contemporâneos — Pinker, Harari e Diamond — e dois clássicos — Rousseau e Hobbes. Mas vai além quando nem sequer pára para criticar, mas simplesmente decide ignorar totalmente a ciência, começando por Darwin e a biologia, passando por toda a Física, e mais grave ainda, tendo em conta que se fala de comportamento humano, toda a Psicologia. Os autores, sentados no seu pedestal antropológico, julgam-se no direito de pescar casos isolados, feitos de variáveis não conforme, e tecer sobre estes interpretações para demonstrar aquilo que a sua agenda exige. Ignora-se na generalidade metodologias científicas de carácter empirista, baseando grande parte das deduções em ideias de autores que nunca passaram pelo crivo da revisão por pares. Mas para repescar esses autores existe sempre uma condição especial, suportada na ideia de que foram preteridos pelas grandes conspirações que conspurcaram a ciência iluminista — o colonialismo e o androcentrismo.

"Quixotically, Graeber and Wengrow expect readers to give serious consideration to a perspective on human origins that does not acknowledge evolutionary theory at all." -- Knight, 2022

março 04, 2023

O Mago do Kremlin (2022)

“O Mago do Kremlin”, de Giuliano da Empoli, é um romance histórico-político centrado num dos mais relevantes focos da cena política global atual que domina não só as atenções políticas mas as de toda a sociedade, e que é o esforço de manutenção do Imperialismo Russo. Empoli é professor de Ciência Política na Sciences-Po em Paris, é presença assídua nos média italianos e franceses como comentador de política, tendo escrito mais de uma dezena de livros de ensaio, sendo este o seu primeiro romance. O livro ganhou Grande Prémio de Ficção da Academia Francesa 2022 e foi finalista do prémio Goncourt 2022. Esta breve apresentação será suficiente para dar conta da relevância do livro, mas não quero deixar de dizer que está muito bem escrito; e que a ficção apresenta um enorme nível de verossimilhança.

fevereiro 25, 2023

IA e o regressar aos valores da Escola

Durante décadas acreditámos que a IA seria apenas uma ajuda ao humano, que não seria nunca capaz de o substituir em tarefas que exigem inteligência elaborada e educada. Contudo, em 2023 isso deixou de ser uma verdade absoluta. A IA consegue escrever tão bem como um ser humano, consegue sintetizar, criar e expressar ideias. Pouco já está fora do seu alcance em termos da ideação e conceptualização. A IA consegue desenhar e animar de raiz as mais complexas formas visuais e sonoras. A IA consegue compor texto com desenho, som e movimento no tempo recriando representações que expressam “imagens mentais” que até agora só os humanos tenderiam a imaginar. A IA consegue ainda programar essas composições para que cumpram ordens ou tomem decisões. A IA consegue criar réplicas de si mesma, com variações de performance com vista a otimizar a sua ação ou em resposta ao que lhe é pedido. Podemos ir ainda a algo mais extremo, e dizer que a IA consegue ter “consciência de si”, quando consegue apresentar um estágio de “teoria da mente” de uma criança de 9 anos [1]. Ou seja, a IA atual consegue atribuir estados mentais aos humanos que interagem com ela, consegue especular e supor o que está a pensar o humano quando este realiza perguntas, por forma a descortinar a intenção, para o que usa todo um conhecimento sobre os humanos que assenta não apenas na informação, mas na emoção, nas vivências, motivações e crenças.

Imagem de Tony Coffield de Pixabay 

fevereiro 20, 2023

Bowie, um hino à vida

"Moonage Daydream" (2022) oferece-nos apenas duas horas sobre a vida de Bowie, focadas num infinitamente pequeno número de coisas que disse e fez, ainda assim parece-me que o realizador Brett Morgen criou uma excelente síntese do todo ao focar-se sobre os aspetos criativos, suas motivações e processos. Ao longo dessas duas horas somos brindados com interrogações sobre o humano, a sua existência, propósito e lugar. Bowie não foi mero artista, foi um criador natural, possuia dentro de si uma fome por explorar o inexplorado, por compreender o incompreendido, por ir além do conhecido.

fevereiro 19, 2023

O coração de Javier Marías

Em "Coração tão Branco" descobri uma alma gémea de Proust. Não só pela beleza da escrita, mas também pelo modo como discorre sobre a realidade, nos a dá a ver, e nos enreda com textos que vão criando imaginários completos dentro de nós.

Ainda assim, a meio do livro comecei a sentir algum cansaço, nomeadamente porque quanto mais avançava mais me parecia impossível que Marías nos conseguisse surpreender no desenlace, mas tenho de dar a mão à palmatória e aceitar que o conseguiu.

Ao chegar ao final, ao desvelar da razão que levou Teresa, acabada de regressar de lua-de-mel, na casa de banho da casa dos pais, a desabotoar a blusa e a dar um um tiro no coração, fiquei estacado, boquiaberto, refletindo... viajei até essa casa de banho que abre o livro, pairei por todos os momentos altos e tirei o chapéu a Javier Marías. 

A Psicologia do Dinheiro

O tema central do livro "The Psychology of Money" (2020) é bastante importante, diria mesmo central para todos aqueles que trabalham, já que se trabalha essencialmente para ganhar dinheiro. Nesse sentido, é importante tentar perceber como nos relacionamos com o dinheiro. Apesar disso, e do livro entregar algumas ideias interessantes, na generalidade é algo simplista e pouco aprofundado. Mas talvez a ideia tenha sido essa, simplificar para chegar ao máximo número de pessoas, com o objetivo de fornecer uma literacia do dinheiro para todos. Por isso, se critico no geral, considero que realiza um bom trabalho de divulgação e discussão de ideias que muitas vezes são evitadas na praça pública.

fevereiro 12, 2023

“Nós” (1921) de Evguén Zamiátin

Durante muito tempo olhei para “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” como um livro de ficção-científica, e talvez por isso centrado numa visão distópica espoletada pela tecnologia. Foi apenas ao ler mais sobre Orwell e as influências para a criação da obra que percebi que o livro era algo distinto, que era muito mais a interpretação política do seu tempo, do nacionalismo alemão e do comunismo soviético. Sabemos também hoje que esta obra só ganhou forma quando Orwell leu “Nós” (1921) de Evguén Zamiátin. “Nós” demonstrava uma enorme presciência sobre aquilo que viriam a ser os futuros 70 anos da URSS, mas ia além. Se Orwell escolheu os média, a televisão e as câmaras, Zamiátin desvelou desde logo o cerne do problema, a ciência matemática, antecipando aquilo que pode vir a ser o nosso mundo: tecnologicamente evoluído e matematicamente determinado.

"Apenas voltei a concentrar a atenção, a grande custo, quando o fono-conferencista passou ao tema principal: à nossa música, à composição matemática (a matemática é a causa, a música é o efeito) (...) Com que prazer ouvi a seguir a nossa música actual! As cristalinas gamas cromáticas que se juntavam e se separavam em séries infinitas — e os acordes sumários das fórmulas de Taylor, de Maclaurin; os lances diatónicos, com a carga quadrada do teorema de Pitágoras; as tristes melodias de movi­mento oscilatório a amortecer; os compassos vivos alternando com as pausas das linhas de Fraunhofer — a análise espectral dos planetas... Que grandeza! Que inabalável conformidade com a lógica! E que miserável é a música dos antigos — toda ela voluntariosa e sem ou­tros limites que não os das fantasias selvagens..."

fevereiro 05, 2023

"Kaleidoscope" (2023)

"Kaleidoscope" (2023) usa uma abordagem distinta, definida como "Non-Linear Streaming Experience", em que cada espectador vê os primeiros 7 episódios numa ordem diferente, sendo o último episódio igual para todos, o do assalto ao banco. 


Enquanto série, é mediana. Interessante, mas com personagens poucos estruturados e ações pouco credíveis.

Como experiência, a aleatoriedade não oferece nada aos espectadores. Ver na ordem sugerida pela Netflix, acaba sendo a ordem para nós normal. Talvez vendo uma segunda vez, pudesse produzir um impacto distinto. Mas isso a acontecer só daqui a alguns anos. Na partilha com outras pessoas, também não vejo ganhos, já que além do final ser o mesmo para todos, os episódios são todos vistos, apenas muda a ordem.
 
Fica a admiração pelo virtuosismo no design da narrativa dos 8 episódios, e pouco mais.

Days Gone = (Uncharted + Far Cry) / The Walking Dead

É um grande jogo, desde logo evidenciado pela elevada qualidade da arte visual, da animação dos personagens e câmara, assim como do próprio design de interação suportado pelas affordances audiovisuais. A animação do protagonista, Deacon, e da sua motorizada, não são apenas bem conseguidas, são de tal modo fluídas que geram enorme flow em toda a nossa interação com o jogo, algo que vai melhorando ainda mais com o progredir do jogo por via da otimização das skills, das armas, e da própria motorizada. Por outro lado, o pior é mesmo a história, bastante mediana, ainda que aqui se deva mais a erros derivados da megalomania da direção ao optar por uma narrativa interativa em mundo aberto, de que viria a recuar a meio da produção.