novembro 22, 2020

a mecânica da ficção

"A Mecânica da Ficção", ou "How Fiction Works" (2008) de James Wood, não é um livro sobre escrita, nem sobre os processos de criação ficcional, é antes um livro sobre elementos da escrita que despoletam mundos de ficção, pelo que devemos partir para a leitura percebendo que a ficção acontece na interação entre o texto e a imaginação de quem lê. Assim, o que Wood faz é uma discussão sobre aquilo que o leitor e crítico leem, veem e sentem quando tornam em ficção as palavras presentes numa folha de papel. Não é uma obra sobre os processo psicológicos de criação dessa ficção porque se cinge ao que está escrito, ao que vem no papel, não elaborando sobre os processos pelo meio dos quais, nós leitores, efabulamos a ficção. Dito isto, é um texto sobre estética, ou seja, a experiência da obra de arte, na sua assunção direta, na interpretação do que vemos, lemos e sentimos, sem procurar compreender o como, ou seja, a psicologia do autor, no modo como ele age e cria a escrita, e do leitor, no modo como ele infere e cria o imaginário. Funciona como boa introdução à análise literária, mas não deve ser visto como compêndio de técnicas de escrita nem de percepção narrativa.

Exposto o alerta, o texto de Wood é excelente para quem deseja compreender melhor a análise da ficção, nomeadamente da ficção criada por meio de texto. A sua leitura ajuda-nos a entender porque certas obras são consideradas melhores do que outras, além de nos ajudar a compreender a evolução histórica da arte literária, assim como o modo como se processa essa evolução. 

Deixo alguns excertos que considero excecionais e nos ajudam a ser melhor leitores. Apesar de ter lido a versão portuguesa da Quetzal, numa tradução do Rogério Casanova, os excertos provêm da edição digital brasileira da SESI-SP, com tradução de Denise Bottman.


Narração e estilo indireto livre

“A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três portas. Posso contar uma história na primeira ou na terceira pessoa, e talvez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só. Qualquer outra coisa não vai parecer muito uma narração, e pode estar mais perto da poesia ou do poema em prosa. (...) Na verdade, estamos presos à narração em primeira e terceira pessoa. A ideia comum é de que existe um contraste entre a narração confiável (a onisciência da terceira pessoa) e a narração não confiável (o narrador não confiável na primeira pessoa, que sabe menos de si do que o leitor acaba sabendo).” (cap. 1)

“Uma vez W. G. Sebald me disse: “Para mim, a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro. Não aguento ler esse tipo de livro”.”

“A chamada onisciência é quase impossível. Na mesma hora em que alguém conta uma história sobre um personagem, a narrativa parece querer se concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com ele, assumir seu modo de pensar e de falar. A onisciência de um romancista logo se torna algo como compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expressão que possui diversos apelidos entre os romancistas − “terceira pessoa íntima” ou “entrar no personagem”"

Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre eles − que é o próprio estilo indireto livre − fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância."

"Esta é apenas outra definição da ironia dramática: ver através dos olhos de um personagem enquanto somos incentivados a ver mais do que ele mesmo consegue ver (uma não confiabilidade idêntica à do narrador não confiável em primeira pessoa).”


Flaubert, a revolução da forma e do detalhe

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível. Quando falamos de uma boa prosa, raramente comentamos que ela realça o detalhe expressivo e brilhante; que privilegia um alto grau de percepção visual; que mantém uma compostura não sentimental e que se abstém, qual bom criado, de comentários supérfluos; que é neutra ao julgar o bem e o mal; que procura a verdade, mesmo que seja sórdida; e que traz em si as marcas do autor, que, embora perceptíveis, paradoxalmente não se deixam ver. ” (cap. 29)

De início, não notamos o cuidado com que Flaubert escolhe os detalhes, porque ele se esforça em nos ocultar esse trabalho, e é zeloso em esconder a questão sobre quem está notando todas essas coisas: Flaubert ou Frédéric? Flaubert foi muito claro a respeito. Ele queria que o leitor ficasse diante do que chamava de parede lisa de prosa aparentemente impessoal, os detalhes apenas se acumulando, como na vida. “Um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”, disse numa frase famosa numa carta de 1852. “Como a arte é uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve operar com procedimentos semelhantes: que se sinta em cada átomo, em cada aspecto, uma impassibilidade oculta, infinita. O efeito no espectador deve ser uma espécie de assombro. Como surgiu tudo isso!” (cap .30)

Flaubert baseia esse novo estilo realista no uso do olhar − o olhar do autor e o olhar do personagem (...) Essa figura é, em essência, um substituto do autor, é seu explorador permeável, irremediavelmente transbordando de impressões (...) O surgimento do explorador permeável está intimamente ligado ao surgimento do urbanismo, ao fato de que imensas aglomerações de seres humanos lançam ao escritor − ou ao substituto designado para isso − quantidades imensas e atordoantes de detalhes variados. Jane Austen é, basicamente, uma romancista rural” (cap. 33)

Se podemos narrar a história do romance como o desenvolvimento do estilo indireto livre, também podemos narrá-la como o surgimento do detalhe. É até difícil dizer por quanto tempo a narrativa de ficção foi escrava dos ideais neoclássicos, que preferiam a fórmula e a imitação ao individual e à originalidade.” (cap. 49)

Podemos ler Dom Quixote, Tom Jones ou os romances de Austen e encontrar pouquíssimos daqueles detalhes recomendados por Flaubert. Austen não nos dá nada dos aparatos visuais que encontramos em Balzac ou Joyce e quase nunca se detém em descrever sequer o rosto de um personagem. Roupa, clima, interior, tudo está comprimido e afinado com elegância. Os personagens secundários em Cervantes, Fielding e Austen são teatrais, muitas vezes estereotipados, e passam quase desapercebidos no sentido visual.” (cap. 50)

“Como ocorre tantas vezes, a herança flaubertiana é uma bênção ambígua. Surgem de novo aquele estranho peso da “seletividade” que sentimos nos detalhes de Flaubert e a consequência dessa seletividade para os personagens do romancista − nossa sensação de que a escolha do detalhe se tornou o tormento obsessivo de um poeta, e não a leve alegria de um romancista.” (cap. 50)

“Assim, durante o século XIX, o romance se tornou mais pictórico.” (cap. 51)

“Não podemos escrever sobre ritmo sem falar de Flaubert, e assim, mais uma vez, como alguém que vive relendo as velhas cartas de um antigo amor, volto a ele. Claro que, antes de Flaubert, outros autores se mortificaram com o estilo. Mas nenhum romancista se preocupou tanto ou tão publicamente, nenhum romancista fez da poética “da frase” um fetiche no mesmo grau que ele, nenhum romancista levou a tais extremos a potencial separação entre forma e conteúdo (Flaubert sonhava em escrever, como dizia, um “livro sobre nada”). E, antes dele, nenhum romancista se compenetrou tanto em refletir sobre questões técnicas. Com Flaubert, a literatura se tornou “essencialmente problemática”, como definiu um estudioso. Ou apenas moderna?” (cap. 103)

“E o que Flaubert entendia por estilo, por musicalidade de uma frase? Esta é de Madame Bovary − Charles se sente estupidamente orgulhoso por ter engravidado Emma: “L’idée d’avoir engendré le délectait”. Tão compacta, tão precisa, tão rítmica. A tradução literal é: “A ideia de ter engendrado deliciava-o”. Geoffrey Wall, em sua tradução para a Penguin, escreve assim: “The thought of having impregnated her was delectable to him” [O pensamento de tê-la engravidado lhe era deleitável]. Isso é bom, mas coitado do pobre tradutor. Pois o inglês é um primo pobre do francês.” (cap. 103)


Metáfora

“A metáfora é análoga à ficção porque sugere uma realidade rival. É o processo imaginativo inteiro numa única ação. (...) “Estou lhes pedindo que imaginem outra dimensão, que concebam uma semelhança. Toda metáfora ou símile é uma pequena explosão de ficção dentro da ficção maior do conto ou do romance. (...) E é claro que essa explosão da ficção-dentro-da-ficção não é exclusivamente visual, assim como nenhum detalhe na literatura é exclusivamente visual.” (cap. 107)

“O tipo de metáfora que mais me agrada, porém, como as citadas sobre o fogo, é aquela que cria um estranhamento e logo em seguida faz uma conexão, e, ao fazer tão bem esta última, oculta o primeiro. O resultado é um pequeno choque de surpresa, seguido por uma sensação de inevitabilidade. Em Rumo ao farol, a sra. Ramsay dá boa-noite aos filhos e fecha cuidadosamente a porta do quarto, deixando "a língua da porta se estender devagar na fechadura”. A metáfora nessa frase não consiste tanto na “língua”, que é bastante convencional (pois as pessoas falam nas linguetas das fechaduras), mas está secretamente enterrada no verbo “estender”. Esse verbo estende o procedimento inteiro: não é a melhor descrição que vocês já leram de alguém virando muito devagar a maçaneta da porta para não acordar as crianças? ” (cap. 108)


Se comecei este texto por dizer que o livro tratava a análise literária e não a escrita, foi porque muito daquilo que aqui se descreve não está presente, pelo menos de forma consciente, na mente de quem escreve. O processo criativo, seja na escrita, pintura ou outra arte qualquer não se compadece de formulas nem guiões, a não ser quando se trabalha por encomenda. O modo como escolhemos as palavras, ou a palete de cores, em cada momento é determinado pelo imenso turbilhão de desejos e tensões que ocupam o nosso não-consciente na interação com o consciente. O criador, cria algo novo, porque se deixa levar pelo processo, e não porque se senta dizendo: "hoje vou criar uma metáfora capaz de..." ou "vou colocar o narrador depois do autor e antes do personagem". Se assim fosse, nada fluiria, apenas estruturas e mapas emergiriam em resposta à vontade predeterminada de criar. Isto é algo que se sente muito ao longo da leitura do texto, em que por vezes parece que Wood faz o criador ter a intenção de, quando na verdade, o criador é levado pelo próprio processo criativo. Nós, na análise é que podemos depois depurar o quê e o como, mas isto não serve a quem cria, apenas a quem analisa.

Isto é tanto mais evidente em dois capitulos que considerei mais fracos, "Personagens" e "Diálogo", porque Wood se deixa levar inteiramente pela subjectividade da sua experiência sem perceber que aquilo que interpretamos num texto, não é igual para todos. Ou seja, se o criador segue um processo interno próprio, o leitor não deixa também de o seguir. A imagimação criada na minha mente, a partir de uma frase lida num livro, não depende tanto daquilo que Wood aqui desconstrói, mas bem mais do meu processo de inferência, um processo completamente dependente da minha história experiencial enquanto dono de uma consciência humana. Por isso, ser um leitor europeu ou americano (mais nova-iorquino), com formação superior, vivendo no século XXI, com a leitura do cânone ocidental clássico realizada, permite-nos chegar muito mais próximo da Ficção imaginada por Wood do que falhando qualquer um destes elementos definidores do leitor.

Uma nota final sobre Flaubert. Agradeço a Wood todo esta desconstrução literária e análise histórica do impacto do trabalho de Flaubert, sem o que eu teria tido dificuldade em compreender o porquê de tantos grandes nomes da literatura se curvarem perante o mesmo. Compreendi e passei a respeitar muito mais Flaubert e a sua obra, ainda que julgue que tal não altere, em profundidade, ambas as interpretações que fiz dos dois livros seus que li"Madame Bovary" (1857) e "Educação Sentimental" (1869). Em ambos, foquei-me quase exclusivamente no conteúdo, a história, por me faltar este enquadramento histórico-literário apresentado por Wood. Mas como fiquei a saber por Wood, Flaubert era um formalista, à semelhança de Hitchcock, ambos sempre desprezaram o que se contava, interessava-lhes apenas a forma como se contava.

Wood termina com um capítulo intitulado "Verdade, convenção, realismo", no qual se dedica ao mais velho problema da arte — ilusão ou realidade; verdade ou viés. É uma questão cíclica, e ainda que sempre instigante, mas na verdade apenas relevante quando se analisa a estética desprendida da psicologia.

novembro 17, 2020

Transcend: The New Science of Self-Actualization (2020)

Maslow é para mim um dos mais importante teóricos da psicologia, nomeadamente do domínio da motivação humana, por isso este trabalho de Barry Kaufman, "Transcend: The New Science of Self-Actualization" (2020), enquanto tentativa de atualização do maior legado de Maslow, a Pirâmide de Necessidades Humanas de 1943, é uma obra fundamental. Não deixa de impressionar como uma teoria criada há quase 80 anos continua tão atual como quando proposta, no entanto existe sempre espaço para melhorar, e é isso que Kaufman aqui se propõe. 

Neste livro Barry Kaufman, assente na Pirâmide de Necessidades e em estudos multidisciplinares — de áreas como “positive psychology, social psychology, evolutionary psychology, clinical psychology, developmental psychology, personality psychology, organizational psychology, sociology, cybernetics, and neuroscience” — juntamente com um estudo aprofundado do legado e dos últimos escritos deixados pro Maslow, apresenta uma revisão da proposta na forma de “Sailboat Metaphor”.

Representação da “Sailboat Metaphor” de Barry Kaufman

Neste conceito o foco deixa de ser a “necessidade” e passa para a “auto-realização”. No modelo de Maslow essa realização surgia apenas no topo da pirâmide, Kaufman propõe uma revisão em que oferece mais espaço à conceptualização da realização humana, tornando-a central para aquilo que definimos como “sentido da vida”. Assim, e como se pode ver na imagem, mantém-se um conjunto de necessidades que estão situadas dentro do barco, fundamentais para garantir a segurança dos indivíduos e mantê-los à tona da água. No topo do barco, surge a vela, aquela que nos pode levar “mais longe” se aprendermos a manejar a mesma. 

“To use the sailboat metaphor, while we each travel in our own direction, we’re all sailing the vast unknown of the sea (…) you don’t ‘climb’ a sailboat like you’d climb a mountain or a pyramid. Instead, you open your sail, just like you’d drop your defenses once you felt secure enough. This is an ongoing dynamic: you can be open and spontaneous one minute but can feel threatened enough to prepare for the storm by closing yourself to the world the next minute. The more you continually open yourself to the world, however, the further your boat will go and the more you can benefit from the people and opportunities around you. (…) And if you’re truly fortunate, you can even enter ecstatic moments of peak experience—where you are really catching the wind. In these moments, not only have you temporarily forgotten your insecurities, but you are growing so much that you are helping to raise the tide for all the other sailboats simply by making your way through the ocean. In this way, the sailboat isn’t a pinnacle but a whole vehicle, helping us to explore the world and people around us, growing and transcending as we do.”

Esta metáfora é bastante mais rica que a da pirâmide, desde logo porque se introduz com dinâmica, o que permite compreender o funcionamento de cada elemento na dimensão tempo. Mas também porque a separação realizada, entre a segurança, ou necessidades fundamentais, e o crescimento humano, leva o modelo bastante além na compreensão da auto-realização humana, algo que urge compreender para podermos trabalhar as nossas sociedades em registos aceitáveis de sanidade mental.

Kaufman propõe uma visão além do barco, correspondendo ao céu acima do mesmo, no qual pode acontecer a chamada transcendência do humano:

 “At the top of the new hierarchy of needs is the need for transcendence, which goes beyond individual growth (and even health and happiness) and allows for the highest levels of unity and harmony within oneself and with the world. Transcendence, which rests on a secure foundation of both security and growth, is a perspective in which we can view our whole being from a higher vantage point with acceptance, wisdom, and a sense of connectedness with the rest of humanity.”

Confesso que esta parte relativa a transcendência, e que no fundo dá nome ao livro foi a que menos me falou. Compreendendo o objeto de Kaufman, e até que o próprio Maslow passou os últimos anos a trabalhar neste campo, considero-o demasiado próximo da individualidade de cada um, excessivamente íntimo, o que acaba fazendo com que aquilo que se propõe se pareça mais com abordagens espirituais e de auto-ajuda, do que fruto da ciência. 


Não me parece que a metáfora de Kaufman venha substituir a de Maslow, mas julgo que a complementa, acabando por a tornar mesmo mais relevante, no sentido em que o trabalho de Maslow continua atual e assim a ser atualizado.

novembro 14, 2020

Livro: "Solaris"

"Solaris" Stanislaw Lem foi publicado em polaco em 1961, traduzido para inglês em 1970, e transformado em filme de culto russo, em 1972, por Andrei Tarkovsky. Nos últimos 25 anos vi o filme, pelo menos, uma dezena de vezes, e de cada vez fui compreendendo mais e melhor o mundo-história que nos era apresentado. Ajudou, pelo meio, a leitura de "Cosmos" (1980) de Carl Sagan, assim como múltiplas outras leituras de não-ficção e ficção-científica, assim como o meu próprio amadurecimento. Em 2002 saiu a versão de Soderbergh que pouco acrescentava, apesar de apresentar um discurso mais direto porque menos poético. O meu amor pelo cinema, e enorme respeito por Tarkovsky, fez com que tivesse sempre considerado a sua obra insuperável. Sempre que pegava no texto de Lem, as primeiras páginas faziam-me sentir que a simples especulação escrita nada podia face à mestria poética cinematográfica. Terminada a leitura, continuo a reconhecer a mestria artística de Tarkovsky, mas percebi que o visionarismo pertence todo a Lem.

Capa da primeira edição inglesa

A leitura do texto fez-me sentir que Tarkovsky tinha escondido excessivamente o âmago do universo de Lem no interior do seu filme. Ele está lá, e basta ver o curto videodoc  "Auteur in Space" (2015) de Kogonada para reavivar memórias e ligações, mas requer muito trabalho e persistência por parte do espectador, assim como bastante contexto. Ao terminar o livro, senti que Lem se tinha dado a nós, que mais do que um romance, tinha feito uma grandiosa obra especulativa, ou se preferirmos uma obra de "não-ficção futurista". Lem acusou Tarkovsky de se focar apenas nas relações humanas, o que é incorreto. Tarkovsky fá-lo tanto como Lem. O cerne de Solaris pode ser visto a partir da perspectiva preferida de Lem, a incomunicação com o não-humano, mas essa abordagem é construída com base em processos de espelho da noção de existência do humano, ou seja, das memórias, e isso é central tanto em Tarkovsky como em Lem.

Imagem central do filme homónimo de Andrei Tarkovsky com a russa Natalya Bondarchuk (Rhea) e o lituano Donatas Banionis (Kris)

A escrita surpreendeu-me, para uma obra de género, escrita sob um regime de opressão política como a URSS, e com cerca de 60 anos, é muito boa. Não existem artifícios de estrutura, nem inovações formais, a história serve apenas o relato, mas a escrita juntamente com a ciência eleva todo o discurso a ponto de nos colocar num elevado estado reflexivo. Se Tarkovsky consegue elevar a experiência por meio da poesia audiovisual, Lem fá-lo por meio da perfuração direta de conceitos sobre a condição humana.

novembro 12, 2020

O problema dos três-corpos

Finalmente li "The Three-Body Problem" do chinês Liu Cixin. Quando saiu em inglês, no final de 2014 e ganhou o Hugo 2015, despertou-me uma curiosidade imensa, por vir classificado como Hard SF e de uma geografia culturalmente distante, a China. A somar a tudo isto o título fazia-me pensar constantemente no "problema mente-corpo" — à data desconhecia o "problema dos três corpos" — despertando a ideia de que estaria perante uma obra de grande fulgor filosófico. Terminada a leitura, muitas das minhas expectativas saíram goradas, criando um sabor amargo na experiência. Confesso que não ajudou ter criado tantas expectativas, mas também não ajudou tanto cliché narrativo decalcado da tradicional FC americana. Faltou-me exoticismo cultural, mas acima de tudo faltou-me elevação discursiva. Sim, muitos conceitos debatidos — a variação e constância da dinâmica — são brilhantemente expostos, ainda que de algum modo com excesso de redundância, mas quando se entra pelos mundos Nano e Pico adentro, pelas cordas e não-dimensionalidade, é tudo demasiado superficial, serve apenas a complexificação da trama que acaba por terminar numa espécie de banal romance policial.

Compreendo o entusiasmo na receção à obra, dada a geografia e o sucesso do autor no seu país. Confesso também que Cixin apesar de ter uma escrita regular, sabe gerir muito bem o suspense e despertar a curiosidade fazendo com que viremos páginas atrás de páginas. Sim, a escrita socorre-se excessivamente de exposição falhando na dramatização (o chamado tell-show), mas isso não perturba a leitura uma vez que o autor coze muito bem a informação e nos mantém sempre engajados até ao final. 

Assim, se gostei imenso do ambiente inicial assente na história da Revolução Cultural chinesa, ou ainda do videojogo RV, que Cixin usa fundamentalmente para a exposição de conceitos, desgostei imenso toda a trama muito básica de vinganças, ataques, invasões, insectos, etc. Desgostei, como não poderia deixar de ser, seguir atrás de personagens que olham para o desconhecido com o único desejo de se vingarem naqueles que os maltrataram. De personagens, que se colocam no extremismo oposto à Revolução, e se assumem acima do comum humano por via do mero intelecto, algo que pode fazer sentido na rebeldia dos 16/17 anos. Mais, considero que Cixin passou a linha vermelha ao colocar a protagonista no lugar de assassina, ignorando a moralidade de tal conduta.

novembro 01, 2020

Cinema: Genocídio da Ucrânia 1932-33

Acabei de ver "Mr. Jones" (2019), no TV Cine, e nem acredito que o filme saiu com este título, mas pior ainda que passou quase despercebido. O filme relata a descoberta internacional do Genocídio da Ucrânia nos anos 1932-33 provocada por Estaline, por um jornalista inglês, Gareth Jones. Depois de publicar, em Inglaterra, o que tinha visto na sua passagem clandestina pela Ucrânia, Gareth Jones viu-se alvo de uma campanha de difamação, chegando a ser desdito em plena primeira página do New York Times por um jornalista ganhador do Pulitzer e correspondente em Moscovo. Jones não recuou, conseguiu fazer-se ouvir e dar voz a milhões de mortos na Ucrânia, mas acabaria por pagar com a vida alguns anos mais tarde, às mãos da polícia secreta da URSS. O filme de Agnieszka Holland é duro, mas consegue colocar-nos dentro do mundo relatado, levando-nos a sentir a dor da revolta.
O filme impactou-me bastante porque desconhecia esta passagem da história da Ucrânia e o jornalista Gareth Jones. Os criadores aproveitaram para juntar Gareth Jones num almoço, alegadamente ficcional, com George Orwell, mas ainda assim sustentado pelas palavras do próprio Orwell que diz ter baseado a escrita de "A Quinta dos Animais" (1945) em Estaline e na URSS. Ao longo do filme, vamos ouvindo Orwell recitando a escrita do livro, podendo ligar a alegoria por ele criada à descoberta de Jones.

Recomendo totalmente o visionamento.

outubro 28, 2020

Da Loucura à Psicologia

 “Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of Reason” é a tradução inglesa do primeiro livro de Michel Foucault, uma tese publicada no meio académico como “Folie et déraison: Histoire de la folie à l’âge Classique” (1961), revista em 1972 e publicada como “Histoire de la folie à l’âge Classique”, mas que teve na sua génese um primeiro trabalho de Foucault “Maladie mentale et personnalité” (1954), quase desaparecido, mas republicado novamente em 1962 como “Maladie mentale et psychologie”. Esta obra origina nos anos iniciais de Foucault, início dos anos 1950, em que dava aulas de psicologia na Universidade de Lille, e simultaneamente realizava pesquisa no hospital psiquiátrico, de Sainte-Anne em Paris, focado na relação médico-paciente. O livro de 1954 acaba surgindo como um conjunto inicial de escritos sobre conceitos e definições, sem grande método, uma espécie de tese de mestrado, tanto que Foucault procurou que não fosse republicado. A versão, de 1961, designado como “Folie et déraison”, resultado da sua tese de doutoramento, é aquele que é traduzido como “Madness and Civilization”, e marca o primeiro livro do autor.

Em “Madness and Civilization” Foucault inicia a criação da sua abordagem metodológica ao conhecimento, por via da fusão histórico-sociológica. Assim, ao longo deste livro Foucault debruça-se sobre o desenvolvimento da loucura e do lugar do louco na sociedade europeia desde a idade média, no século XIII até ao século XIX. Para o efeito divide 6 séculos em 4 grandes vagas que traça em função das relações conceptuais atribuídas à loucura. 

"Navios dos Loucos" (1516) de Hieronymus Bosch é um recorte da aba esquerda do Tríptico do Vagabundo, e pode ser visto no Museu do Louvre.

Assim temos uma primeira, de afastamento e desterro, com as pessoas que sofriam de doença mental a serem retiradas de circulação por via dos chamados “Stultifera Navis” (navios de loucos); uma segunda de proximidade com a doença, a lepra, em que os lugares que serviram o distanciamento dos doentes contagiosos, finda a peste passariam a ser utilizados para receber os loucos, adicionando o estigma do contágio; numa terceira fase, as casas de acolhimento hospital passam a receber não só os loucos mas também criminosos, como indesejados pelas famílias ricas, entre outros, acrescentando o estigma da criminalidade; e uma última de relação com a inutilidade, porque após a terceira fase, os criminosos eram colocados a trabalhar nas cidades gerando rendimento, mas os loucos, por não se conseguirem adequar à realização de tarefas, não geravam rendimentos e por isso eram atirados para colabouços sem quaisquer condições. Só a partir do século XVIII, diz Foucault, é que finalmente se começa a reconhecer a loucura e a depressão como doenças, e se encetam um conjunto de reformas por forma a começar a tratar as pessoas enquanto doentes, e não como estorvo ou alheio à sociedade.

"Casa de Loucos" (1819) de Francisco de Goya

Traçada esta evolução, para Foucault resulta claro que é a necessidade de começar a compreender a doença mental que vai permitir ou exigir o surgimento da psiquiatria e da psicologia.

Apesar de ser um livro excecional, considero-o menos conseguido que "Vigiar e Punir" (1975), o que não surpreende, já que distam quase 15 anos um do outro. Foucault evoluiu e aprimorou o seu modo de trabalhar, e constrói leituras bastante mais instigantes a partir dos quadros históricos que vai apresentando. Ainda assim, este é um livro seminal para quem quer que se interesse pela psicologia, ou pela doença mental.

outubro 25, 2020

As origens dos Rougon-Macquart

“La Fortune des Rougon” (1871) é um livro menos conhecido de Zola, no entanto é um livro de grande importância para o conhecimento da sua obra, por se tratar do livro que inicia a sua série “Rougon-Macquart” (1871-1893). Esta série é ela mesma o seu maior legado, não apenas pelas 20 obras que a perfazem, mas pela planificação, dedicação e intenção votada à mesma. Zola, muito impressionado com “A Comédia Humana” de Balzac (92 livros, escritos entre 1830 e 1856), decidiu avançar para algo próximo, ainda que menos ambicioso, mais focado, deixando a sociedade como um todo para se focar na família, como ele diria “menos social e mais científico”:

“Je veux expliquer comment une famille, un petit groupe d’êtres, se comporte dans une société, en s’épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus, qui paraissent, au premier coup d’œil, profondément dissemblables, mais que l’analyse montre intimement liés les uns aux autres. L’hérédité a ses lois, comme la pesanteur.” Émile Zola, Préface, “La fortune des Rougon”, 1871

Tendo em conta este enquadramento percebe-se a relevância maior de “La Fortune des Rougon” que como diria J.K. Huysmans, poucos anos depois do lançamento, em 1877, que “deveria ter como verdadeiro título, as Origens”. É nesta obra que conhecemos Adelaide Fouque a progenitora de toda a árvore genealógica dos Rougon-Macquart, algo que é per se um facto de grande peso, já que nos faz sentir e compreender não apenas a família que vamos acompanhar ao longo de décadas, mas como funciona em essência a espécie humana, a sua arborescência natural e progressiva florescência. 

A árvore genealógica dos Rougon-Macquart criada por Zola na planificação da sua obra (versão de 1878)

Existe algo na questão familiar que nos fascina intrinsecamente, o compreender como surgem os seres-humanos, assim como o compreender como estamos todos interligados, apesar de toda a nossa aparente individualidade. Nascemos como bonecas russas, uns dos outros, brotamos como frutos que por sua vez dão origem a novos frutos, que seguem em ciclos, de morte e nascimento, em que a vida dá lugar à morte, mas a morte é apenas o fim de uma etapa, não do todo. A família surge de uma pessoa apenas que se une a outra a partir do que se originam dezenas, centenas, milhares, milhões de outras vidas, tornando impossível o fim, tornando possível o infinito dos legados de cada um de nós. É todo um processo de aparente naturalidade, mas deveras impressionante, pela complexidade de cada nova vida que surge a partir de algo tão insignificante como a união de duas microscópicas células. Zola não fala desta biologia, foca-se na interação humana, nas relações, intenções, motivações e desgostos e como trespassam os humanos nas suas encadeações familiares, o que inevitavelmente nos leva a questionar não apenas a família Rougon-Macquart, mas a imagem natural de qualquer família.

Quanto à escrita e forma, sendo boas, têm alguns momentos menos conseguidos, com excessivo estender de algumas cenas ou falhas na ilustração de algumas ações, mas talvez o pior seja mesmo o excesso de exposição em detrimento da ação dramática. Zola sente-se a contar o início de uma história, e conta descrevendo, esquecendo muitas vezes de mostrar o que se passou, fazendo com que por vezes conte a penas a informação que está a ser debitada para nosso registo. Ainda assim, provavelmente pela relevância dessa informação para o resto dos livros que pensamos querer ler, mantém-nos sempre interessados, progredindo atrás de cada um dos filhos de Adelaide e seus netos.

Sobre a continuidade da leitura, fiquei em dúvida. Este foi o meu terceiro Zola, depois do magnífico “Germinal” (1885) (que é o 13º volume dos Rougon-Mcquart), e do interessante “Thérèse Raquin” (1867) (o seu terceiro livro e primeiro sucesso literário), e aproximou-se mais de Thérèse do que de Germinal, o que não me dá suficiente força para ir a correr ler os restantes volumes. Contudo, e tendo em conta a facilidade com que se podem ler os livros em qualquer ordem, penso ler mais alguns dos volumes, ao longo dos próximos tempos, nomeadamente “L'Assommoir” e “Nana” e ver como corre, talvez ainda também “L'Œuvre” e “La Bête humaine”. É certo que este livro me deixou com vontade de ler o último, por ser dedicado ao filho mais íntegrou dos Rougon, “Le Docteur Pascal”, mas esse terá de esperar. 

Para quem quiser entrar na aventura, deixo a recomendação de um sítio "Le Compagnon des Rougon-Macquart", onde poderão encontrar muitíssima informação sobre a série, não só críticas e resenhas à data de saída de cada livro, mas também considerações, esboços e planos de Zola para a escrita e construção da saga. 

A Editora Civilização lançou em Portugal, nos anos 1980, todos os 20 livros encadernados em 10 volumes de luxo. Existem múltiplas edições das encadernações, eu comprei até agora 4 volumes, pertencentes a 3 séries diferentes, ainda que o conteúdo interno seja igual entre todas as edições.

Sobre as edições e traduções, comprei alguns volumes da coleção completa em 10 volumes da Editora Civilização, mas fiquei um tanto mal impressionado com algumas partes da tradução, de modo que li apenas um terço nessa, acabando de ler o livro no original. O francês de Zola não é fácil, nomeadamente pelos tempos verbais usados, mas ainda assim pareceu-me acessível. A Biblioteca Eletrónica do Quebec disponibiliza os 20 volumes em francês gratuitamente.

outubro 18, 2020

A Fantasia da Terra Fraturada

O último volume da trilogia Terra Fraturada — The Stone Sky (2017) — é um trabalho soberbo, na continuação dos volumes anteriores, com direito a uma ampliação da história que vai muito além do esperado, com um ritmo de leitura imparável até ao final. Contudo, se até 2/3 segui Jemisin, e adorei todo o novo enquadramento proposto, perdeu-me no último terço, quando desistiu da ciência para simplesmente abraçar a fantasia. Acabou seguindo, para mim, o caminho mais fácil, fazendo com que o universo que vinha construindo até ali, sempre na fina linha entre ciência e fantasia, se perdesse de vez. Ou seja, continua sendo um grande livro no domínio da FC & Fantasia, mas acabou por se fechar no género, ao contrário do que tinha acontecido antes, especialmente com o primeiro livro.

A questão da fantasia é tanto mais frustrante quanto percebemos que Jemisin sustenta, do ponto de vista da ciência, quase 80% de tudo aquilo que montou enquanto mundo-história. Sinceramente não percebi a necessidade de extravasar, de dar consciência ao planeta, de introduzir decisões morais em eventos produzidos por aquilo que seriam forças magnéticas entre a Terra e a Lua. Até ao último terço, teria sido possível sustentar praticamente tudo, mesmo a ideia da "magia" que Jemisin coloca sempre em itálico, poderia ser uma espécie de "fluxo de vida", como algo próximo de "energia". Mas não, no final parece que abandonamos o mundo da Terra Fraturada para abraçar o mundo dos super-heróis, a génese dos seus poderes, as intrigas e as missões ocultas de sabotagem, etc. 

Do mesmo modo, o surgimento da raça Niess, uma espécie de novos judeus perseguidos, depois redimidos por via da criação genética dos tuners é não só excessivo, mas desnecessário. Já tínhamos os Roga, com a orogenia e a ferrugem, para quê adicionar mais uma raça de oprimidos? Não existe suporte para tal, não se percebe o sentido, e depois acaba meramente a servir de justificativo moral, bons e maus, para a fantasia do “Pai Terra”, algo que sempre esperei vir a ser explicado como mero mito.

O final de "Raised by Wolves" não só abandona a ciência, como entra pelo mundo do bizarro adentro sem nunca olhar para trás.

A minha experiência de leitura assemelhou-se bastante ao que aconteceu com a recente série de Ridley Scott, "Raised by Wolves" (2020). Se adorei experienciar, ser levado na desvelação de cada nova camada de ideias e conceitos, dedicando-me a descodificar e a significar cada elemento, à medida que o significado derradeiro do mundo se ia evidenciando o meu entusiasmo ia esmorecendo, com o espanto a dar lugar a ausência de reação...

Apesar desta minha deceção, a trilogia só dificilmente não se tornará um clássico da FC, ganhar 3 prémios Hugo seguidos não está ao alcance de qualquer um. NK Jemisin é uma autora imensamente talentosa, e alguém que precisamos de continuar a seguir. Deixo o seu discurso realizado na entrega do terceiro Hugo:



Trilogia Terra Fraturada 
Análise do Volume I, 1 julho 2020 
Análise do Volume II, 26 julho 2020

outubro 12, 2020

Intelligence Trap (2019)

O livro, The Intelligence Trap: Why smart people do stupid things and how to make wiser decisions, apresenta-se com um título e premissa muito instigantes, mais ainda em tempo de: grande polarização dos discursos na sociedade; perda de influência das figuras de especialistas e autoridades; assim como desintegração das metanarrativas que orientavam a sociedade para grandes objetivos. Contudo, não deixa simultaneamente de se apresentar como uma premissa popular, que se socorre de ideias genéricas e crenças assentes na mera anedota, com parca evidência científica. Se estranhamos, chegando mesmo a perturbar-nos, ver alguém que temos como inteligente ser levado ao engano por eventos ou situações simples, até patetas, daí não devemos desde logo intuir a regra, mas talvez antes manter a porta aberta à exceção. Mas vejamos o que nos diz Robson.

David Robson é um jornalista de ciência que tem trabalhado para alguns média de relevo, tais como BBC, New Scientist ou The Atlantic. Este seu livro, diz-nos, foi feito a partir de um conjunto de entrevistas realizadas com especialistas ao longo de 3 anos. A ideia de Robson era perceber porque pessoas inteligentes e educadas cometem grandes erros, tendo servido como mote: a história do Professor de Física que foi burlado num esquema de mulheres atraentes e correios de droga (história completa no NYT).

Para suportar a sua abordagem, começa com um dos ataques mais populares do último meio-século, o Coeficiente de Inteligência (IQ). Não sendo defensor desta métrica, não o sou porque não sou defensor de métricas, e não porque não creio na sua base teórica. Ou seja, algumas pessoas nascem com maiores privilégios cognitivos que outros. Isto não tem nada de anormal, menos ainda mágico. Para compreender porquê, basta uma comparação com algo mais imediato e mais popular ainda, a beleza humana. Por mais que instituamos a beleza como subjetiva, todos temos noção da enorme diferença que existe entre todos nós, e dos padrões com maior e menor poder de atração. Podíamos falar dos corpos com maior massa muscular, ou maior endurance física, etc. etc. Sendo diferentes, também o somos no que toca às capacidades de raciocínio. A grande questão é saber se os testes que fazemos aferem realmente melhores capacidades ou não. Mas isso, na verdade, como com todas as métricas, é pouco relevante, já que qualquer métrica é mero indicador e não uma variável que determina o futuro ou a pessoa.

Robson vai buscar vários casos para desmontar o poder do IQ, dando como referências pessoas que se perderam completamente na vida, que não chegaram a lado algum, apesar de apresentarem valores absurdamente altos de IQ. Contudo a minha questão é antes, como é que se pode pensar que um simples teste feito em criança ou adolescência pode determinar a vida de alguém, sabendo que as variáveis que nos condicionam vão muito para além da nossa capacidade de raciocínio? É no mínimo ingénuo.

No meio disto, Robson vai buscar os estereótipos dos cientistas incapazes de lidar com as necessidades sociais do dia-a-dia, para não apenas demonstrar como um simples teste de raciocínio é insuficiente para dar conta das necessidades da vida no mundo real, mas mais do que isso, para demonstrar que um alto IQ pode antes, pelo contrário, ser um problema na resolução de problemas. Sendo verdade, que o IQ não afere tantas outras necessidades da vida do quotidiano, nenhum teste, seja qual for, vai algum dia aferir tal, já que somos agentes de uma realidade em constante mutação. Esta ideia de que poderemos encontrar um indicador que nos pode dizer que esta ou aquela criança será um génio no futuro é digna de alquimistas, não cientistas.

Robson percebe as limitações do IQ, e por isso apresenta um conjunto de teorizações, relevantes e que tornam a leitura do livro per se mais interessante, ainda que nada apresente de novo. Dá conta, da já gasta teoria do EQ (Coeficiente Emocional) do Daniel Goleman; da teoria muito em voga do Grit (resilência) de Angela Duckworth (ver o efeito na avaliação académica por Paul Tough); e por fim acaba a fixar-se naquilo que tem sido o cerne dos livros populares sobre cognição, os vieses cognitivos de Tversky and Kahnemann. 

Daqui parte para a apresentação daquilo que vem sendo apresentado como bala mágica para todos os problemas cognitivos, ‘evidence-based wisdom’ (EBW), mas que do meu ponto de vista, vai pouco além daquilo que Kahnemann apresentou como teoria de processo duplo (rápido e lento, ao que Robson adiciona um conjunto de ideias repescadas da história da ciência, desde Sócrates até aos dias de hoje. A ponto de eu começar a suspeitar que o livro não é um ataque ao IQ, mas antes a sua defesa, no sentido em que tudo para Robson se resume à mente analítica, tudo o resto, nomeadamente a emoção, apesar de citar Damásio, é secundário. (Nota: enquanto lia o livro, vi a TED de Liv Boeree, “3 lessons on decision-making from a poker champion”, como especialista em poker, não em cognição, parece dizer o mesmo que Robson, como se continuássemos a andar em círculos no conhecimento sobre a cognição).

Diga-se que este desvio no texto, surge a partir de algo que vejo como uma contaminação do pensamento de Robson por parte das teorias sobre a emoção de Lisa Feldman-Barrett que defendem a emoção como algo meramente cultural, algo que podemos aprender a ignorar, porque não faz parte daquilo que somos. É interessante como Feldman-Barrett tem sido refutada por boa parte dos grandes cientistas da emoção, no entanto tem conseguido fazer toda a sua carreira com esta abordagem, cientificamente contra-corrente, mas imensamente popular.

Por outro lado, e mais uma vez, impressiona como alguém vai buscar uma teorização sobre os diferentes perfis de personalidade e cognitivos, no caso a “Triarchic Theory of Intelligence” de Robert Sternberg, que dá conta da existência de três perfis na abordagem à inteligência humana “analytical, creative and practical”, em linha com o modelo do design de Engagement — "abstracters, tinkerers,  and dramatists" —, para depois jogar pela janela fora. Serve de ilustração, mas na verdade depois disso, segue-se como se todos os tipos de abordagens humanas à realidade fossem idênticas, ou pudessem ser medidas da mesma forma.

O livro não deixa de ter o seu valor, e de dizer muitas coisas acertadas, desde logo chamar a atenção para a necessidade da humildade científica, algo vital, mas que por vezes se esquece, tal como compreender que ser-se doutorado em algo, não dá o privilégio nem a capacidade para emitir opiniões sobre algo fora da sua área científica. Mas na verdade, quando falamos de algo, são os especialistas na área que devemos ouvir, e neste caso, ler a resenha do livro feita por Valerie Thompson para a Science permite-nos ir além na compreensão do que sabemos hoje realmente sobre IQ e processos de decisão:

“Anecdotes abound of individuals with a high IQ who have made substantial blunders, and Robson presents many captivating examples. But in terms of where the field stands, scientists are currently grappling with the question of whether IQ and decision-making can even be disentangled—rather than whether they are in opposition.” Thompson in Science, August, 2019

Como nota final, é um livro de divulgação científica, de leitura rápida e fluída, que apesar de alguns problemas abre caminhos para muitas abordagens distintas e permite rapidamente ficar a conhecer o que está em jogo na área, a partir do que qualquer um pode então iniciar o aprofundamento das questões.