"Talvez ainda haja crianças que não tenham comido homens?Salvem as crianças...”
dezembro 23, 2020
Lu Xun, "O comunismo comia crianças"
dezembro 19, 2020
Espinosa e a necessidade de Ser Especial
Terceiro livro de Yalom dedicado a romancear as ideias de um filósofo. Depois de Nietzsche em 1992 e Schopenhauer em 2000, em 2012 foi a vez de Espinosa. São três obras de elevado interesse pelo modo como facilitam a entrada na complexidade dos quadros teóricos de cada um destes filósofos. Por via do simples contar de histórias, Yalom traz de volta à vida os pensadores, permitindo-nos dialogar com eles. Não se espere obras de grande desenvoltura literária, o foco são as ideias e os criadores das mesmas, a literatura está aqui ao serviço. Mas em termos de apresentação e discussão teórica, Yalom impressiona, tornando simples e acessível o complexo. Ao contrário dos anteriores filósofos, nada tinha lido escrito pelo próprio Espinosa, apesar de por várias vezes me ter aproximado dele. Talvez por isso, por funcionar como descoberta de um novo mundo, foi dos três o que mais mexeu comigo.
Se não tinha lido antes Espinosa, tinha lido um outro texto que me serviu de comparativo e nomeadamente de filtro crítico, falo de "Um Bicho da Terra" (1984), um livro de Agustina Bessa Luís sobre Uriel Da Costa, o filósofo português, cristão-novo, que estudou na Universidade de Coimbra e depois emigrou para Amsterdão, no século XVI. Uriel da Costa viveu na mesma comunidade de Espinosa, morreu quando Espinosa tinha 6 anos. Desde já, dizer que é uma tontice dizer-se que Espinosa era português, e colá-lo na capa do livro ainda pior. O seu pai fugiu de Espanha para Portugal, e de Portugal para a Holanda, Espinosa nasceu em Amsterdão. Se é verdade que falava e escrevia inicialmente em português, isso não faz dele português. Mais, tendo em conta o facto de ter sido ostracizado por todos os países por onde passou, tendo de publicar sob anonimato, diria que Espinosa era sim um Cidadão do Mundo.
O livro de Agustina serviu-me então de filtro crítico porque quando ia a meio do livro de Yalom, surgiu a história de Uriel, de forma muito breve, e por isso voltei para ler o que tinha escrito sobre o livro de Agustina. Foi então que me apercebi que não só Yalom não dava conta da verdadeira importância da figura de Uriel, do seu legado filosófico, como se abstinha totalmente de ligar a sua personalidade e ideias às ideias de Espinosa. Foi então que me apercebi que Yalom pretendia apenas uma coisa, cultuar Espinosa. Para esse efeito não podiam ser apresentados elementos que ombreassem. Espinosa tinha de ser o primeiro e mais dotado de sempre naquela comunidade e no mundo. Repare-se no seguinte diálogo:
Espinosa: “o meu pai (...) falou-me da vossa elevada opinião sobre a minha mente — "inteligência ilimitada" — foram as palavras que ele vos atribuiu. Foram de facto estas as suas palavras? Ele citou-o correctamente?”
Rabi Mortera: “Sim, essas foram as minhas palavras”
Yalom segue um modo de novelização completamente oposto a Agustina, já que esta procurava acima de tudo um registo histórico para a posterioridade, sem exageros nem inverdades, enquanto Yalom não se preocupava com o que tinha de ficar por dizer, desde que conseguisse criar na mente do leitor a figura de uma espécie de Deus Filósofo, pronto a ser seguido pelo leitor. Com esta crítica, não estou a dizer que Espinosa não fosse uma mente brilhante e um filósofo profundamente dotado, mas continuava sendo um humano. Porque a diferença entre os dois livros, sobre Uriel e Espinosa, é a demonstração do primeiro de que não existem super-homens, mas que o conhecimento se constrói na senda de muitos antes de nós. Não nascemos ensinados, nem temos propriedades capazes de nos colocar do lado de fora da espécie. Construímos a partir daquilo que os outros antes de nós construíram.
Yalom enfatiza múltiplas vezes que Espinosa teria uma inteligência fora do normal, que era alguém completamente sobredotado, alguém diferente de todos. Usa depois outras figuras de culto como Goethe, Kant ou Einstein para levar ainda mais longe o seu endeusamento. Repare-se que este tipo de endeusamento faz parte da nossa cultura ocidental, adorada principalmente pela cultura americana que se preza pela competição desenfreada. Se enaltecermos o individuo, em vez da teia de indivíduos que contribuí pequenos elementos para o todo, criaremos um maior sentimento de inveja, uma maior necessidade de dar o máximo, e pedalar sem parar. Repare-se nos seguintes casos:
Gutenberg: Inventor da prensa móvel, algo que sabemos há muito não ser verdade, já que existem imensos registos do seu uso muito anterior na Ásia.
Darwin: Criador da Teoria Seleção Natural. A sua teoria surgiu ao mesmo tempo que a de Alfred Wallace. E o que isso no diz é que o conhecimento criado pelo ser humano até àquele momento tornava evidente aquela teorização. Mas antes tivemos Lamarck, e muito antes Lucrécio.
Einstein: Criador da Teoria Geral da Relatividade. Sem os génios de Hendrik Lorentz ou Henri Poincaré Einstein nunca teria chegado à mesma.
Edison: Inventor da Lâmpada Elétrica. Na verdade foi o criador da primeira lâmpada comercializada, porque a lâmpada elétrica existia já em múltiplos outros experimentos.
Lumiére: Inventores do Cinema. Pode-se dizer que foram os primeiros a fazer uma sessão paga de cinema, nada mais.
Jobs: Criador da Interface de Utilizador Gráfica (GUI). Antes tinha sido desenvolvida pela Xerox, onde trabalhava Alan Kay, e antes disso por Ivan Sutherland na U. Stanford.
Esta lista poderia continuar infinitamente, é uma pequena amostra que dá conta do facto de nenhum ser humano ter qualquer comunicação privilegiada com Deus ou qualquer realidade alternativa. Criamos e inventamos apenas aquilo que é possível em cada momento, e o que é possível é limitado pelo que existe em cada um desses momentos. As disrupções ou saltos revolucionários, não passam de “wishful thinking”, porque nunca vamos além da incrementação. Se realmente fossemos capazes desses saltos no conhecimento, não só já teríamos evoluído muito mais, como poderíamos encontrar momentos de invenção na história inexplicáveis, buracos negros de conhecimento. No entanto não existem momentos desses documentados em lado algum. Tudo o que inventámos, seguiu o rumo do conhecimento que existia, porque como nos diz Lucrécio: "Nada pode ser criado do nada."
Contudo, na nossa sociedade ocidental ao contrário da oriental, aquilo que mais queremos ouvir são histórias sobre indivíduos que fizeram a diferença, que foram heróis, melhor ainda, super-heróis. Alcançaram o inalcançável. Lê-se a certa altura, no livro de Yalom: “O meu professor afirmou que Spinoza foi o homem mais inteligente que alguma vez andou na terra.”
Mas, é o próprio Espinosa que o diz, aqui no livro de Yalom:
“Portanto, também é verdade que Deus não escolheu o homem para ser especial, para estar fora das leis da Natureza. Essa ideia, creio eu, não tem nada a ver com a ordem natural, mas vem antes da nossa profunda necessidade de sermos especiais, de sermos imperecíveis.”
Os judeus afirmavam-se como o Povo Eleito, Escolhido ou Especial para forçar a sua crença nas massas. Mas Espinosa nunca aceitou tal ideia, desde logo porque nem sequer nas escrituras vem inscrito tal. Mas acima de tudo porque Espinosa acreditava que tudo era Natureza e que nesta não cabe o Especial. Tudo vem da Natureza, tudo volta à Natureza. Esta ideia de Especial, de Culto do indivíduo liga-se com a tal necessidade de se manter à superfície da Terra para todo o sempre. Só sendo-se Especial não se será esquecido. Mas como dizia Epicurus,
“A morte não é nada para nós. Quando existimos, a morte não existe; e quando a morte existe, não existimos nós. Todas as sensações e consciências terminam com a morte e, portanto, na morte não há prazer nem dor. O medo da morte surge da crença de que na morte existe consciência.”
"Eu não era, fui; já não sou, já não me importo."
No fundo, por mais impressionante que Espinosa tenha sido, bebeu bastante no exemplo de Uriel da Costa, assim como foi buscar muitas das ideias a Epicuro, Lucrécio, Aristóteles e tantos outros. Aliás, um dos focos do livro é exatamente a Biblioteca de Espinosa com mais de 150 volumes, para quem quase nada tinha, o que ele mais prezava era o legado de quem o precedeu, a partir do que podia continuar a debater e a construir as suas ideias.
“Porque ninguém, na realidade é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão” Espinosa in "Tratado Teológico-Político"
Esta minha crítica ao livro foi proporcionada pelo próprio livro, já que Yalom não se limita a falar de Espinosa, ele coloca o mesmo em confronto com o nazismo que bebeu nas suas ideias para criar a sua própria doutrina, subvertendo totalmente o legado de Espinosa. Os nazis não compreendiam como Espinosa poderia ter sido tão iluminado, imensamente respeitado por grandes nomes da história da Alemanha, e ao mesmo tempo ser judeu. Por isso, de forma execrável, fizeram uso do trabalho de Espinosa, dos seus argumentos sobre a religião e o judaísmo para atacar os judeus, mas colocando-se a si mesmos no lugar da Raça Especial.
"A atividade mais elevada que um ser humano pode atingir é aprender a compreender, porque compreender é ser livre." Espinosa in "Ética"
Este trabalho de fusão entre a história de Espinosa e o nascimento da ideologia do nazismo levanta ainda uma outra questão que Yalom não discute mas é por demais evidente. À medida que Yalom vai romantizando o trabalho de Alfred Rosenberg, torna-se inevitável pensarmos sobre as razões por que não foi banida a obra de Houston Stewart Chamberlain? Se ela não tivesse chegado às mãos de Rosenberg, teríamos alguma vez chegado a ter um nazismo tão obcecado com a raça? Contudo, pouco depois, quando vemos os livros de Espinosa serem banidos pelos judeus e pelos cristãos, mesmo tendo sido publicados de forma anónima, a resposta torna-se óbvia.
Para fechar o texto, dizer que o livro de Yalom pode não ser, ou não parecer, brilhante, mas tendo em conta tudo aquilo que nos dá a conhecer e o modo como nos instiga a refletir, por demais evidente no meu texto acima, torna-se difícil não recomendar a sua leitura. Para mim, foi essencial porque antes de voltar a tentar ler "Ética" (1677), vou seguir a recomendação de ler primeiro o "Tratado Teológico-Político".
Continuar a Ler:
Nietzsche, o psicoterapeuta, 7.2020
Schopenhauer por Yalom, 9.2020
Da Natureza das Coisas, 3.2020
O Viés de Lucrécio, 2.2020
“Le Bruit du Givre” de Lorenzo Mattotti
dezembro 16, 2020
Atlas dos Videojogos: o que anda a fazer o Estado?
A Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos - SPCV — pelas mãos da Patrícia Romeiro, Flávio Nunes, Pedro Santos e Camila Pinto — voltou à publicação do Atlas do Setor dos Videojogos em Portugal, atualizando o primeiro olhar de 2016, com dados dos últimos três anos num número #2 (2020). Esta série forma o único documento com dados oficiais capaz de dar conta do estado da área dos videojogos em Portugal, levando em conta não só a Indústria, mas também a Formação. De uma forma geral, os dados não mudaram muito, nota-se uma maior atração internacional, mas acima de tudo nota-se o total alheamento do Estado no que toca ao sector, o que é responsável por uma forte amputação das possibilidades de crescimento do mesmo, resultando num impacto económico negativo para o nosso país.
Atualmente temos em Portugal 73 empresas e 15 criadores independentes em atividade, responsáveis por terem criado 70 novos jogos entre 2016 e 2019. Estima-se que a empregabilidade ronde os 986 a 1270 trabalhadores e gere receitas anuais aproximadas de 31 Milhões de Euros. Por comparação, a Suécia, apresenta 384 empresas, com cerca de 8000 trabalhadores, que por sua vez geram 1 872 Milhões de Euros. Ou seja, o aumento de número de trabalhadores é fundamental para ampliar e solidificar a nossa indústria, mas também para afirmar o potencial do retorno económico para o nosso país. Recorde-se que as receitas dos videojogos são esmagadoramente obtidas a nível internacional.
Mas como se financiam os videojogos nacionais?
Segundo os dados apurados neste trabalho, as empresas e criadores independentes estão a financiar os jogos do próprio bolso. Criam, desenham, desenvolvem, testam e distribuem, tudo sozinhos. É inacreditável. Sem uma cultura nacional que acarinhe esta área, não poderemos almejar a aumentar nem o número de pessoas, nem o retorno. Recorde-se que os videojogos têm um papel distinto na forma como unem Cultura e Economia. Os jogos não são artefactos apenas de contemplação artística, são artefactos de design que visam a criação de produto transacionável. 40% dos jogos criados deram lucro, algo que pode parecer baixo, mas é um número completamente distinto daquele que podemos encontrar na indústria de cinema portuguesa.
Nesse sentido, é inaceitável que o ICA Instituto do Cinema e do Audiovisual continue a não reconhecer os Videojogos enquanto área do Audiovisual. Depois de ter abandonado o M, da Multimédia na sua designação, em 2007, passou recentemente a oferecer novamente apoios para a área do Audiovisual e Multimédia, contudo o apoio concreto é apenas para: “- Séries de televisão de ficção;- Séries de animação;- Séries de televisão de documentário;- Telefilmes;- Documentários unitários;- Especiais de animação para televisão, designados "especiais TV””
Ora, isto são franjas da Multimédia, ou melhor só a Animação se pode designar como sendo Multimédia, tudo o resto é apenas Audiovisual. Mas repare-se como os Jogos Digitais não surgem, tal como não surge a Ficção Interativa, o Transmedia, os iDocs e Web-docs, os Livros Digitais ou obras de Realidade Virtual ou Aumentada. Ou seja, a Multimédia no ICA continua a não existir enquanto área criativa.
Mas a verdade é que acreditamos que os Jogos Digitais precisam de um reconhecimento mais alargado do que o ICA e o Ministério da Cultura. É obrigatório ter o Ministério da Economia a olhar para a área. E não apenas pelos potenciais números de empregabilidade ou potenciais milhões de retorno, é que a área da Multimédia e dos Jogos Digitais é responsável por arrastar consigo, devido à sua necessidade de inovação, um conjunto de outras áreas tão importantes como a Informática, o Design, a Arte e os Media, e servir ainda no apoio a áreas nobres como a Saúde e a Educação, veja-se a recente aprovação pela FDA de um jogo digital para o tratamento do Défice de Atenção.
Mas o desprezo do Estado não acontece apenas nos apoios diretos, o mesmo acontece na parte fiscal, ao contrário de vários países europeus como a Finlândia ou a Irlanda, em que temos as empresas com poucos recursos, a terem de verter uma parte considerável dos lucros para o Estado, em vez de verterem para a inovação e criação de novos produtos. Um exemplo simples: se uma empresa gerar 100 000 Euros de lucro num ano, e o quiser reinvestir no próximo projeto terá de retirar desse bolo cerca de 40% para o estado, restando-lhe apenas €60 000 para criar um novo jogo. Assim não vamos lá. Não podemos olhar para indústrias que querem nascer, erguer a indústria nacional, como sendo empresas sólidas, detentoras de lucros milionários. Mais, se queremos atrair massa crítica internacional, assim como investimento, temos de mudar.
As Universidades e os Politécnicos estão a fazer a sua parte, tendo criado 15 cursos de ensino superior — entre TeSP, Licenciaturas e Mestrados. Mas para quebrar o ciclo e dar o salto na ampliação da força de trabalho e na inovação e desenvolvimento o Estado precisa de criar programas específicos para a área, de preferência parcerias entre os diferentes Ministérios, capazes de dar conta da multidisciplinaridade deste domínio e da importância e retorno multidimensional para o país da área.
Fica o meu agradecimento à equipa que coordenou este novo número do Atlas assim como à SPCV pelo apoio à iniciativa que é fundamental para conhecer e identificar o que está a ser feito assim como o que pode e deve ser feito por esta área fundamental.
Descarregar o Altas #1 (2016) e o Atlas #2 (2020)
dezembro 14, 2020
O esplendor das Redes Sociais
Estudos atrás de estudos [1,2] têm demonstrado a necessidade básica de vivermos em grupo, de partilharmos a vida com outros, de dar conta dos nossos amores, derrotas, dores, ganhos, sofrimentos e vontades. Muitos dos recentes estudos da Psicologia Positiva falam disso como condição essencial para a felicidade, para o bem-estar, mas vêm de trás, vêm dos primeiros estudos da psicologia social e da aferição das motivações humanas [3], levando em conta processos de comparação humana [4, 5] e de aprendizagem social [6] que vêm inscritos em nós à nascença. Mas o modo como vamos vivendo, em que o trabalho assume cada vez mais o lugar central da nossa vida, torna tudo isso complicado. O gráfico abaixo ilustra um conjunto de ideias sobre as quais vale a pena determo-nos.
Por um lado podemos dizer que a ideia de que a vida são os amigos é muito sobrevalorizada, que tudo se resume ao parceiro, e em última análise, estamos mesmo sozinhos, nada a fazer.
Por outro lado, julgo que aquilo que este gráfico nos diz, comparando-o com aquilo que a psicologia nos diz que precisamos, é que as Redes Sociais se tornaram na tábua de salvação deste século XXI. Este processo de individualização, destruição das comunidades alargadas, iniciado no século XX com a industrialização e desenvolvimento acelerados, foi conseguido sem uma destruição de todos nós graças ao suporte dos Mass Media que garantiam um fio de relação humana constante, produzindo a necessária estabilidade emocional. No século XXI fomos mais longe, individualizámos ainda mais, mas ao mesmo tempo criámos as redes sociais que nos permitiram abandonar os media de massas, para voltar à relação direta com pessoas, relação comunitária efetiva, ainda que por via de redes digitais.
É um gráfico riquíssimo para reflexão sobre o que somos realmente, que põe a nu muitas falácias sobre aquilo que acreditamos ser.
dezembro 12, 2020
Evidência científica no uso de Videojogos como tratamento de crianças
"The EndeavorRx device offers a non-drug option for improving symptoms associated with ADHD in children and is an important example of the growing field of digital therapy and digital therapeutics." Jeffrey Shuren da FDA
BBC News: "Há estudos que afirmam, por exemplo, que os videojogos ajudam a obter melhores resultados académicos…"Desmurget: "Digo com franqueza: isso é um absurdo. Essa ideia é uma verdadeira obra-prima de propaganda. Baseia-se principalmente em alguns estudos isolados com dados imprecisos, que são publicados em periódicos secundários, pois muitas vezes se contradizem.Em uma interessante pesquisa experimental, consolas de jogos foram dados a crianças que estavam bem na escola. Depois de quatro meses, elas passavam mais tempo a jogar e menos a fazer os deveres de casa. As suas notas caíram cerca de 5% (o que é muito em apenas quatro meses!).Em outro estudo, as crianças tiveram que aprender uma lista de palavras. Uma hora depois, algumas puderam jogar um jogo de corrida de carros. Duas horas depois, foram para a cama. Na manhã seguinte, as crianças que não jogaram lembravam cerca de 80% da aula em comparação com 50% das que jogaram. Os autores descobriram que brincar interferia no sono e na memorização."
dezembro 08, 2020
Um rapaz de púrpura
A primeira vez que vi “Purpleboy” (2019) senti uma enorme inquietude que fez surgir a necessidade de ir mais ao fundo do filme. Procurei o realizador, o Alexandre Siqueira, que prontamente respondeu. Não queria explanações, queria antes compreender melhor quem era, de onde vinha e como tinha chegado a “Purpleboy”. A conversa levou-me a descobrir a obra “Viagem solitária - memórias de um transexual 30 anos depois” (2011) de João W. Nery, que decidi ler. “Purpleboy” não é uma ilustração de “Viagem solitária”, tem muitas pontes de contacto, mas são duas obras completamente autónomas. Ao rever o filme, senti-o ganhar densidade dentro de mim. Na primeira vez, não conhecia sequer o tema do filme, não estava preparado para entrar num mundo tão distante e ao mesmo tempo tão sensível e provocativo.
“Purpleboy” é uma obra curta em duração, mas extensa em argumento, muito é apresentado de forma apenas simbólica, por isso o espectador tem de ir atrás. Se o fizer é fortemente recompensado. Não só pelo significado, mas essencialmente pela imersão. O mundo criado pelo Alexandre está carregado de detalhe, por isso a atenção e o investimento na desconstrução é fundamental. O mundo representa-se por meio de uma mescla entre a fábula e o onírico, existindo momentos que roçam o puro surrealismo, mas que uma contemplação mais apurada acaba permitindo ao espectador adentrar e imergir ainda mais.
“Purpleboy” fala de transexualidade, mas fala também de uma busca de si na relação com o mundo e com a família. Alexandre utiliza um conjunto de metáforas poderosas — nomeadamente a escolha pela germinação na terra, com as partes visíveis e as partes escondidas, a proteção dos cuidadores e a dificuldade em sair, mostrar-se e afirmar-se — que envolve num cenário muito particular, o da ditadura no Brasil. O criador experienciou o final dessa era no Rio, o que o aproxima das memórias relatadas por João W. Nery, mas o cenário não é mera crítica política, serve na demonstração da força impositiva de padrões que nada reconhece além da normatividade.
O cuidado na animação é particularmente conseguido, já que não serve a mera dinâmica de cena, ou enquadramento de ação, mas antes imbui cada novo movimento de significado. Daí a necessidade de atenção do espectador, muito do que é dito apresenta-se em breves momentos por pequenas ações — o corte de relva, o invadir do lago de lágrimas, a flor que pinga ou as formigas que explodem — que parecem querer dizer apenas o que mostram, mas denotam muito mais. É claramente este uso da arte da animação que confere particularidade ao trabalho de Alexandre, algo que poderão entender melhor se virem a Masterclass que deu em dezembro passado em Ljubljana, Slovenija. É este trabalho que explica a lista de nomeações e prémios que o filme foi recebendo em festivais por todo o mundo — do Anima - Brussels Animation Film Festival ao Rhode Island International Film Festival, passando pelo Curtas Vila do Conde ou ANIMAGE International Animation Festival de Pernambuco.
dezembro 07, 2020
Viagem eletrizante por meio de palavras
A "Viagem Solitária" é uma das experiências de leitura mais gratificantes por que passei nos últimos anos, porque vem carregado de sensibilidade, mas especialmente porque nos abre a porta a um mundo distinto, difícil de conceptualizar mentalmente, o da transexualidade, tornando-a naturalmente humana. António Houaiss, o criador do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, escrevia como prefácio ao primeiro livro de João W. Nery, em 1984, "Leiam-no e humanizem-se.”
A maior questão que a transsexualidade evoca junto da camada de indivíduos sexuais padrão é: "como sabemos que não é um problema mental?" E isso é uma barreira muito difícil de ultrapassar para muitos. O caso do João é excelente, porque quem lê esta obra aprende a ver o mundo pelos olhos de um transexual. Enquanto Joana nunca gostou do seu corpo, sentiu-se sempre atraído por mulheres, mas sem qualquer pensamento lésbico, sentia-se heterosexual completo. Ler as suas palavras, o modo como sentia e desejava, torna tudo cristalino. Mas se dúvidas houvesse, quem seria capaz de abandonar conquistas de décadas enquanto mulher para se transformar num homem perdendo direito a tudo. Joana era licenciada e mestre em psicologia, professora universitária, adorada pelos seus alunos e colegas. Ao prosseguir com a operação, em pleno 1977, e na clandestinidade, perdeu o direito a usar o nome e os pergaminhos. O João nasceu com 27 anos. A pessoa que era continuou a sê-lo, num corpo diferente, mas para a sociedade passou de mulher Mestre a homem Analfabeto. Deixou o Rio e a academia e tornou-se agricultor no interior do Brasil.
O relato de algo assim impacta tudo aquilo que assumimos como realidade padrão. Mas maior do que isso é sem dúvida a frontalidade e lírica do relato. João, desde a infância demonstrou uma sensibilidade e empatia absolutamente à prova de ferro. A forma como escreve, como vê o mundo que sempre o mal-tratou, compreendendo a dificuldade desse mundo em relacionar-se com o diferente, o aparentemente impossível, o quase extra-terrestre, é digno de laudo.
“Havia um abismo entre como me viam e como me sentia.”
“Transformei-me literalmente num marginal, pois vivia à parte, à margem. Não pertencia nem ao grupo majoritário heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo minoritário e discriminado. Não me sentia mulher nem homossexual. Ainda desconhecia todas as categorias “inventadas” em meados do século XX. Sabia que não era aprovado pela maioria. Em que grupo existente me enquadrava?”
“Vislumbrei duas saídas: acabar comigo ou lutar contra o impossível. Não queria morrer. Sabia que só teria uma vida. Embora fosse uma desgraça, toda trocada, não haveria outra chance. Estava vivo sem comparações.”
A leitura do livro ajuda-nos a compreender como sente alguém a intensidade de estar vivo num corpo que não corresponde ao conceito de si. Como a componente sexual pode funcionar, sentir prazer e atingir o orgasmo, mesmo não existindo recursos físicos apropriados à função esperada. A mente toma conta da biologia e encarrega-se do frémito. O livro fala também de quem envolve a pessoa, da dificuldade de lidar com a não aceitação, de lidar com a mudança, coloca a questão sobre o passado que deixa de existir e o novo presente, tudo na mesma pessoa, na mesma irmã que passa a irmão. É um relato carregado de detalhe sobre o humano e as teias sociais que o sustentam, tão vitais e ao mesmo tempo tão frágeis.
Por isso, este livro do João, que nos deixou em 2018, não presta apenas homenagem a todos os transexuais do mundo, ele é um hino à humanidade, à nossa capacidade de nos transcendermos, de sermos tolerantes e abertos ao outro, qualquer que seja a sua condição. É uma obra magnífica, por tudo o que o João tem para nos dar, e pelo modo electrizante como dá conta do mundo ao seu redor, capaz de nos agarrar na primeira página e só nos largar na última.
Façam um favor a vós mesmos, leiam-no, o vosso mundo será mais precioso.
[Nota no GoodReads.]
dezembro 06, 2020
Do logro narrativo
Tenho notado um cada vez maior uso do logro narrativo, que se qualifica por um tipo de entretenimento altamente manipulativo, criado pelos contadores de histórias contemporâneas, talvez com maior incidência no domínio da ficção científica e do thriller. Cria-se todo um mundo-história altamente credível, no qual se apresenta uma premissa extremamente instigante que serve para manter os recetores completamente engajados, mas no final nada há para entregar. Ou seja, passam-se as páginas, passam-se os episódios, e a trama vai rodando sobre si, criando a ideia de que a saída está ao virar da esquina, mas o ciclo está fechado porque os criadores não sabem como sair dele.
O mais recente exemplo aconteceu-me com "Autoridade", o segundo livro da série "Aniquilação" de Vandermeer. No primeiro tomo não são dadas respostas, mas a trama evolui, ficamos a saber muito mais sobre o quê e o quem. No segundo livro, começamos muito bem, rente à análise que está a ser feita às pessoas que voltaram da última expedição, mas assim como começa, assim continua e assim acaba, sem dali sairmos. Vandermeer escreve como se tudo fosse muito importante, como se cada personagem, cada espaço, cada detalhe fosse oferecer explicações, respostas, avanços, mas nada, nada serve nada. Sentimos Vandermeer a escrever linhas atrás de linhas, abrindo ruas e avenidas, para mostrar coisas que não são relevantes para o que se pretende efetivamente descobrir, conseguindo assim encher páginas e páginas sem nunca ter de chegar a vias de facto. No final, dá um salto com o personagem, literalmente, e com isso abre o desejo para a leitura do terceiro livro, mas convenhamos que só com muita ingenuidade acreditaríamos que ele teria verdadeiramente algo para oferecer depois de nos ter enrolado um livro inteiro e oferecido uma mão cheia de nada.
Tinha sentido exatamente isto na segunda temporada do brilhante “The Leftovers”, assim como no sucessor do impressionante "Dark Matter" de Blake Crouch, “Recursion” (2019), que seguem o exemplo mais emblemático deste logro, o inesquecível “Lost”. Aliás, este é um assunto que já aqui tinha discutido a propósito do livro “The Lost Symbol” (2010) de Dan Brown, mas na altura peguei no mesmo por outra perspetiva, a do “objeto último” ou “inatingível”, e que define bem o mecanismo através do qual os criadores produzem o logro.
Em suma, todos estes criadores têm de apresentar trabalho. Precisam de produzir para ganhar a vida, e por isso debitar linhas, páginas, horas de televisão e de jogo é essencial. Não interessa sobre o quê, desde que os leitores e espetadores se mantenham fiéis e continuem a pagar. Só isso interessa. No fundo, estamos a falar de conteúdo literário e audiovisual enlatado, produzido em linhas de montagem, para cumprir a função de mero apaziguamento psicológico dos recetores, ou melhor, de adormecimento das suas funções cognitivas, fazendo-os esquecer mais um pedaço de tempo em que estiveram vivos. Nunca como agora tivemos tantas séries, tantas partes — 2, 3.. 6, 7 —e temporadas sem fim, e por isso nunca como agora tivemos tanta produção criada apenas porque é preciso criar, é preciso manter a máquina a funcionar. Esquece-se aqui a essência do processo criativo: liberdade para transcender não para entorpecer.