maio 30, 2022

O Tio Vânia (1898)

A primeira leitura é boa, mas não conseguindo seguir todos os personagens facilmente, porque não estamos a ver os atores em placo, apenas temos a etiqueta dos nomes, volta-se então ao início e recomeça-se uma segunda leitura, e aí então a emocionalidade começa a latejar pelos poros de todos os personagens, que já nos são tão familiares. Uma maravilha, porque na segunda leitura conseguimos ter tempo para reparar como Chekhov vai introduzindo toda a informação necessária sobre todos pelo meio de pequenos apontamentos que quase parecem despicientes, mas são essenciais à formação mental do mundo em que aquelas personagens habitam. Deixo um extracto que dá conta do que nos oferece:

"Professor reformado, estás a ver, côdea velha, peixe seco da ciência... Gota, reumatismo, enxaqueca, fígado inchado de ciúmes e inveja... Pois este peixe seco vive na herdade da sua primeira mulher, ou antes, é forçado a viver porque não tem meios para viver na cidade. E sempre a queixar-se das suas desgraças, embora, no fundo, esteja incrivelmente feliz. Imagina a sorte do homem! Filho de um salmista, aluno da escola primária eclesiástica, lá conseguiu os seus títulos académicos e uma cátedra na universidade, foi promovido a sua excelência, depois tomou-se genro do senador, etc., etc. Aliás, nada disto tem qualquer importância. Mas vê outra coisa. O homem anda há vinte e cinco anos a ler e a escrever sobre a arte, mas não percebe patavina de arte. Anda há vinte e cinco anos a mastigar as ideias dos outros sobre realismo, naturalismo e outros disparates; há vinte e cinco anos que anda a ler e a escrever coisas que os inteligentes já sabem há muito e que os parvos não querem saber... o que significa apenas isto: durante vinte e cinco anos, foi como chover no molhado. E no entanto, que presunção! Que pretensões! Reformou-se, ninguém o conhece, é um perfeito desconhecido; quer dizer que durante vinte e cinco anos ocupou um lugar alheio. Mas olha para ele: tem a passada de um semideus!" 
Excerto de "O Tio Vânia" (1898) de Anton Chekhov, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio D'Água 

GoodReads 

maio 29, 2022

As Universidades não são centros de formação são centros de criação de conhecimento

Algumas das notícias mais badaladas sobre a irrelevância das universidades nos dias de hoje costumam focar-se em jovens brilhantes que desistiram da universidade para criar empresas tecnológicas e se tornaram milionários. Exemplos não faltam, de Bill Gates a Steve Jobs, passando por Mark Zuckerberg ou Jack Dorsey, ao mais recente Alexandr Wang. Se esse for o vosso propósito, ser milionário, nada contra. Mas o exemplo de Dexter Holland, vocalista dos The Offspring, que desistiu da Universidade para projetar a banda e afirmar a sua carreira internacional, tendo depois voltado para terminar o seu Doutoramento em Biologia Molecular, com uma tese em HIV, serve para demonstrar que a universidade é, antes de qualquer outra coisa, um centro de criação de conhecimento, não de dinheiro.

Dexter Holland, fundador dos The Offspring nos anos 1980, doutorou-se em Biologia Molecular em 2017

maio 28, 2022

Deuses e robôs

Tinha grandes expectativas sobre "Gods and Robots: Myths, Machines, and Ancient Dreams of Technology" (2018) de Adrienne Mayor, que não se goraram por completo, mas que acabaram por ficar bastante aquém do enorme potencial. Esperava um discurso mais assente nos interstícios da tecnologia, na descoberta das criações humanas ao longo da história, com detalhe sobre os comos, nomeadamente as mecânicas, design, objetivos e inovação humana. Mas Mayor foca-se quase exclusivamente no lado mitológico, dando conta de alguns desses elementos passados ao real não forma de esculturas, mas centrando todo o seu discurso em hipóteses das representações míticas, oferecendo muito pouco sobre o lado material de quem criava e inovava.

"Rebecca" (1938) de Daphne Du Maurier

"Rebecca" (1938) é um livro imensamente apreciado, inicialmente mais pelo público, mas hoje também por alguma crítica. Já o tinha tentado ler, mas não tinha gostado da escrita. O filme homónimo de Hitchcock também não me tinha deixado qualquer marca particular. Mas voltei agora a insistir, em mais uma tentativa para tentar compreender o que gera tanto interesse. Gostei da leitura, nomeadamente a partir do meio, onde o enredo nos agarra e não conseguimos parar de ler, mas no final soube-me apenas a mais uma história de crime.

(Esta edição é de um tempo em que ainda traduzíamos os nomes dos personagens)

maio 22, 2022

Um Reino Maravilhoso

Chega-se ao final desta obra não só com uma enorme vontade de visitar o Reino Maravilhoso, mas também, estranhamente, com uma certa pena de não se ter nascido transmontano! Graça Morais foi por estes dias agraciada com o Doutoramento Honoris Causa pela UTAD, mas Miguel Torga deixou-nos há muito, ambos artistas transmontanos, aqui evocados conjuntamente, Torga com um conto dedicado a Trás-os-Montes e Morais com cerca de 50 pinturas e desenhos. O conto termina evocando outro vulto transmontano, Camilo Castelo Branco.

Um Reino Maravilhoso (2002)

maio 21, 2022

Projeções neuronais

"Projections" (2021) é um livro de memórias de um psiquiatra americano que desenvolve investigação no domínio da engenharia neuronal. Karl Deisseroth foi um dos primeiros cientistas, no início dos anos 2000, a demonstrar a possibilidade de ativar/desativar neurónios por via da luz, um processo que entretanto ficou conhecido como optogenética. Por este meio é possível reajustar o funcionamento de grupos de neurónios que se encontrem a funcionar incorretamente, conseguindo provocar alterações comportamentais ao nível da procriação, memórias, adicção ou alimentação, sendo vista como uma das técnicas mais revolucionárias das neurociências. Ao longo do livro, Deisseroth fala do desespero e frustração sentidos na sua atividade clínica como as principais forças motrizes para o seu envolvimento com a bioengenharia que o conduziriam ao desenvolvimento da optogenética. Em 2021, Deisseroth foi premiado com o Lasker Award, o chamado nobel americano da medicina pelo seu contributo para a optogenética.

maio 20, 2022

Quando o selo de qualidade não funciona

Este livro não é o que pensam. Não é sobre a Internet. E é altamente Não recomendado. O livro, "The Internet Is Not What You Think It Is: A History, A Philosophy, A Warning" de Justin Smith publicado pela Princeton University Press neste ano de 2022, é sobre um monte de interesses específicos do autor que só tangencialmente se relacionam com a internet. Mais, o autor não tem ideia nenhuma sobre aquilo que a internet é, seja na sua essência tecnológica, seja na sua função de comunicação. Partes do texto parecem tiradas de artigos de jornal, outras partes parecem discussões que tivemos nos anos 1990 sobre a internet. A grande questão que se coloca é porque é que este livro foi editado pela Princeton Press. Era suposto o selo da editora garantir qualidade académica ao que edita. Não era difícil olhar para o currículo do autor e perceber que a Internet, tanto pelo lado das ciências da computação, como pelo lado das ciências da comunicação, nunca fizeram parte da sua formação. Aceitar que alguém fale de tudo, apenas porque cola alguns nomes respeitados da história da filosofia, parágrafo sim parágrafo não, é meio-caminho para descredibilizar toda a editora.

Infelizmente, um livro altamente NÃO recomendado

maio 15, 2022

“Vladimir” (2022) de Julia May Jonas

“Vladimir” (2022) faz parecer que Philip Roth voltou para escrever sobre os efeitos do MeToo na academia e na arte, mas agora como mulher. Esta primeira obra de Julia May Jonas é irrepreensível na escrita, estrutura e erudição. Sob uma capa de aparente simplicidade narrativa — evocando "Misery" de King, "Rebecca" de Du Maurier e "Lolita" de Nabokov (autor que inevitavelmente se liga ao título) — Jonas vai lançando todo um questionamento avassalador sobre aquilo que somos em cada momento. Motivada pelos ataques institucionais do MeToo, Jonas coloca-nos na pele de uma professora universitária de 58 anos, muito certa do seu lugar, mas com fortes assaltos de dúvida sobre esse lugar. Entre a identidade que arquitetou com base no mundo para o qual erigiu as suas defesas, e o novo mundo que coloca em causa a existência dessas mesmas defesas, acaba colocando em causa a sua própria pessoa. Mas tudo isto é trabalhado num tom de comédia-negra, com a leveza entremeada por rasgos de incisiva análise do que fazemos e porque fazemos. É um ‘campus novel’ totalmente atual, capaz de ir além da crítica interna da academia, colocando o dedo no embate do MeToo com o Status Quo, não em defesa, nem contra, mas sim como provocação a ambos os lados.
"'Vladimir' contains far too many uncomfortable truths to be merely fun, but — especially for those of us with feet in the worlds of academia and literature — it remains, by turns, cathartic, devious and terrifically entertaining." Jean Hanff Korelitz, in New York Times

maio 12, 2022

O Instinto Humano

Miller passou as últimas décadas a defender a ciência por detrás da teoria da evolução em tribunais, apresentando argumentação contra os movimentos de criacionistas e defensores do design inteligente. Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a evolução, nomeadamente fique reticente quando ouve que “tudo não passa de uma teoria”, Miller faz aqui um bom trabalho de desmistificação, apresentando evidências, ao nível do DNA, do processo evolutivo da vida na Terra. Mas Miller não escreveu “The Human Instinct”(2018) para explicar o suporte existente à teoria de Darwin, o seu objetivo é bastante mais vasto. A questão central aqui é a de saber se o evolucionismo por ter morto Deus, como disse Nietzsche, nos deixou realmente órfãos e entregues ao niilismo, ou se podemos encontrar no próprio processo evolucionário algo mais.