outubro 08, 2020

Mantel e a criação de conhecimento pelo drama (Thomas Cromwell vol. 3, 2020)

A leitura deste terceiro volume — "O Espelho e a Luz" (2020) — foi um prazer imenso, tendo sentido a presença de Hilary Mantel sempre ali, no pé de cada página, como que construindo e abrindo caminho para o nosso deleite, com um texto dotado de imponente e virtuosa forma escrita, assim como de enorme detalhe histórico, garantindo a completa ressurreição de um passado esquecido. São três volumes, mas é um livro único, de 2000 páginas, que nos faz atravessar a vida de alguém que viveu como comum mortal no século XVI, conseguindo subir a pulso até ao topo do seu mundo, para terminar de forma brutal. A escrita, altamente elaborada, emana em si uma paixão enorme da autora por Thomas Cromwell, mas acima de tudo pelo trabalho que faz, corroborado pelas entrevistas que foi dando em que se percebe que viveu e respirou a obra durante todos estes anos. Termino a leitura da trilogia com grande admiração pela criadora, nomeadamente pelo engenho na construção criativa a partir de história deixada em meros relatos descritivos, esparsos e dispersos, assim como pelo investimento de 15 anos da sua vida na criação deste legado.

"Thomas Cromwell" (1534) por Hans Holbein e "Hilary Mantel" (2015) por Louise Weir

Em 2017 Mantel foi convidada pela BBC para criar um conjunto de lições, para as conceituadas Reith Lectures. O título escolhido por ela foi: "Resurrection: The Art And Craft", o que serve na perfeição para enquadrar o seu trabalho. Ao longo dessas cinco aulas, assim como das várias entrevistas, percebe-se que o objetivo de Mantel não é apenas escrever sobre um caso histórico, nem criar uma novela. Mantel objetiva mais alto, dizendo-se uma historiadora frustrada, acabou por tentar sê-lo na literatura, e de certa forma podemos dizer que o consegue. Esta trilogia, por ser novelizada, não pode ser vista como ato de historiar, no seu sentido académico, mas o trabalho e o resultado é de tal forma minucioso e colado à documentação histórica, que não se pode simplesmente ignorar. Isto é evidente na sua resposta à possibilidade de alterar factos históricos para intensificar o drama:

"I would never do that. I aim to make the fiction flexible so that it bends itself around the facts as we have them. Otherwise I don’t see the point. Nobody seems to understand that. Nobody seems to share my approach to historical fiction. I suppose if I have a maxim, it is that there isn’t any necessary conflict between good history and good drama. I know that history is not shapely, and I know the truth is often inconvenient and incoherent. It contains all sorts of superfluities. You could cut a much better shape if you were God, but as it is, I think the whole fascination and the skill is in working with those incoherencies." Mantel em entrevista na Paris Review, n. 212, Abril 2015

Por isso não admira a reação da academia britânica, nos anos recentes, com todo um revivalismo de livros e trabalhos à volta da pessoa de Thomas Cromwell, o que quer dizer que ela tocou em pontos chave do conhecimento histórico. No caso de Mantel, a historicidade serve apenas a verosimilhança, ela não está preocupada em ensinar como se passaram as coisas, ou definir com o máximo de certeza os elementos. Ela utiliza o conhecimento existente para de certo modo conseguir entrar pela história adentro e recuperar o sentir humano de quem viveu nesses tempos. A tal ideia de trazer de novo à vida as pessoas de um mundo anterior e dar-lhes voz. Mantel vê-se um pouco como uma "medium", um canal de ligação entre o passado, os seus fantasmas, e o mundo atual. 

"The contradictions and the awkwardness—that’s what gives historical fiction its value. Finding a shape, rather than imposing a shape. And ­allowing the reader to live with the ambiguities. Thomas Cromwell is the character with whom that’s most essential. He’s almost a case study in ­ambiguity. There’s the Cromwell in popular history and the one in academic history, and they don’t make any contact really. What I have managed to do is bring the two camps together, so now there’s a new crop of Cromwell biographies, and they will range from the popular to the very authoritative and academic." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

No fundo, podemos ver esta sua abordagem como um modo distinto de fazer História, por via da dramatização. Tal como na psicologia se usa o drama e o jogo de papéis para levar as pessoas a compreenderem-se melhor a si mesmas, julgo que a História pode usar da dramatização para conseguir chegar mais perto de quem fez o que é relatado nos registos. Porque os registos são na sua maioria listas, descrições, datas, quantidades, elementos soltos e dispersos. Claro que isso não é algo simples de fazer. Repare-se como ela descreve o processo:

"I was a bit surprised by my own process sometimes, because when you’re reading the historical record, I think you’re always looking for history in its purest form. You’re looking for inventories and lists, particularly lists of people’s possessions, and pages of account books, and the prices of things, because there’s no agenda behind those, so you can trust them in a sense.

And I suppose what surprised me quite early in the book was how those would come to life for me. What seems like just an item on a list, or the price of something in a column of figures, would spark off a whole train of thought." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

A académica, Mary Robertson, especialista em Thomas Cromwell, e a quem a trilogia é dedicada por Mantel, refere a sua admiração por esta forma concreta de ir além na produção de conhecimento:

“In some ways it takes a greater skill to work with everything that is known—and from that add your imagination to craft a convincing story—than it does just to make it up.” Mary Robertson no The Huntington, October 2012

Algo que não deixa de ser secundado pelo crítico do NYT, James Wood:

"If you want to know what novelistic intelligence is, you might compare a page or two of Hilary Mantel’s work with worthy historical fiction by contemporary writers such as Peter Ackroyd or Susan Sontag. They are intelligent, but they are not novelistically intelligent. They copy the motions but rarely inhabit the movement of vitality. Mantel knows what to select, how to make her scenes vivid, how to kindle her characters. She seems almost incapable of abstraction or fraudulence; she instinctively grabs for the reachably real." James Wood na New Yorker, Abril 2012

Eu sinto isto na leitura, mas sinto isto ainda mais nas várias entrevistas que fui lendo e vendo dela, no modo como o seu pensamento é ágil, rápido e incisivo. Numa entrevista, deste mesmo ano, pelo espanhol ABC podemos ler Mantel comparando o mundo de há 500 anos com o atual — reis e políticos, a peste e o COVID — e perceber como conhece bem o funcionamento das entrelinhas que regulam o poder e as sociedades. Num ponto, aprofunda a importância do romance histórico de forma muito arguta:

"Se abre una brecha entre lo que sabemos ahora y lo que los personajes sabían en su época. El historiador emplea la mirada retrospectiva, es la herramienta fundamental de su oficio, pero esa mirada puede hacer que sintamos, erróneamente, que somos mucho más listos que las personas que vivieron antes que nosotros. La novela histórica estimula la empatía, el ejercicio crucial de ponernos en el lugar de otro. Nos permite pensar sobre la responsabilidad individual, sobre cómo controlamos nuestra vida (o lo intentamos), sobre la causa y el efecto, sobre el destino, si es que existe tal cosa, y sobre qué consecuencias imprevistas pueden derivarse de nuestras acciones con el tiempo. Puede ser superficial o producir la ficción más profunda sin esfuerzo aparente." Mantel em entrevista ao ABC, Setembro 2020 

Ao terminar o livro, tive de respirar fundo, o adeus a Cromwell é de tal forma intenso e vivido, impossível de realizar por qualquer outro meio que não a literatura, que nos deixa ali estacados. Sim, o livro trata de política, do modo como o poder é manipulado pela retórica e pelo controlo sub-reptício dos atores envolvidos, mas o livro vai bastante além disso, dá-nos a sentir o modo como a vida humana trespassa tudo, como todos os nossos orgãos estão envolvidos. Não é mera cognição, na maior parte do tempo não se discute sequer o quê e o como concretos, mas apenas os sentires, os respirares. Daí que Mantel introduza imenso detalhe sobre roupa e têxteis, sobre cozinha e gastronomia, sobre o tempo e temperatura, sobre a decoração e as telas que se vão pintando. Mantel cria um mundo completo, e coloca os personagens dentro dele a "brincar", o que se passa além disso requer conhecimento histórico prévio nosso, ou pesquisa durante a leitura, mas nem sequer é vital. O foco não é saber quem era o Papa, ou o Imperador, ou Rei de França, mas é a vida tal como vivida naquele círculo restrito de personagens. Como alguns referiram, esta trilogia funciona como uma viagem ao passado, em que nos é dado a ver uma parte do que se passou, ou um espelho para esse passado como diz Mantel:

"But I’m interested in a way that as you go through your life, your memories change. It’s quite wrong to say that the past doesn’t change. It changes behind you, and every time you try to remember back, in a sense, you’re making a fresh version. What you’re doing is you’re holding up a mirror, and really, that’s why the book is called The Mirror and the Light, because it’s a mirror to the books that have gone before and it has fresh light." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

E talvez funcione tão bem porque Mantel manteve-se fiel a Cromwell toda a trilogia. O livro poderia ser uma grandiosa história recontada, com detalhes e perspetivas de múltiplas personagens, algo comum e que serve para nos oferecer uma análise menos enviesada, porque podemos comparar as diferentes perspetivas. Mantel não teve pudor em fixar-se detrás do olhar de um único personagem, e um personagem que os registos históricos tendem a mostrar como maquiavélico, logo muito pouco credível. Daí que tudo o que vamos vendo parece embater contra o que sabemos daqueles tempos, porque aquilo que estamos ali a viver (reviver) é pelos olhos de Cromwell. Ele pode ter sido o maior filho-da-mãe da história inglesa, mas na sua cabeça ele era um visionário e o maior benfeitor de sempre, e é com o isso que Mantel nos obriga a debater. Aliás, no primeiro livro deixei-me de tal forma seduzir que acreditei em tudo o que ele dizia, no segundo e terceiro livro, já ciente do que tinha na minha frente, comecei então a debater-me com o personagem, e tudo se torna ainda mais instigante. O que ele pensa, como os outros reagem a ele, de que o vão acusando, e como conseguimos nós interpretar tudo isso. Porque repare-se que nenhuma vez o narrador/autor, muito pouco presente, sai em defesa de Cromwell ou de qualquer outro, o trabalho aparece como se estivéssemos a assistir àquela realidade, mas pelos olhos dele, cabendo-nos identificar o que pode ser mais real ou menos real.

Diga-se que esta forma de contar histórias, apesar de estarmos diante de prosa, parece-se muito mais com o drama. Existe uma quase ausência de reflexão ou discussão por parte do narrador/autor e mesmo do próprio personagem através de quem vemos a realidade. Nós estamos dentro da cabeça de Cromwell, mas não vemos o mundo através dos seus pensamentos e reflexões, apenas o vemos através dos seus olhos. Ou seja, Mantel, ao contrário de Pessoa que nos atira para dentro do emaranhado de pensamentos de Bernardo Soares, coloca-nos imediatamente por detrás dos seus olhos. A narração descreve continuamente o momento presente, o que está a ser feito, a quem como e porquê. Vemos a ação a decorrer, como se Mantel estivesse a encenar o passado, e não a discorrer sobre ele. Mas nem por isso, ou talvez por isso, a escrita não deixa de ser altamente elaborada, e por conseguinte a leitura laboriosa no descortinar do que está a acontecer em cada momento. 

De certa forma, esta abordagem enviesada por um olhar e pelo modo presente contribuiu para a definição do estilo de Mantel e para criação de um engajamento continuo dos leitores, como ela explica:

"the writer knows the outcome, so does the reader - but the characters don’t. You have to persuade your readers to be in 2 places at once. They can’t suspend their knowledge of what happened – they’re above the characters, looking down on them. But at the same time, if you’ve done your job, they’re moving forward with the characters, inhabiting their world. The suspense grows in the gap; the reader wants to know not so much what happens, as how the characters will react when it happens. The reader has to hold his or her own knowledge in suspension – hold reaction back. That’s what creates tension. You see them rushing towards their fate – you know, you fear for them, but you can’t stop them." Mantel entrevistada pelo Iowa Review, Junho 2017

É por isso que apesar da história de Inglaterra me dizer pouco ou nada, menos ainda um tempo dessa que se tornou popular por intrigas do foro privado da vida de reis e rainhas, li até ao final e com tanto prazer. Não me interessava em particular saber mais sobre Henry VIII, Anne Boleyn, Anne de Cleves ou Thomas Cromwell, mas o mundo recriado por Mantel, de tão vívido, gerou uma impressão continua tão forte que o meu engajamento nunca se desligou. Aliás repare-se como é a própria autora a dizer isto sobre o tema histórico em questão:

"When I began work on the French Revolution, it seemed to me the most interesting thing that had ever happened in the history of the world, and it still does in many ways. I had no idea how little the British public knew or cared or wished to know about the French Revolution. And that’s still the case. They want to know about Henry VIII (...) the imagination is parochial. I couldn’t have picked anything less promising, from a commercial point of view, than the French Revolution." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

outubro 01, 2020

"Metro Exodus" (2019)

"Metro 2033" (2010) foi uma enorme surpresa, "Metro: Last Light" (2013) elevou a qualidade em todas as dimensões, nomeadamente direção de arte e narrativa, tornando difícil qualquer nova sequela e por isso acaba a não surpreender a sensação de mera incrementação de "Metro Exodus" (2019) que se limita a adicionar enxertos de mundo-aberto. A partir do meio da jornada já só o fechar da última página parece manter-nos a jogar, mas continuar até ao final leva-nos à redenção da experiência, do jogo como um todo, em impacto e prazer estético de uma forma quase memorável.

setembro 25, 2020

Do poder, autoridade e responsabilidade

"O Consentimento" ("Le Consentement") (2020) é um livro de memórias que teve o impacto de uma bomba na sociedade francesa aquando do seu lançamento em janeiro de 2020, e que sai na próxima semana em Portugal. O livro de Vanessa Springora, editora literária francesa com 47 anos, dá conta de uma fase na sua vida, no início dos anos 1980, em que se viu envolvida sexualmente com o escritor francês, Gabriel Matzneff, reconhecido em França mas praticamente desconhecido no exterior, na altura ela com 14 anos, ele com 50. Matzneff não era apenas reconhecido como escritor, em surdina dizia-se também que era pedófilo, o que nunca impossibilitou a continuada publicação da sua obra pelas maiores editoras francesas, a receção de prémios de carreira e até subvenções estatais. Foi preciso esperar mais de 30 anos e por um livro de memórias para a sociedade francesa acordar.

O livro de Springora está muito bem escrito, é curto, não se perde em detalhes, vai direto ao assunto após uma breve contextualização familiar. Nota-se uma enorme atenção ao modo como tudo é dito, tanto na identificação de pessoas, como de lugares e instituições. Springora é uma editora, sabe o que faz, e aquilo que não se deve fazer. Não existem descrições gráficas, que seriam expectáveis num livro que é quase como um grito de revolta contra o seu país, tanto para exposição de raiva, como de vingança, assim como pela tentativa de trazer para junto de si as pessoas por via da tragédia. Mas ela não deixa de nos agarrar, pelo caminho contrário, expondo o seu sentir, antes, durante e depois. Questionando quem devia ter agido durante e desde então.

Springora escreve com enorme sabedoria, com enorme sensibilidade, vai ao fundo da questão que não é o pedófilo em concreto, mas o efeito do pedófilo sobre a criança que se é quando se tem 14 anos. O título fala de consentimento, mas que consentimento pode dar quem não tem direito a conduzir um carro ou a votar? E como pode a sociedade menosprezar e atacar quem por lá passou, sem se dignar a tudo fazer para defender estas pessoas e ajudá-las a sair do buraco para onde foram atiradas?

Não me apetece falar da história do escritor, a quem nada reconheço, nem sequer conhecia o seu nome antes de ler este livro. Dos 50 livros que terá escrito, só um surge amiúde referido quando se fala de si, "Les moins de seize ans" ("Os menores de 16 anos") de 1974. Um livro em que defende, de forma lasciva e atroz, o direito ao "amor" por crianças, rapazes e raparigas, mas que lhe serviria para defender, literariamente, aquilo que fazia na vida real, f@der jovens dos 8 aos 14 anos, em França e nas Filipinas. 

Aquilo de que tenho mesmo de falar, e que foi o que me levou a ler este livro, é a razão pela qual a sociedade francesa permitiu a um personagem desta envergadura reinar — escrever crónicas em grandes jornais, ser entrevistado pelas televisões, ganhar prémios nacionais — sem nunca ser questionado. É preciso regressar a Maio de 1968, para perceber como este dissimulado conseguiu tamanho feito. Num tempo em que era "Proibido Proibir" ele soube envolver-se na luta pela libertação sexual para defender o seu fetiche, e com isso levar nomes de peso atrás. Confesso que fiquei incomodado ao descobrir, neste livro, que manifestos de Matzneff, em defesa da despenalização das relações sexuais entre menores e adultos, lançados no final dos anos 1970, receberam o apoio de alguns dos monstros sagrados da elite francesa — Roland Barthes, Gilles Deleuze, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, Jacques Derrida. Salva-se o facto de saber que entre os poucos que recusaram assinar estiveram Marguerite Duras e Michel Foucault. A influência de toda esta elite faria com que o personagem conseguisse chegar aos favores de poderosos, na política François Miterrand, no dinheiro, o riquíssimo Yves Saint Laurent. 

Repare-se que isto não são histórias de 1700, ou 1850, nem sequer 1950. Estamos a falar dos anos 1980. E Springora não foi a única, como se sabe mais no final do livro, existiu também uma Nathalie, e sabe-se agora por via do NYT, que existiu antes de Springora, Francesca Gee, para não falar das crianças em Manilla. Quantas mais existirão? A polícia francesa abriu um inquérito para apurar sobre mais vítimas. 

"Vanessa Springora Acreditamos em Ti"

O personagem tem agora 83 anos, tinha doado todos os seus manuscritos à biblioteca nacional francesa para serem preservados "para a eternidade". Nesses incluiam-se cartas escritas pelas mãos das meninas que violou, histórias pessoais e fotografias deslas que usou para escrever vários dos seus pseudo-livros. Temos de agradecer a Springora a coragem para obrigar toda a sociedade francesa a tirar a cabeça da areia, e a rever todo mal feito, porque como ela diz:

A longo de anos circulei dentro da minha própria jaula, cheia de sonhos de assassinato e vingança. Até ao dia em que a solução finalmente se apresentou, ali, na frente dos meus olhos, tão óbvia: agarrar o caçador na sua própria armadilha, prendê-lo num livro.


Mais info:

Dossier Le Figaro, 2020 

A Pedophile Writer is on Trial, NYT, 02.2020

Quand des intellectuels français défendaient la pédophilie, France Culture, 01.2020

Long-Silenced Victim of a Pedophile Writer Gets to Tell Her Story, NYT, 03.2020

Affaire Matzneff : son livre “Les moins de seize ans” retiré de la vente, la police s’en mêle, Telerama, 01, 2020

French publishing boss claims she was groomed at age 14 by acclaimed author, The Guardian, 27.12.2020

33 anos depois, Vanessa acusa escritor famoso de pedofilia, Sábado, 01.2020

setembro 21, 2020

Da Ficção Científica à Filosofia

“Stories of Your Life and Others” (2002) é um livro de contos dotados de boas estruturas narrativas, bom conhecimento científico e, acima de tudo, apurada crítica social. As ideias centram-se no domínio da ficção científica, com alguma fantasia à mistura, seguindo de perto alguns modelos especulativos reconhecidos, tais como “Black Mirror” ou “Twilight Zone”. Ou seja, aquilo que aqui importa não é a escrita, nem sequer a história, mas apenas as ideias. Podemos dizer que estas abordagens da ficção especulativa, que usam metáforas do dia-a-dia para elaborar abstrações críticas, muito suportadas em ciência, acabam evadindo-se da FC para a Filosofia. No fundo, o que preocupa o escritor e os leitores, é a discussão da ideia, a sua plausibilidade, aceitabilidade, exequibilidade, e por fim significado.

Este foi o primeiro livro de contos de Chiang, mas as histórias foram todas (exceto Liking What You See) publicadas previamente entre 1990 e 2001, em coletâneas com outros autores, revistas como a Asimov's Science Fiction, e uma delas — The Evolution of Human Science — foi mesmo publicada na Nature, a revista mãe das revistas científicas. Muitas destas histórias arrecadaram os Oscars e Emmys da ficção científica, ou seja o Hugo e o Nebula na categoria de contos, levando Chiang a conquistar mais de 10 prémios, desde 1991.

Arrival é uma adaptação do conto Story of Your Life 

Das 8 histórias a mais conhecida hoje é sem dúvida Story of Your Life (1998) por ter sido adaptada ao cinema por Denis Villeneuve com Arrival em 2016. Para quem tiver visto o filme, as ideias que ali se discutem, a sua importância e impacto nas sociedades humanas, serve bem de ilustração do trabalho de Chiang. Naturalmente, e como acontece em todos os livros de contos, não sentimos que todos valem o mesmo, nem que todos valem sequer a pena, por isso deixo-os listados por número de estrelas que atribuí a cada um.


5 *****

Tower of Babylon (1990)

Understand (1991)

Story of Your Life (1998)

4 ****

The Evolution of Human Science (2000)

Liking What You See: A Documentary (2002)

3 ***

Division by Zero (1991)

Seventy-Two Letters (2000)

Hell Is the Absence of God (2001)


setembro 20, 2020

Envelhecer e morrer

“Ser Mortal” (2014) de Atul Gawande é um livro sobre a experiência de morrer, ou de viver para morrer. Discute o processo como chegamos, fisiológica e psicologicamente, ao fim e avança com dezenas de casos e estudos sobre os diferentes modos de partir, e especialmente sobre o modo como nós, enquanto sociedade ocidental, temos vindo a tratar essa partida. Dá conta dos problemas criados pelas ilusões da medicina e dos hospitais assim como das angústias da morte, focando-se especialmente na área que se veio a definir como “cuidados paliativos”, que tem como missão exatamente evitar os problemas e as angústias da chegada ao fim. O livro está escrito num tom próximo e extremamente empático, abrindo-nos a território normalmente colocado à margem da discussão diária, mas inevitável para todos nós. Nem sempre concordando com Gawande, considero que o livro faz um excelente trabalho na discussão do tema, oferecendo matéria e espaço ao leitor para elevar a consciência de si.

setembro 19, 2020

Orgulho e moral

"A Hidden Life" (2019) de Terrence Malick provoca e coloca-nos no lugar do outro. Apresenta um personagem, baseado numa pessoa real, que abdicou de tudo, de si e da sua família, pela não submissão ao regime nazi, sendo condenado à morte. O filme rasga-nos em dois, por um lado a consternação com a teimosia e orgulho capaz de levar alguém a desistir de si, da mulher e três filhas, por outro, a necessidade de defender aqueles que ousaram defender a moral... como diz um personagem a meio do filme: "Don't they know evil when they see it?

Em termos estéticos, o filme é um festim sensorial capaz de nos fazer imergir ao longo de 3 horas. Deixo algumas imagens e a ligação para a belíssima banda sonora.













setembro 13, 2020

O Verdadeiro Criador de Tudo (2020)

Miguel Nicolelis (1961) é um médico formado pela universidade de São Paulo e professor de neurobiologia na Universidade de Duke, EUA. A sua carreira tem sido recheada de prémios, reconhecimentos e louvores. Tornou-se popular com o projeto "Andar de Novo”, criado para a abertura do Mundial de Futebol 2014 (Brasil), que por meio de um exosqueleto, interfaces cerebrais e inteligência artificial permitiu a um paraplégico andar, chutar e marcar um golo. O projeto fez correr muita tinta, dentro e fora da academia, mas o principal resultado está neste seu livro "The True Creator Of Everything. How The Human Brain Shaped The Universe As We Know It" (2020), sob a forma de uma grande teoria sobre a realidade e o cérebro. 
Nicolelis abre o livro com a discussão do “Projeto Andar de Novo” focando-se sobre algo que parece um detalhe, mas que se torna central na discussão subsequente. No momento em que Juliano Pinto chuta a bola e marca golo, ele não grita “golo”, mas grita “I felt the ball! I felt the ball!”. O projeto pretendia criar um sistema de apoio artificial à locomoção da pessoa, que por ser tetraplégica deixou de controlar as suas pernas porque simplesmente não as sentia. Com este projeto, e com a tentativa de por meio de interfaces cerebrais colocar o cérebro a mexer as pernas por via de motores, o cérebro do paciente parece ter ido além, tendo conseguido realocar as sensações das pernas por via do sistema providenciado (ver imagem abaixo). 

Os exemplos disto são muitos, Nicolelis numa entrevista explica como o podemos fazer nós mesmos:
“coloque uma venda em uma pessoa normal como eu e você, e deixe passar  10, 15 minutos. Depois pegue um aparelho de ressonância magnética e peça a pessoa vendada para fazer uma tarefa tátil com as pontas dos seus dedos. [Com esse experimento] vamos detetar respostas táteis no seu córtex visual já. Isso sugere que existe uma conectividade entre o sistema sinestésico e o sistema visual (...) A gente encontra esse crosstalk de funções cerebrais por todo o lugar do córtex.”
O autor parte depois para uma discussão sobre a criação e seleção natural do nosso cérebro que teve impactos não apenas na morfologia mas no seu funcionamento em concreto, a partir do que vai iniciar a apresentação da sua proposta com o novo conceito de “informação godeliana”. Este tipo de informação, segundo Nicolelis, aproxima-se da informação digital, segundo descrita por Claude Shannon, com a diferença de ser analógica, mas mais do que isso, dada a sua imbricação natural com os tecidos, não formalizável, seguindo Godel. Mas é exatamente por possuirmos esse sistema de informação, que podemos reutilizar o cérebro de inúmeras formas diferentes. Ou seja, não existem área específicas para executarem funções no cérebro, elas podem ser realocadas, migradas, transformadas, em função da informação que recebem, abrindo espaço à “Teoria do Cérebro Relativístico”.

Com esta ideia estabelecida Nicolelis parte para discussão do cérebro enquanto criador da realidade que conhecemos. Imbuído do sistema de “informação godeliana” que permite construir a realidade nas nossas mentes de uma forma determinada, dá conta da impossibilidade desta informação ser replicada informaticamente e do modo como diferiria de uma qualquer espécie que tivesse surgido noutro qualquer planeta. O relevante desta proposta é que sustenta ideias discutidas pela filosofia desde a Alegoria da Caverna de Platão, para o que Nicolelis se suporta em Godel e contrapõe a ideia de que a matemática ou física sejam capazes de explicar algo além daquilo que o nosso cérebro possa compreender. 

Para o efeito transcreve um diálogo delicioso entre Albert Einstein e o Nobel da literatura, Rabindranath Tagore, ocorrido em Berlim a 14 julho 1930, que passo a transcrever:
Einstein: There are two different conceptions about the nature of the universe: (1) The World as a unity dependent on humanity. (2) The world as a reality independent of the human factor. 

Tagore: When our universe is in harmony with Man. The eternal, we know it as Truth, we feel it as beauty. 

Einstein: This is the purely human conception of the universe. 

Tagore: There can be no other conception. This world is a human world—the scientific view of it is also that of the scientific man. There is some standard of reason and enjoyment which gives it Truth, the stan- dard of the Eternal Man whose experiences are through our experiences. 

Einstein: This is a realization of the human entity. 

Tagore: Yes, one eternal entity. We have to realize it through our emotions and activities. We realized the Supreme Man who has no individual limitations through our limitations. Science is concerned with that which is not confined to individuals; it is the impersonal human world of Truths. Religion realizes these Truths and links them up with our deeper needs; our individual consciousness of Truth gains universal significance. Religion applies values to Truth, and we know this Truth as good through our own harmony with it. 

Einstein: Truth, then, or Beauty is not independent of Man?

Tagore: No.

Einstein: If there would be no human beings any more, the Apollo of 
Belvedere would no longer be beautiful.

Tagore: No.

Einstein: I agree with regard to this conception of beauty, but not with regard to Truth.

Tagore: Why not? Truth is realized through man.

Einstein: I cannot prove that my conception is right, but that is my religion.

Tagore: Beauty is in the ideal of perfect harmony which is in the  Universal Being; Truth the perfect comprehension of the Universal Mind. We individuals approach it through our own mistakes and blunders, through our accumulated experiences, through our illuminated consciousness—how, otherwise, can we know Truth? 

Einstein: I cannot prove scientifically that Truth must be conceived as a Truth that is valid independent of humanity; but I believe it firmly. I believe, for instance, that the Pythagorean Theorem in geometry states it is something that is approximately true, independently of the existence of man. Anyway, if there is a reality independent of man, there is also a Truth relative to this reality; and in the same way the negation of the first engenders a negation of the existence of the latter. 

Tagore: Truth, which is one with the Universal Being must essentially be human, otherwise whatever we individuals realize as true can never be called truth—at the least the Truth which is described as scientific and which can only be reached through the process of logic, in other words, by an organ of thoughts [the brain] which is human. According to Indian Philosophy there is Brahman, the absolute Truth, which can- not be conceived by the isolation of the individual mind or described by word but can only be realized by completely merging the individual in its infinity. But such a Truth cannot belong to Science. The nature of Truth which we are discussing is an appearance—that is to say, what appears to be true to the human mind and therefore is human, and may be called maya or illusion. 

Einstein: So according to your conception, which may be the Indian conception, it is not the illusion of the individual, but of humanity as a whole. 

Tagore: The species also belongs to a unity, to humanity. Therefore the entire human mind realizes Truth; the Indian or the European mind meet in a common realization. 

Einstein: The word species is used in German for all human beings, as a matter of fact, even the apes and the frogs would belong to it. 

Tagore: In science we go through the discipline of eliminating the personal limitations of our individual minds and thus reach that com- prehension of truth which is the mind of the Universal Man. 

Einstein: The problem begins whether Truth is independent of our consciousness. 

Tagore: What we call truth lies in the rational harmony between the subjective and objective aspects of reality, both of which belong to the super-personal man. 

Einstein: Even in our everyday life we feel compelled to ascribe a reality independent of man to the objects we use. We do this to connect the experiences of our senses in a reasonable way. For instance, if nobody is in this house, yet the table remains where it is. 

Tagore: Yes, it remains outside the individual mind, but not the universal mind. The table which I perceive is perceptible by the same kind of consciousness which I possess. 

Einstein: If nobody would be in the house the table would exist all the same—but this is already illegitimate from your point of view—because we cannot explain what it means that the table is there, independent of us. Our natural point of view in regard to the existence of truth apart from humanity cannot be explained or proved, but it is a belief which nobody can lack—no primate beings even. We attribute to truth a super- human objectivity; it is indispensable for us, this reality which is independent of our existence and our experience and our mind—though we cannot say what it means. 

Tagore: Science has proved that the table as a solid object is an appearance and therefore that which the human mind perceives as a table would not exist if that mind were naught. At the same time it must be admitted that the fact, that the ultimate physical reality is nothing but a multitude of separate revolving centers of electric force, also belongs to the human mind. In the apprehension of Truth there is an eternal conflict between the universal mind and the same mind confined in the individual. The perpetual process of reconciliation is being carried out in our science, philosophy, in our ethics. In any case, if there be any Truth absolutely unrelated to humanity then for us it is absolutely non-existing. It is not difficult to imagine a mind to which the sequence of things happens not in space but only time like the sequence of notes in music. For such a mind such a conception of reality is akin to the musical reality in which Pythagorean geometry can have no meaning. There is the reality of paper, infinitely different from the reality of literature. For the kind of mind possessed by the moth which eats that paper literature is absolutely non-existent, yet for Man’s mind literature has a greater value of Truth than the paper itself. In a similar manner if there be some Truth which has no sensuous or rational relation to the human mind, it will ever remain as nothing so long as we remain human beings. 

Einstein: Then I am more religious than you are! 

Tagore: My religion is the reconciliation of the Super-personal Man, the universal human spirit, in my own individual being. 


** In a second meeting, on August 19, 1930, the extraordinary dialogue continued. **


Tagore: I was discussing... today the new mathematical discoveries, which tell us that in the realm of the infinitesimal atoms chance has its play; the drama of existence is not absolutely predestined in character. 

Einstein: The facts that make science tend towards this view do not say goodbye to causality. 

Tagore: Maybe not; but it appears that the idea of causality is not in the elements, that some other force builds up with them an organized universe. 

Einstein: One tries to understand how the order is on the higher plane. The order is there, where the big elements combine and guide existence; but in the minute elements this order is not perceptible. 

Tagore: This duality is in the depths of existence—the contradiction of free impulse and directive will which works upon it and evolves an orderly scheme of things. 

Einstein: Modern physics would not say they are contradictory. Clouds look one [way] from a distance, but if you see them near, they show themselves in disorderly drops of water. 

Tagore: I find a parallel in human psychology. Our passions and de- sires are unruly, but our character subdues these elements into a harmonious whole. Are the elements rebellious, dynamic with individual impulse? And is there a principle in the physical world which dominates them and puts them into an orderly organization? 

Einstein: Even the elements are not without statistical order: ele- ments of radium will always maintain their specific order now and ever onwards, just as they have done all along. There is, then, a statistical order in the elements. 

Tagore: Otherwise the drama of existence would be too desultory. It is the constant harmony of chance and determination, which makes it eternally new and living. 

Einstein: I believe that whatever we do or live for has its causality; it is good, however that we cannot look through it. 


O mais paradoxal de toda a apresentação do livro, e que dá conta também de alguns dos problemas do trabalho do autor e nomeadamente do relacionamento com outros cientistas, surge nas previsões relativamente catastróficas que faz para o futuro do humano, nomeadamente a partir da ligeireza com que discorre sobre os efeitos dos media, dos computadores e nomeadamente das redes sociais. 

Deste modo, quando fechei o livro fiquei a pensar: quanto do que li é tão novo como o autor nos quer dizer? Se gostei de ler, e ter contacto com as décadas de experimentos neurocientíficos de Nicolelis, também me questionei sobre quanto destas propostas não tinham já sido amplamente discutidas em profundidade pela filosofia, depois psicologia e agora pelas neurociências? O que liga Platão, Descartes e Godel se não exatamente esta ideia de que o cérebro é o criador de tudo? 

Aquilo que se pode dizer é que Nicolelis acrescenta à teorização os modos efetivos de funcionamento do nosso cérebro que suportam essa ideia. Mas que o cérebro modelo e filtra a realidade, e nos faz ver de uma forma particular, acho difícil ter hoje dúvidas disso. A questão que se coloca é antes perceber, de que é então feita a realidade externa a nós, além da simulação mental que criamos? Claro que aqui batemos contra a parede da impossibilidade de sair fora do nosso espartilho cerebral, e talvez por isso mesmo tenhamos de concluir que somos apenas aquilo que o nosso cérebro nos permite que sejamos.

setembro 12, 2020

Schopenhauer por Yalom

"A Cura de Schopenhauer" (2000) do psicanalista-romancista Irving D. Yalom é mais uma viagem de associação de ideias entre a Filosofia e a Psicologia. Depois de "Quando Nietzsche Chorou" (1992) recuou no tempo, à maior influência de Nietzsche, para nos falar de Arthur Schopenhauer. A abordagem é distinta do primeiro livro, desta vez não temos Schopenhauer em cena, antes temos alguém que o segue religiosamente e precisa de se tratar. O tratamento segue de perto as teorias de Schopenhauer, e enquanto dura Yalom aproveita para intercalar uma breve história da vida de Schopenhauer. Se o tratamento não me surpreendeu, já que as abordagens apresentadas pouco vão além do conhecimento que já tinha da obra de Schopenhauer, a sua breve história, que desconhecia, foi o que mais me impressionou. É um livro interessante e instigante, mas ligeiro, talvez menos por culpa de Yalom e mais do próprio Schopenhauer.

Há 25 anos, enquanto passava por uma depressão causada por um coração partido, li “Dores do Mundo” de Arthur Schopenhauer. O impacto foi intenso, poderoso, não posso dizer com certeza, mas acredito que me ajudou a sair do buraco, o que está em consonância com muito do que se discute neste livro. No entanto, agora ao reler muitas dessas ideias, que na altura revolucionaram a minha noção do mundo, senti-as ultrapassadas. Schopenhauer anteviu um conjunto de ideias a que a biologia e psicologia só iriam chegar 50 ou 100 anos depois, porém parece ter-se deixado enredar por elas, não tendo nunca conseguido progredir na compreensão de si mesmo ou do mundo.

De forma sucinta, Schopenhauer apresenta algumas ideias revolucionárias para o seu tempo, nomeadamente quando trabalha o amor e a paixão como atributos biológicos que nos impelem, enquanto espécie, para a reprodução. Esta ideia antecede, muitos anos, o surgimento da Teoria da Evolução Humana de Darwin, num tempo em que ainda não existia sequer a disciplina da psicologia, quanto mais psicologia evolucionária. Deste modo, Schopenhauer retira o peso do indivíduo e coloca-o sobre a humanidade. Não somos únicos, não somos nós que desejamos, é o facto de sermos humanos que nos compele a esse desejo, à "vontade de". Para Schopenhauer somos uma espécie de máquinas biológicas com instruções pré-gravadas das quais não podemos escapar. Somos continuamente levados a querer mais e mais de tudo, a desejar ter ou conseguir, para assim que se consegue o que se desejou, nos deprimirmos até que reiniciamos um novo ciclo de querer e desejo. Schopenhauer escreveu a sua obra máxima, “O Mundo como Vontade e Representação” sobre a vontade e o desejo, e passou toda a sua vida ao redor destes conceitos, o que fez afastar o meu interesse e não chegar nunca a terminar a leitura dessa sua obra maior.  Deixo um excerto da "A Cura de Schopenhauer" que trata a ideia central:

“Todos os temas principais da vida passam pela ousada análise filosófica de Schopenhauer, inclusive o desejo sexual, assunto que os filósofos anteriores evitaram. Ele iniciou a discussão com uma afirmação surpreendente sobre a força e omnipresença desse desejo.

[Schopenhauer] “Depois do amor à vida, o sexo é a maior e mais ativa força e ocupa quase todas as vontades e pensamentos da porção mais jovem da humanidade. Ele é a meta final de praticamente todos os esforços humanos. Exerce uma influência desfavorável nos assuntos mais importantes, interrompe a toda hora as ocupações mais sérias e às vezes inquieta por algum tempo as maiores mentes humanas. (...)

(...) A resposta de Arthur (...) antecipa em um século e meio muito do que iria tratar a psicologia evolucionária e a psicanálise. Ele afirma que não somos guiados pela nossa necessidade, mas pela necessidade da nossa espécie. "Embora os dois envolvidos ignorem, o verdadeiro fim de toda história de amor é gerar uma criança", continua ele. "Portanto, o que realmente dirige o homem é um instinto dirigido para o que é melhor para a espécie, embora o homem pense que procura apenas a intensificação do próprio prazer".”

O problema de Schopenhauer foi a sua resignação à descoberta desta nossa condição. Podemos saber que a nossa biologia nos orienta e predestina, mas sabemos também que a nossa psicologia nos liberta. Somos parte natureza, parte cultura, não somos só uma, nem outra, somos fruto da mistura. Julgo que Yalom acaba dando conta dessa questão ao querer aqui curar Schopenhauer, mas fá-lo de uma forma muito indireta. Gostaria de ter visto uma maior incisão na questão, contudo compreendo que Yalom não pretendia redimir Schopenhauer, nem alterar a História do filósofo. 

Como disse, na abertura do texto, a história de Schopenhauer foi algo que me impressionou, a sua origem familiar, nomeadamente a sua mãe, Johanna Schopenhauer. Pode ler-se a sua pessoa de muitas formas, mas a emancipação realizada após a morte do marido, a sua entrada em grande no mundo das letras alemãs, assumindo a sua posição de mulher, numa altura em que as mulheres não eram aceites nos círculos intelectuais, é impressionante. Aliás, fez-me pensar sobre o quanto da obstinação e lado destemido da personalidade de Schopenhauer não foi herdado da sua mãe, algo que fica patente na forma como chocaram. Por outro lado, um ponto relevante, apesar de nada de novo, é o constatar mais uma vez que a fama e o sucesso da arte nada têm que ver com o valor das obras. Johanna foi uma das mulheres mais lidas na Alemanha enquanto viveu, tendo escrito cerca de 20 livros. Porém, do que escreveu apenas um livro foi traduzido para inglês, e outro para espanhol, sendo muito difícil encontrar livros seus, com a sua obra praticamente esquecida. Já o filho, que enquanto vivo pouco ou nada vendeu, tendo vivido da pequena herança que o pai lhe deixou, tem hoje a sua obra traduzida em dezenas de línguas, continuando a ser editada, impressa e vendida por todo o mundo.

setembro 10, 2020

O problema das redes sociais

Saiu ontem o documentário "O Dilema das Redes Sociais" (2020), na Netflix, que procura dar conta de vários dos problemas que têm sido atribuídos às redes sociais: viciação, invasão de privacidade, propaganda, manipulação, fragmentação de identidade, etc. O protagonista do filme é Tristan Harris que começou por ser responsável pelo design ético da Google, tendo-se demitido para criar a fundação Center for Humane Technology. O filme é relevante, aconselhável a todos os que usam as redes sociais, dos adolescentes aos mais velhos, mas com algum espírito crítico para evitar entrar em estado de alarme.

Para quem trabalha na área nada é dito aqui de novo, mas o que é dito é importante que chegue a todos, e não apenas a quem trabalha no domínio. As pessoas que falam fizeram todas parte destas empresas — Facebook, Google, Twitter, Instagram, Snapchat,... — mas nem tudo o que dizem é tal como nos querem dar a entender, existe algum excesso, alguma falta de enquadramento principalmente de teoria dos media e análise histórica da psicologia humana. Mas no cômputo geral, o filme funciona bem no acendimento de algumas campainhas, podendo ser relevante para uma grande faixa da sociedade que passou a usar estas ferramentas sem compreender como funcionam, sem qualquer noção do que está por detrás daquelas imagens, menus e comentários que a toda a hora solicitam a nossa atenção. 

O discurso alarmista tende ao exageramento das capacidades e potencial, mas aceito-o como discurso que procura gerar uma preocupação societal. Sem essa preocupação dificilmente poderemos levar os políticos a tomar as decisões que são necessárias. Não se compreende como andamos há uma década a pedir regulamentação para estas ferramentas, e tudo continua na mesma. Na Europa criou-se o RGPD, lançaram-se algumas multas, mas pouco mais foi feito. Se temos todo um conjunto de estruturas que regulam os media tradicionais, da rádio à televisão, porque é que ainda não criámos regulação para estas redes sociais? Simplesmente porque não há pressão. 

Repare-se no que aconteceu com a Uber, a pressão dos taxistas tem obrigado os políticos a agir. No caso das redes sociais, a pressão surge apenas pelo lado de algumas das pessoas que trabalham na área, e depois quando se fala de roubo de dados ou do muito dinheiro gerado pelas companhias. Por outro lado, sabemos que não é algo simples ou fácil. A regulação das redes sociais, ao contrário dos media tradicionais, tende a chocar com as liberdades e garantias individuais, que é no fundo o mesmo problema da Uber, por isso é tão complicado legislar. Mas se pensarmos no modo como funcionam os regulamentos dos media tradicionais, esses também chocam com os mesmos direitos, a diferença é que a proibição atua de modo indireto e por isso parece menos intrusivo.

A questão dos sistemas informáticos e os algoritmos desenhados para o engajamento é em si menos relevante, porque não difere daquilo que fazemos quando criamos qualquer obra de arte, quando criamos uma peça musical, filme, livro ou uma peça de teatro, ou um espetáculo de televisão, circo ou ilusionismo. Recorrem-se às técnicas mais eficazes na captação da atenção. Claro que ter pessoas a passar dias inteiros fixados nos sistemas não é bom para qualquer pessoa, menos ainda crianças ou adolescentes, mas aí cabe aos pais atuar. Como tenho defendido no caso dos videojogos, as rede sociais devem seguir o mesmo regime, não proibir mas regrar o tempo. Um adolescente tem de ter tempo para ler, ver cinema, correr, brincar, ouvir música, pintar, etc. etc. não pode estar todo o dia no café virtual do Instagram ou na discoteca virtual do Tik Tok. Por isso o que mais desperta a minha preocupação é a relação com o discurso social, a construção de comunidade sócio-política sobre a qual as redes sociais intervêm cada vez mais.

No passado recente o discurso comunitário era construído quase em exclusivo pelos media e os políticos. As redes sociais vieram dar voz, não a todas as pessoas, mas a todas as ideias, e é aí que surge aquele que considero ser o principal problema. Quando empresas estão dispostas a promover qualquer ideia em função de ganhos financeiros. Onde fica a chamada responsabilidade social das empresas? Como é que podemos aceitar que estas empresas promovam textos e vídeos que debitam informação falsa, errada, que busca manipular a percepção de realidade de outras pessoas? O problema não são os algoritmos, os seus truques de engajamento. Porque esses são bons para mim quando procuro informação relevante, como quando quero comprar um livro e os sistemas me apresentam os livros próximos. Agora quando tenho o Facebook a apresentar-me mais e mais informação sobre a Terra Plana apenas porque vi uma qualquer imagem relacionada, não faz sentido. 

Repare-se que o problema não é alguém publicar um texto dizendo que a Terra é plana, mas é o facto das redes sociais, para ganharem dinheiro, aumentarem a distribuição desse texto. Isto está errado, porque quando os algoritmos apresentam esse conteúdo não o fazem porque foi pedido conscientemente por alguém, mas antes porque a empresa quer apresentá-lo para manter a pessoa agarrada ao sistema, por forma a conseguir enviar-lhe mais e mais publicidade. Ou seja, não se trata de proibir ou censurar, mas trata-se de impedir a manipulação empresarial de informação que se sabe ser falsa e nefasta para a sociedade que queremos.

Todos nós experienciamos o poder do algoritmo quando publicamos duas coisas distintas e verificamos que uma tem o dobro de likes da outra. Sabemos que não é por nossa vontade, mas também não é por acaso, é antes porque o algoritmo do Facebook considera um conteúdo melhor do que outro e por isso apresenta-o a muitas mais pessoas, aumentando a sua visibilidade e inevitavelmente o número de likes. Agora não podemos aceitar que o algoritmo considere mais uma notícia falsa, que por ser chocante tem enorme potencial de captar atenção, e a apresente a mais pessoas do que uma notícia verdadeira que é menos chocante. Mas isto só vai mudar quando for regulado, é de uma ingenuidade tremenda andar a fazer pressão sobre as redes sociais para que elas se auto-regulem quando elas são empresas cotadas em bolsa.

A mensagem no final do documentário é, do meu ponto de vista, para ser levada à letra. Desliguem as notificações. Sempre que comprarem um novo telemóvel ou computador, comecem por desativar todas as notificações de todas as Apps, mantenham apenas as das chamadas e SMS. Se não o fizerem, abrem a porta a que o vosso tempo seja regulado pelo telemóvel e não por vocês.