“Ser Mortal” (2014) de Atul Gawande é um livro sobre a experiência de morrer, ou de viver para morrer. Discute o processo como chegamos, fisiológica e psicologicamente, ao fim e avança com dezenas de casos e estudos sobre os diferentes modos de partir, e especialmente sobre o modo como nós, enquanto sociedade ocidental, temos vindo a tratar essa partida. Dá conta dos problemas criados pelas ilusões da medicina e dos hospitais assim como das angústias da morte, focando-se especialmente na área que se veio a definir como “cuidados paliativos”, que tem como missão exatamente evitar os problemas e as angústias da chegada ao fim. O livro está escrito num tom próximo e extremamente empático, abrindo-nos a território normalmente colocado à margem da discussão diária, mas inevitável para todos nós. Nem sempre concordando com Gawande, considero que o livro faz um excelente trabalho na discussão do tema, oferecendo matéria e espaço ao leitor para elevar a consciência de si.
Tenho algumas convicções sobre os últimos tempos de vida que me acompanham há muitos anos. Com a chegada de familiares a idades avançadas, e com a manutenção de conversas quase diárias com os mesmos, essas convicções manteram-se estáveis. O livro de Gawande ajudou-me a refletir sobre o melhor para os meus familiares, mas não me transformou. A vida, como ele próprio assume, é a história que nos contamos a nós mesmos. Existe um início, um desenvolvimento e uma conclusão. Aceitar que o final é inevitavelmente distinto do início faz parte da tomada de consciência daquilo que somos enquanto entidades biológicas. Não podemos escrever, nem reescrever o início, mas gostaríamos de fechar com algo bom, tanto para nós como para os que ficam. Nada mais direi, julgo que as palavras de Gawande abrem suficiente caminho à reflexão de cada um.
Deixo alguns excertos:
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“O cérebro dá-nos duas maneiras de avaliar experiências como o sofrimento – há a maneira como apreendemos essas experiências no momento e como as encaramos mais tarde – e essas duas maneiras são profundamente contraditórias."
"Achamos que uma dor de longa duração é pior do que uma dor de curta duração e que ter um nível médio de dor maior é pior do que ter um nível médio de dor menor. Mas não foi nada disso que os doentes disseram. As suas classificações finais ignoraram em grande parte a duração da dor. Em vez disso, as classificações regeram-se mais por um fenómeno a que Kahneman chamou «a regra do pico-fim»: a média da dor sentida em apenas dois momentos: o pior momento em toda a intervenção e o final." [ler mais sobre Daniel Kahneman]
"As pessoas pareciam ter dois eus diferentes: um que passa pelas experiências e vivencia cada instante, e outro que recorda as experiências e atribui quase todo o peso do juízo de valor a dois meros pontos no tempo, o pior e o último. O eu que recorda parece ater-se à regra do pico-fim, mesmo quando o final é uma anomalia. Bastou uns minutos sem dor no fim da intervenção médica para reduzir drasticamente as classificações globais de dor dos doentes, inclusive tendo sentido mais de meia hora de dor intensa. «Não custou assim tanto», disseram depois.”
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“Devíamos escutar o eu que recorda – ou, neste caso, que antecipa – e se concentra nas coisas piores que ela poderia sofrer? Ou devíamos escutar o eu que vive e que provavelmente teria um nível médio de sofrimento mais baixo no futuro imediato e talvez até conseguisse voltar a comer durante uns tempos, se ela fosse operada em vez de ir simplesmente para casa?”
“No fim, as pessoas não veem a vida como uma mera média de todos os seus momentos que, no fim de contas, se reduzem a pouca coisa, uma vez que passamos uma parte do tempo a dormir. Para os seres humanos, a vida tem sentido porque é uma história. Uma história constitui um todo e o seu arco é determinado pelos momentos significativos, aqueles em que acontece qualquer coisa. As medições dos níveis de prazer e dor das pessoas de minuto para minuto não têm em conta este aspeto fundamental da existência humana. Uma vida aparentemente feliz pode ser vazia. Uma vida aparentemente difícil pode ser dedicada a uma grande causa. Temos objetivos maiores do que nós. Ao contrário do eu que vive – que está absorvido no momento –, o eu que recorda tenta reconhecer não só os picos de alegria e os vales de infelicidade, mas também como é que a história se desenrola como um todo. Isto é profundamente afetado pela maneira como, em última análise, as coisas acabam por acontecer. Porque é que um adepto de futebol deixa que uns minutos falhados no fim de um jogo estraguem três horas de prazer? Porque um jogo de futebol é uma história. E numa história, o final é importante.”
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"O progresso da Medicina e da saúde pública tem sido uma dádiva enorme. No entanto,
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Precisamos de ajuda, muitas vezes durante longos períodos de tempo, e consideramos isso como uma fraqueza em vez de o vermos como a nova realidade normal com que devemos contar. Estamos sempre a regurgitar histórias sobre não sei quem que, aos noventa e sete anos, ainda corre a maratona, como se casos desses não fossem milagres de sorte biológica e sim expectativas razoáveis para todos nós.
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A história do envelhecimento é a história das nossas partes constituintes.
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Ao mesmo tempo que os nossos ossos e dentes se tornam mais moles, o resto do corpo torna-se mais duro. Vasos sanguíneos, articulações, os músculos e as válvulas do coração e até os pulmões ganham depósitos consideráveis de cálcio e ficam rígidos. Ao microscópio, os vasos e tecidos moles apresentam o mesmo tipo de cálcio que encontramos nos ossos. Quando abrimos um paciente idoso numa operação, a aorta e outras artérias principais parecem estaladiças ao toque. Estudos demonstraram que a perda de densidade óssea pode ser um indicador ainda melhor da morte por aterosclerose do que os níveis de colesterol. À medida que envelhecemos, é como se o cálcio se soltasse do esqueleto e se entranhasse nos tecidos.
Para manter o mesmo volume de sangue a correr nas veias mais estreitas e rígidas, o coração tem de gerar uma pressão maior. Consequentemente, mais de metade das pessoas chega aos sessenta e cinco anos com problemas de hipertensão. O coração fica com as paredes mais grossas por ter de bombear contra a pressão e menos capaz de responder a um esforço tão grande. O rendimento do coração começa, por conseguinte, a diminuir a um ritmo gradual a partir dos trinta anos. As pessoas deixam aos poucos de conseguir correr tanto ou tão depressa como antes, ou de conseguir subir um lanço de escadas sem ficarem ofegantes.
Enquanto o músculo do coração se torna mais grosso, os músculos do resto do corpo tornam-se mais finos. Por volta dos quarenta anos, começamos a perder massa muscular e força. Aos oitenta, perdemos entre um quarto e metade do nosso peso muscular.
Podemos ver todos estes processos em ação nas mãos, por exemplo: 40 por cento da massa muscular da mão está nos músculos tenares, os músculos do polegar, e se olharmos com atenção para a palma da mão de uma pessoa idosa, reparamos que na base do polegar a musculatura não é saliente mas sim achatada. Numa radiografia básica, vemos manchas de calcificação nas artérias e translucidez dos ossos, que, a partir dos cinquenta anos, perdem densidade a uma taxa de quase um por cento ao ano. A mão tem vinte e nove articulações, todas elas propensas a serem destruídas pela osteoartrite, que dá à superfície das articulações um aspeto irregular e gasto (...) A deterioração dos recetores mecânicos cutâneos das pontas dos dedos causa perda de sensibilidade ao toque. Perda de neurónios motores gera perda de destreza. A caligrafia degrada-se. A velocidade da mão e a noção de vibração diminuem. Utilizar um telemóvel banal, com os seus botões minúsculos e ecrã táctil, torna-se cada vez mais impraticável.
Isto é normal. Embora possamos abrandar os processos – o regime alimentar e o exercício físico podem ajudar muito –, não os podemos travar. A nossa capacidade pulmonar diminui. Os intestinos abrandam. As glândulas deixam de funcionar. Até o cérebro encolhe: aos trinta anos, o cérebro é um órgão de quilo e meio que mal cabe dentro do crânio; aos setenta, a perda de matéria cinzenta deixa quase dois centímetros e meio de espaço livre. É por isso que pessoas idosas como o meu avô têm muito mais probabilidades de sofrer uma hemorragia cerebral se levarem uma pancada na cabeça, porque, de facto, o cérebro chocalha dentro do crânio. As partes que encolhem mais cedo são geralmente os lobos frontais, que gerem o discernimento e a capacidade de planeamento, e o hipocampo, onde se organiza a memória. Consequentemente, a memória e a capacidade de recolher e pesar múltiplas ideias – ou seja, de fazer várias coisas ao mesmo tempo – atingem o auge na meia-idade e depois diminuem gradualmente. A velocidade de processamento também começa a decrescer antes dos quarenta (e é por este motivo que normalmente os matemáticos e os físicos produzem os seus melhores trabalhos na juventude). Aos oitenta e cinco anos, a memória e o discernimento estão tão diminuídos que 40 por cento das pessoas apresenta as características típicas da demência. "
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“Uma das grandes vantagens do antigo sistema era que tornava estas decisões simples. Escolhíamos o tratamento mais agressivo que houvesse. Na realidade, não era uma decisão, era uma configuração padrão. Esta coisa de ponderarmos as nossas opções – de decidirmos quais eram as nossas prioridades e trabalharmos com um médico para encontrarmos o tratamento que melhor encaixava nelas – era esgotante e complicada, especialmente quando não tínhamos um especialista à mão de semear para nos ajudar a analisar os imponderáveis e as ambiguidades. A pressão mantém-se toda numa só direção, no sentido de fazer mais, porque o único erro que os médicos parecem temer é o de não fazerem o suficiente. A maior parte não tem a noção de que é possível cometer erros igualmente terríveis no sentido oposto: de que fazer demasiado pode ser igualmente devastador para a vida de uma pessoa. ”
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“Pelo menos dois tipos de coragem são necessários na velhice e na doença. O primeiro é a coragem de enfrentar a realidade da mortalidade: a coragem de procurar a verdade sobre o que devemos temer e do que devemos esperar. Só essa coragem já é extremamente difícil. Temos muitas razões para nos retrairmos. Mas ainda mais assustador é o segundo tipo de coragem: a coragem de agir em consonância com a verdade com que nos deparamos. O problema é que o caminho sensato é tantas vezes pouco claro. Durante muito tempo, pensei que isso se devesse simplesmente à incerteza. Quando temos dificuldade em saber o que vai acontecer, temos dificuldade em saber o que fazer. Mas acabei por perceber que o desafio é mais básico do que isso: temos de decidir o que é que mais deve importar, se os nossos medos ou as nossas esperanças.”
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“Estamos com dificuldade em manter uma distinção filosófica coerente entre dar às pessoas o direito de suspenderem processos externos e artificiais que lhes prolongam a vida e dar-lhes o direito de interromper os processos naturais e internos que o fazem. ”
“No fundo, este debate é sobre qual dos erros tememos mais: o erro de prolongar o sofrimento ou o erro de encurtar uma vida preciosa. Impedimos as pessoas saudáveis de cometer suicídio, porque reconhecemos que o seu sofrimento psíquico é muitas vezes temporário. Achamos que, com ajuda, mais tarde o eu que recorda verá as coisas de maneira diferente do eu que as vive e, de facto, só uma minoria de pessoas resgatadas do suicídio volta a fazer uma tentativa de pôr fim à vida; a grande maioria acaba por se mostrar contente por estar viva. Mas perante os doentes terminais que enfrentam um sofrimento que sabemos que se tornará cada vez maior, só uma pessoa com um coração de pedra é que não sentirá compaixão.
“Nos Países Baixos, por exemplo, este sistema existe há décadas sem que tenha havido um movimento de oposição a ele, e é cada vez mais usado. Mas o facto de que, em 2012, um em cada trinta e cinco holandeses recorria ao suicídio assistido não é uma medida de sucesso. É uma medida de fracasso. No fim de contas, o nosso objetivo supremo não é dar às pessoas uma morte boa e sim uma vida boa até ao fim. Os Holandeses demoraram mais tempo do que outros povos a desenvolver programas de Cuidados Paliativos que pudessem alcançar esse objetivo.”
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“Mas prejudicamos sociedades inteiras, se permitirmos que o dar às pessoas essa capacidade nos desvie do objetivo de tentarmos melhorar a vida dos doentes. A vida assistida é muito mais difícil do que a morte assistida, mas as suas possibilidades são bem melhores.”
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“Quando cheguei à beira dele, encontrei-o alerta e infeliz por ter acordado no hospital. Queixou-se de que ninguém lhe dava ouvidos. Tinha acordado cheio de dores, mas a equipa médica recusava-se a dar-lhe analgésicos que chegassem para elas passarem, com medo de que ele perdesse novamente os sentidos. Pedi à enfermeira para lhe dar a dose que ele tomava em casa, na totalidade. Ela teve de pedir autorização ao médico de serviço e, ainda assim, ele só autorizou metade.
Por fim, às três da manhã -- fartou-se e desatou aos gritos. Exigiu que lhe tirassem as sondas intravenosas e o deixassem ir para casa. «Porque é que não fazem nada?», berrou. «Porque é que me estão a deixar em sofrimento?» A dor deixara-o incoerente. Ligou do telemóvel para a Cleveland Clinic – a trezentos quilómetros de distância – e disse a um médico perplexo, que estava de serviço: «Faça alguma coisa!» A enfermeira da noite conseguiu finalmente autorização para lhe dar um narcótico intravenoso, mas ele recusou. «Não funciona», disse. Por fim, às cinco da manhã, conseguimos convencê-lo a levar a injeção e a dores começaram a abrandar. Ele acalmou-se, mas continuou a dizer que queria ir para casa. Num hospital criado para assegurar a sobrevivência a todo o custo e pouco apto para agir de outra maneira que não nesse sentido, ele sabia que, ali, nunca seria ele a tomar as decisões. ”
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“Não quero sofrer», repetiu, quando me apanhou a sós. «Aconteça o que acontecer, prometes-me que não me deixas sofrer?»
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