abril 30, 2019

SciMed e a humildade em ciência

Entro na rede à procura de clínicas para fazer um exame de endoscopia, encontro uma perto de casa, entro e vejo que fizeram um vídeo explicativo do processo, acabo de ver o vídeo e como sempre faço, talvez por deformação profissional, vou ao YouTube ver de onde vem o vídeo, quantos o viram, comentaram, e que vídeos o YouTube me sugere mais. Surge um tal de "Dr. Lair Ribeiro - Ozonioterapia", não faço ideia do que seja, mas pelo título parece mais uma medicina alternativa. Começo a ver, invisto vários minutos e começo a pensar que o YouTube se tornou na maior arma de charlatanice da história. Pego no nome do senhor e faço pesquisa, nos primeiros cinco resultados aparece-me uma página do SciMed que me diz que o senhor, médico brasileiro, esteve recentemente em Portugal a debater com Rui Unas no Maluco Beleza. Em dúvida, entro no vídeo do Unas, vejo que se trata de uma entrevista de uma hora e meia, fico boquiaberto. Passo os olhos pelos comentários ao vídeo, só elogios ao senhor Lair!!! Volto ao artigo do SciMed, intitulado "Lair Ribeiro é um Charlatão – Análise Crítica às Suas Afirmações no Programa Maluco Beleza" no qual o médico João Júlio Cerqueira se dispõe a desmontar as falácias de Lair ao longo de um artigo longuíssimo (18 páginas). Se começo concordando, pensando em partilhar o texto para louvar o exemplo e esforço de desmontar falácias, quanto mais vou lendo mais incomodado me vou sentindo, já perto do final só sinto um trago amargo por cada novo parágrafo, até que bato com os olhos nos comentários dos leitores, uma enxurrada de ataques ao João em defesa de Lair, já com discussão xenófoba Brasil-Portugal pelo meio...


O sr. Lair pelos vistos perdeu-se no caminho da medicina, já que em tempos foi um médico de valor, inclusive investigou e publicou quase uma centena de artigos científicos, mas num certo momento da sua carreira algo lhe terá acontecido, porque abandonou a ciência, e começou a dedicar-se "à salvação dos mais necessitados" por meio das medicinas alternativas. Não sabemos se teve alguma experiência paranormal, ou se foi mera vítima da gula charlatã. Mas se o senhor é hoje um charlatão, não deixa de ter grande número de seguidores, tal como tem Edir Macedo, Olavo Carvalho ou Jordan Petersson. São pessoas dotadas de grande carisma, que acreditam estar imbuídas de uma missão, ou então são apenas pessoas despudoradas, capazes de tudo em nome de poder, fama e proveito económico.

Dito isto, não é difícil compreender que se movem ânimos intensos a favor e contra estas personagens. Não são apenas os seus defensores que se jogam na frente e dão o corpo em sua defesa. Todos aqueles que todos os dias trabalham em prol da sociedade, sentem-se de algum modo injustiçados por indivíduos que por graça do seu carisma contribuem apenas para destruir aquilo que vai dando tanto trabalho a criar, e por isso quando podem alinham-se também na primeira fila do pelotão, prontos a fuzilar. O João apresenta-nos um texto de puro fuzilamento. Em defesa do João podemos dizer que apresenta evidência, que desmonta os argumentos contrapondo com factos, reportando a estudos da comunidade internacional, que tornam claro quem tem razão, ou quem está mais próximo da verdade. Contudo, todo esse trabalho é destruído pelo tom do discurso, que por vezes conta mais do que o teor do conteúdo, mais ainda se tratando de esgrima argumentativa. E não adianta falar em falácias, ou conhecer as comuns falácias argumentativas, sem comunicação apropriada as ideias não se sustentam.

Começa logo na imagem usada para o artigo que dá o mote para a chacota que percorre todo o resto do texto. O João ainda começa por dizer que vai fazer uma “análise crítica”, mas logo a seguir inicia com termos como “missa habitual” seguido de “paletes de mentiras”, e ao longo de todo o texto, aqui e ali, vai como que encostando a ponta da faca da espingarda à barriga de Lair — “quem percebe o mínimo de medicina”, “ser evangelizado pelo Lair Ribeiro”, “é uma treta”, “tretólogo”, ”crendice”, “está tão gasto que dói”, “cheirar a mofo“ — ou até puro ad hominem disfarçado com “oligofrenia” e “culto oligofrénico”. Mas vai mais longe, embevecido pela sua luta, e vontade de fuzilar, leva tudo na frente cometendo erros graves como dizer: “Nenhum cientista que se preze cita livros para justificar posições.” Posso até conceder que na sua área não usem, mas a sua área não é toda a ciência. E mais, atacar assim o livro, enquanto objeto central do conhecimento, acaba por só levantar dúvidas à sua argumentação, mais ainda de todos aqueles que não trabalham com ciência e nem sequer sabem o que é um paper. Acrescentando por fim que o João acusa o Lair de se autocitar, vangloriando o Eu em vez da ciência, e depois acaba por ele próprio autocitar-se ao longo do texto várias vezes.


Chegado ao final, pergunto-me: o que retira o João de todo este trabalho, são horas e horas que estão ali (de análise de vídeos, desmontagem de argumentos, composição de imagens e diagramas, pesquisa e escrita)? É capaz de se sentir realizado porque despejou o saco, ventilou, pôs cá para fora toda a irritação de ver a ciência, e o seu trabalho, maltratados. Mas o João já se perguntou se aqueles que seguem o Sr. Lair deixam de o seguir depois de ler o João? A julgar pela discussão nos comentários ao texto do João, é fácil perceber que não. Para que serve então tudo isto?

O que me apraz dizer é algo que não é novo, que fazem falta nos cursos de medicina disciplinas que trabalhem a empatia dos médicos, que os ajudem a colocar-se no lugar do outro, neste caso teria sido muito útil ao João, perceber que ele não está a escrever para o seu Eu. Mas talvez mais importante do que isso, e já que vivemos tempos em que o Japão (já voltou atrás) e o Brasil (espero que volte atrás) querem acabar com os cursos de Filosofia, seria importante que todos os alunos de Medicina, mas não só, tivessem disciplinas de Filosofia, porque a Humildade Científica é o valor mais importante de qualquer aprendizagem científica.

abril 26, 2019

Sobre o Mito: “desde que se leia”

Um dos grandes mitos que surgiu nas últimas décadas com a elevação do discurso pós-moderno a discurso popular e consequente queda de reconhecimento dos especialistas, foi o da colocação ao mesmo nível de qualquer texto, independentemente da sua forma ou conteúdo. Diz-se e lê-se um pouco por todo o lado: “o que é preciso é ler, desde que se leia, não importa o quê”. Nada podia ser mais erróneo. Vamos usar um modelo simples de análise textual para perceber porque importa e faz diferença aquilo que se escolhe para ler.


A desconstrução, simples, de texto pode ser feita nas suas três unidades básicas que funcionam como camadas: sintaxe, semântica e pragmática. Assim, temos:
1º nível – Sintaxe: conjunto de regras e princípios que governam a estrutura das frases (Ex. explica como se conjugam verbos, ou plural e singular, etc.); 
2º nível – Semântica: é onde se atribui sentido às palavras e frases (Ex. “bola”, quer dizer pedaço de borracha esférica; mas “bola de futebol americano” quer dizer pedaço de borracha oval).
3º nível – Pragmática: aqui elevamos a complexidade, é onde se atribui sentido às palavras e frases em função da relação que temos com os significados ou com a pessoa que as emite. (Ex. “cruz”, um católico pensará em Cristo, mas um matemático tenderá a pensar em sinal de multiplicação; se um professor e um médico nos dizem “que não estamos a ir bem”, apesar da mesma sintaxe e mesma semântica, não querem dizer o mesmo).
Quando iniciamos os nossos passos como leitores, perto dos 6 anos, começamos pela sintaxe. Aprender as letras, depois palavras, depois regras que nos permitem juntar palavras e formar frases. Quanto mais lermos, mais exemplos vamos conhecer sobre como juntar letras e palavras para criar frases. Depois disso, começamos a perceber que existem muito mais palavras do que aquelas que usamos no dia-a-dia e que exigem durante o processo de leitura o uso do dicionário, o que nos vai fazendo ampliar o vocabulário, assim como acrescentando novos significados a frases compostas que antes desconhecíamos. Depois disso, começamos a perceber que apesar de poderem ser as mesmas palavras ou frases, elas variam em função de quem está a falar, do contexto, do local ou momento em que estão a ser ditas, e por isso vamos ampliando a nossa bagagem das múltiplas interpretações possíveis da linguagem.

Tendo em conta estes processos, podemos dizer que ler sempre o mesmo, ou um conjunto restrito de estilos textuais, é suficiente para o domínio sintático. Ou seja, para uma criança pequena, a dar os primeiros passos, não interessa muito o que vai lendo, desde que leia. O que se pretende é que memorize as letras, palavras, frases as suas posições, organizações e usos. Mas a determinada altura, temos de começar a guiar as leituras, temos de lhes oferecer textos que eles compreendam para que se mantenham a ler, mas que ao mesmo tempo vão exigindo mais e mais conhecimento de significados, de forma a garantir que eles vão ampliando o vocabulário, os diferentes usos frásicos, assim como as noções de composição diferentes dessas mesmas frases. Chegados à terceira fase, temos de começar a ler aquilo que numa primeira leitura não nos atrai, por ser diferente do que estamos habituados, ou seja, "sair da zona de conforto". Porque já não chega ampliar o vocabulário, precisamos de ler diferentes versões da realidade para podermos começar a comparar, a confrontar e a contrastar, e assim começar a compreender porque as mesmas palavras, e as mesmas frases, e as mesmas ideias podem conter outros significados até aí desconhecidos.

É por isso que ler qualquer coisa não é indiferente. Se lermos todos os dias, mas a leitura for colocada sempre ao mesmo nível de desafio, ou seja, não forem apresentados significados novos de palavras, frases, ou dos seus diferentes usos, é como se não estivéssemos a ler nada. O texto está a servir apenas de condutor, de envelope, ao qual nem sequer prestamos atenção. É como passar todos os dias na mesma estrada, não aprendemos mais sobre ela depois de passar por ela 100 vezes, não é por acaso que na maior parte dos dias não nos lembramos sequer de ter feito a estrada para o trabalho, nada de novo chamou a nossa atenção, foi mera repetição, por isso nada ficou dessa passagem.

Ou seja, ler Dan Brown ou José Rodrigues Santos pode até saber-me bem pela intriga e aventura, pode funcionar como umas horas bem passadas de entretenimento, mas por mais horas que os passe a ler, as minhas competências tanto de compreensão textual como de escrita não vão melhorar em nada (a não ser que seja um adolescente, ou seja alguém que leu muito pouco, e ainda não tenha atingido um nível médio). Lê-los, será como passar pela mesma estrada para o trabalho todos os dias, com a vantagem de poder ser divertido.

Do mesmo modo, se for um livro de não-ficção — sobre Astronomia, Vinhos ou Cinema — aprendo sobre o assunto em questão, mas não devo esperar que essa leitura altere ou contribua para melhorar as minhas competências de leitura e escrita. Por outro lado, se não incrementar o nível de detalhe, aprofundamento e erudição dos tópicos sobre esses temas, pela ausência de variação continuarei apenas a solidificar o que já sei, não passando disso. É por isso que as novelas de amor e traição se revelam tão pouco relevantes para além do mero divertimento, não só são limitadas no uso das funções textuais, como não vão além do baralhar e voltar a dar das tramas amorosas, descurando toda a restante complexidade humana.

Nunca se leu tanto no planeta como hoje, porque nunca as pessoas viram a sua realidade tão mediada por ferramentas que operam com imagens e texto, sendo o texto o principal meio de que as pessoas dispõem para se fazer ouvir. Desde os jornais e suas caixas de comentários ao Facebook, Twitter ou WhatsApp, nunca nos vários milhares de anos que levamos como espécie, houve tanta pessoa alfabetizada e obrigada a ler todos os dias para poder levar a sua vida por diante, no entanto essa prática diária não alterou propriamente as competências de leitura e escrita das pessoas. Basta perder um pouco a ler essas mesmas caixas de comentários e deter-se sobre o uso dado ao texto, a sua sintaxe, semântica e pragmática.


Podia terminar com o último parágrafo, mas não estaria a dar um contributo completo, por isso deixo duas recomendações: The Greatest Books e PNL2027.

abril 23, 2019

Às pessoas do Drama falta Ciência

"As Pessoas do Drama" (2017) pode ser lido como continuação de "Impunidade" (2014) ou remake, a continuidade não é perfeita, existem vários elementos narrativos que não oferecem suporte à continuidade, ainda assim pode tentar-se a aproximação. Dizendo isto apenas, já sabem o que vos espera, ainda que sendo um trabalho muito menos violento, mais focado, mas também talvez por isso mais repetitivo, fez-me sentir falta de mundo. O mundo que habitamos é vasto, denso e complexo e no entanto para Cancela, dois romances resumem tudo a meia-dúzia de personagens alienados, sofrendo todos das mesmas patologias do foro mental. Eu tentei, li vários textos sobre o livro, muitos deles pareciam escritos por quem nem sequer o tinha lido, mas chegado ao final, a convicção de que não é um bom livro é grande, embora admita que possa ter falhado na leitura, mas é o que sinto agora.


A obra recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela 2018, segundo o júri "pela leitura crítica da História e da Cultura europeia na sua relação com a cultura árabe, através de uma temática poderosa (a culpa, a impunidade, o drama, o olhar, o incesto, a tensão e a violência familiares), e de uma revisitação de personagens e de mitos do nosso património cultural ocidental"." Bem, devem ter lido um livro que eu não li. Sim a Cultura Europeia está em destaque, temos Antiga Grécia (Antígona), temos Itália (Roma), Espanha (Badajoz e Cordoba) e Portugal (Alentejo, Elvas e Lisboa). Mas Cultura Árabe, a sério? Porque existe um personagem secundário marroquino, que passa por espanhol, mas porque é mudo, não fala uma língua, todos lhe dizem que é de parte nenhuma?

Quando terminei de ler "Impunidade" senti-me defraudado. Mais de metade do livro tinha sido passado a tentar interpretar algo, quando apenas a 1/3 do final Cancela resolve tirar o tapete. Desta vez Cancela termina o livro, e só na nota final que define os personagens, tal como nas peças de teatro, é que percebemos quem é quem. É um jogo vil. Das duas vezes optou por manipular o leitor, não disse ao que vinha, quis jogá-los para o meio da tragédia, obrigá-los a sentir, para depois revelar o que se passava. A isto chamamos manipulação. Hitchcock foi um dos seus maiores mestres, mas Hitchcock não brincava com temas destes, e menos ainda se repetia. Chegar ao final de "As Pessoas do Drama" e reencontrar o incesto como o segredo que tudo explica, é como ir ao cinema ver o último filme de M. Night Shyamalan, e chegar ao final e descobrir que afinal o personagem estava morto desde o início.

Por outro lado, escrever quase 300 páginas sem nunca revelar quem é quem é obra, um verdadeiro tour-de-force, ainda que conseguido à custa de muita redundância, e paciência do leitor, que perto do final já em desespero deixa sequer de querer saber quem são todos aqueles personagens que na frente dele se movem. Mas chegar ao fim e ver a mesma resposta dada no romance anterior, é anti-climático, desolador. Se existe algo que o autor quer dizer sobre o tema que escreva um ensaio, agora usar o romance para rodear, tornear a questão parece-me de mau gosto. Porque o texto não é inocente. Cancela não está propriamente a escrever um livro para chocar e vender, ele usa a escrita para afirmar um ponto de vista, tal como diz:
"É algo a que me proponho enquanto projecto de escrita e de literatura: cada livro tem de merecer a atenção do leitor. Deve dar-lhe algo em troca daquilo que exige. E deve dar-lhe tanto mais quanto maior é o que exige. Não tem de ser fácil ou imediato, mas deve ser intelectual e esteticamente gratificante. Deve acrescentar algo à experiência do leitor."  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Cancela quer ampliar a nossa experiência da realidade, e a melhor forma que encontrou para fazer foi escrever dois livros seguidos sobre o incesto? Muito sinceramente, a mim parece-me mais sentido de missão:
“Se há alguma coisa que possa ser a função das artes na actualidade é a capacidade de experimentar os valores. Aquilo que não é legítimo no plano político ou no plano social é desejável no plano artístico. Se a arte não é um espaço de experimentação, de encostar o mundo aos seus próprios limites, então não sei para que serve a arte.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Não sendo legítimo, é desejável na arte. Concordo. Mas a arte não é mera experimentação do que é ilegítimo, a função da arte é exatamente a de quebrar os tabus da sociedade, de a fazer abrir-se e aceitar o que moralmente vai sendo questionado. Repare-se no que diz ainda:
"a literatura é um extraordinário organizador de experiência e um espaço de construção da nossa própria identidade. O autor constrói-se através do processo de escrever, é a escrita que suporta a construção da sua identidade.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Ou seja, o texto não é mera ficção, existe algo no seu interior que move Cancela. Não me move realizar aqui qualquer psicologia, menos ainda psicanálise. Interessa-me antes compreender o que livro tem para dizer, e faço-o também porque é o próprio autor que questiona o silêncio de quem o lê, o que me leva a falar, já que confesso que chegado ao final, senti mais vontade de atirar o livro para o monte e esquecê-lo, juntamente com o livro anterior e o seu autor.
"Não podemos contra-argumentar com o silêncio. Contra um insulto, sim, podemos reagir. Mas não podemos reagir dentro do silêncio. Em relação ao Impunidade o silêncio foi quase absoluto.” Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
E afinal o que se retira desta leitura? Como é que a minha experiência do real se altera ao ler esta obra? Na verdade alterou-se apenas no meu respeito por quem escreve bem, e tem um enorme talento na construção de texto e trama narrativa, que deixou de acreditar que essas condições são suficientes para alguém criar obras relevantes. Algo que me custa ainda mais num autor nacional. Não é apenas a questão do incesto, foram vários os momentos ao longo da leitura em que estaquei a questionar o suporte científico do que se apresenta. Temos um filha que renuncia aos pais adoptivos, para se tornar uma alma vagante apenas porque é adoptada? Que potencialmente se tornaria um ser alienado porque é fruto da consanguinidade, apesar de ter vivido toda uma vida normal até descobrir que era adoptada? Como se os pais biológicos fossem a razão de tudo, e 16 anos de educação, desde o dia em que se nasceu, tivesse tido impacto nulo naquele ser? Esta é toda uma visão retrógrada sem suporte no que sabemos hoje sobre o modo como se edifica o ser-humano. A biologia define muito do que somos, mas não é uma cruz que se carrega desde que se nasce até que se morre.

abril 20, 2019

A importância de “Antígona”

“Antígona” (-442) é a parte final de uma trilogia que se inicia com “Rei Édipo” (-427) a que se segue “Édipo em Colono” (-406), ou seja, a última parte, mas a primeira a ser escrita por Sófocles (-497 — -405). Assim, se a primeira parte ganhou repercussão no nosso imaginário contemporâneo deve-o não só à hábil estrutura narrativa, capaz de prender o leitor e agitar as suas emoções do início ao final, mas principalmente a Freud por ter inventado um complexo incestuoso, que nunca existiu, já que Édipo só descobre que tem uma relação com a própria mãe depois de com ela ter casado. “Édipo em Colono” funciona como episódio intermédio, contribuindo para aumentar o universo dramático, nomeadamente do seu espaço, como das personagens fundamentais, pondo em cena o fim de Édipo, estando Sófocles perto da sua própria morte, e dando corpo às duas percentagens centrais de “Antígona”, Antígona e Polinices.

Recorte de "Antigone donnant la sépulture à Polynice"(1825) de Sébastien Norblin [ver Galeria]

Se o “Rei Édipo” nos choca pelo conflito com a natureza, pelo incesto, Antígona agarra-nos pelo conflito entre o indivíduo e o coletivo. Não admira que Antígona tenha sido a primeira peça, e uma das primeiras peças de Sófocles, é muito mais liberal, centrada nos valores sonhadores da autodeterminação, enquanto Rei Édipo é quase uma aceitação tácita do determinismo que sepulta o livre-arbítrio.

Temos uma Antígona que questiona a lei, desafia o governador, o rei Creonte, aceitando a morte em troca da defesa dos seus princípios, o direito de enterrar o irmão. Podemos ler na vontade de Antígona apenas o cumprimento dos desejos dos deuses, e do seu irmão expresso em “Édipo em Colono”, de que se sepultem os mortos sob terra, mas isso é apenas um pretexto dramático. O que temos é, Antígona, uma mulher respeitada por toda a sociedade a questionar uma ordem do governador, da autoridade, provocando um conflito na sociedade, que por ter em tanta consideração Antígona, e por aquilo que pede não lhes parecer indigno, a coloca face a um dilema, aceitar ou não aceitar a vontade de Antígona. Este conflito é ainda mais ampliado com a entrada em cena de Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona. Habilmente, Sófocles não dá espaço à emocionalidade básica da historieta do amor cego, antes aproveita para captar do confronto pai-filho, a mesma problemática da auto-determinação do indivíduo, entrando aqui no território sagrado do “Honrarás Pai e Mãe”.

A peça questiona assim, sem rodeios, a autoridade daqueles que se dispõem a dispor das vidas dos outros, seu povo ou seus filhos. Deve um cidadão deixar de se afirmar, de se edificar, enquanto ser humano individual e livre, apenas para cumprir os desígnios de um líder, que o é temporariamente. E um filho? Deve ele submeter-se a todas as vontades de um pai, apenas porque dele nasceu? Com que direito podemos pôr e dispor das vidas dos nossos filhos (cf. “Uma Educação”, 2018)?

Refletindo agora, esta questão vai ao coração do Rei Édipo, dando a parecer que Sófocles quis aprofundar o dilema daquilo que somos e do poder que detemos para determinar o que somos. Poderemos, mesmo pelas supostas leis da natureza, anti-incesto, condenar Édipo? Quanto daquilo que somos depende de nós? dos outros? da natureza? Temos mesmo acesso a um livre-arbítrio?

Tendo-o ou não, devemos, não, acredito que temos a obrigação de nos edificar, de trabalhar para o que é justo, que não podendo ser escrito como lei, por nenhum rei ou governante, por nenhuma sociedade, nem por nenhum pai ou mãe, já que o que é justo é emanado da moral que se escreve momento a momento pela própria evolução da civilização, podendo apenas basear-se no princípio basilar que suporta todos os ditames filosóficos e religiosos desde sempre, sendo hoje reconhecida como Regra Dourada: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”

abril 18, 2019

A civilização faz-se do contar de histórias

Há algum tempo que queria ler Mahfouz, o Nobel de 1988 dava-me alguma garantia de existir ali trabalho relevante, além de facilitar a triagem de uma cultura que tendemos a desconhecer. Comecei por procurar a Trilogia do Cairo mas como comecei a seguir a lista das 100 Obras do Instituto Norueguês do Nobel, e nesta vem este "Os Filhos do Bairro" (1959), acabei por optar por começar por aqui. Não li mais nada sobre o livro, apenas aceitei a recomendação da lista, entrei de olhos fechados, e mesmo assim o impacto foi grande. Provavelmente se tivesse lido algo mais sobre o que estava por detrás da mesma teria conseguido ler mais nas entrelinhas, contudo ler [1] no final continuou a permitir-me expandir a leitura e a sua compreensão, além de poder comparar as minhas interpretações com as mais consensuais. Mas se a história e sua premissa são belíssimas, imensamente poderosas e carregadas de significado, acabei por me entusiasmar mais ainda com a forma e estrutura (claro defeito da área que investigo).


Para mim, a premissa base de "Os Filhos do Bairro” assenta na explicação do mundo que temos como fruto do contar de histórias. A esta junta-se uma segunda, a mais debatida, da explicação do modo como surgiram as religiões e todo o seu impacto nos processo de civilização das sociedades. O registo escolhido é parabólico, num tom muito semelhante ao das “Mil e uma Noites” (800), mas poderíamos dizer também ao Velho e Novo Testamentos ou o Alcorão. A menção a estes últimos é intencional, já que a história que se conta tem por base as três religiões abraâmicas, ou monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Muitas das sínteses que se veem do livro falam sobre um conjunto de histórias, transparecendo quase a ideia de que se trata de um livro de contos, mas nada poderia ser mais errado. A estrutura apenas parece apresentar-se como um agregado de histórias, porque quando analisadas as suas relações, e compreendidos os seus objetivos e alcance damo-nos conta do facto de estarmos perante um romance não só completo, mas imensamente poderoso enquanto soma das partes. A estrutura é bastante distinta da matrioska das Mil e Uma Noites, porque funciona numa base de sucedâneo evolucionário, aparentemente natural mas com uns pós de sobrenatural, acabando por colocar em evidência, quase como representado sobre  um tabuleiro de ideias, todas as perspectivas religiosas e pós-religiosas. Existe algo de teleológico no romance, mas ao mesmo tempo diria que mais do que explicar o fim, Mahfouz está focado no chegar ao como, e é esse que acaba tornando a estrutura do romance (o sucedâneo de mundos evolutivos), tão mais relevante, porque acaba enunciado em si mesma aquilo que nos conta.

Ou seja, Mahfouz usa o contar de histórias, os seus processos, para literalmente discutir o mundo em que vivemos e aquilo que somos enquanto sociedade e espécie. Podia ter-se socorrido do ensaio argumentativo, mas preferiu a narrativa com todo o seu fervilhar dramático. Na verdade, o que Mahfouz faz é pegar nas qualidades narrativas, aquelas que tendemos a usar mentalmente para compreender o mundo, para nos dar a ver como funciona esse mundo. Este modo é muito mais eficaz que o ensaístico, já que usa a forma mental como construímos conhecimento, como nos relacionamos com o mundo, que contém sempre um lado humano que o ensaio, pelo seu traço racionalista, tende a deixar de fora. Por outro lado, o uso das histórias é ainda mais vital quando o foco da explicação do mundo assenta numa análise dos livros de histórias de cada religião, as mais importantes para a civilização em análise, ao que Mahfouz não deixa de juntar o correspondente atual, o Humanismo, com a sua ausência de Deus.

Naguib Mahfouz

Não vou detalhar os personagens, quem representam em cada história, porque efetivamente representam personagens da mitologia que suportam a nossa civilização. Aliás, é por causa dessa representação tão clara que a obra foi banida no Egipto durante décadas, mas pior do que isso, Mahfouz sofreu uma tentativa de assassinato [2] em 1994, 35 anos depois do livro escrito, o que dá bem conta do quão perfurante o livro consegue ser em termos religiosos, mas vou mais longe, o que  lhe aconteceu poderia ter sido mais uma das histórias contidas neste livro, o que torna todo o livro e o seu autor ainda mais coerentes e relevantes.


"Os Filhos do Bairro" é uma obra dotada de grande genialidade formal, que nos faz refletir em profundidade sobre a sociedade que temos, mas acima de tudo sobre aquilo que somos enquanto espécie. Não apresenta uma escrita muito elaborada, não sei o quanto se terá perdido na tradução, mas o cuidado estético e a mensagem poderosa fazem com que encaixe completamente no perfil do Nobel, ao lado de Saramago, Naipaul ou Marquez.


Nota: A Penguin criou todo um guia de questões [3] muito interessantes no apoio à leitura da obra de Mahfouz que pode servir clubes de leitura, assim como o uso das suas obras nas escolas.

Referências
[1] The Allegorical Significance of Naguib Mahfouz's, 1989 
[2] From ‘Children of the Alley: The Story of the Forbidden Novel’, 2019
[3] “Children of the Alley Reader”’s Guide, Penguin 

abril 15, 2019

Viajar, uma volição de posse

Comecei a escrever este texto hoje duas vezes, primeiro por causa do excesso de turistas numa reserva natural de macacos no Japão, mas decidi parar. Depois, por causa de um estudo da eDreams desta semana que conclui que mais de 50% das pessoas na Europa e EUA já escolhem os locais de viagem em função do seu potencial "instagramável". Recomecei, mas parei. De ambas as vezes, refleti sobre o facto de ser semana de Páscoa e de estarem muitos de vós em viagem a gozar descanso e férias, não quis ferir suscetibilidades. Contudo, ao terceiro choque, o facto de terem construído um aeroporto numa ilha das Maldivas que as tartarugas utilizavam para pôr ovos, e agora se veem obrigadas a pôr os ovos no alcatrão, deixou-me estarrecido, e decidido a fechar e publicar o texto.

Maldivas. Tartaruga põe ovos no alcatrão de uma pista de aeroporto recém construída num pequeno atol. As duas imagens por baixo da tartaruga, mostram o atol antes e depois. [Notícia]

Cada vez sinto menos vontade de viajar fisicamente. Já viajei bastante, inúmeros países e lugares, para muitos será pouco, para mim é já demais. As viagens, romantizadas pela literatura, não representam qualquer procura de conhecimento, porque não se apreendem nem assimilam culturas numa semana, isto para não falar em fins-de-semana. Os visionários do turismo souberam aproveitar muito bem a ganância do ser humano, a sua ânsia por ter, a volição de possuir, para nos enfiar pela goela abaixo a necessidade de viajar. Vendem, em letras de slogan: “Ter coisas já não importa, viva experiências”. Mas as experiências culturais não se compadecem com viagens de fim-de-semana, esta são meras coisas que se compram e se colam ao peito do Instagram.

Refúgio de macacos japoneses, piscina natural de água quente, que se transformou em meca turística [blog post]

Sim, porque ver uns edifícios de pedra ou metal, uns quadros ou esculturas, umas árvores ou quedas de água, correndo para riscar os objetivos no mapa, conhecendo apenas o senhor da receção do hotel, ou o do café ao lado do apartamento AirBnB, que nos recebe com um sorriso artificial porque é o seu trabalho diário, e nos agradece a gorjeta no final, pouco antes de voltarmos, a correr de novo, para o aeroporto, não tem nada que ver com o enriquecimento do ser, corremos apenas atrás do status, do “eu estive lá”. Viajar, neste modelo, não é em nada diferente de comprar um carro para mostrar, uma casa maior do que as necessidades, ou vestidos/fatos, sapatos ou joias de estilista. Viajar assim, não tem nada que ver com ter experiências que nos mudam, que nos fazem crescer interiormente, tem apenas que ver com o crescer daquilo que temos. Viajar acaba sendo uma forma material de quantificar o nosso impacto, o quanto conseguimos crescer na escala comparativa. Visitámos já 5, 10 países, 20, 40, visitámos o monumento A ou B, na cidade Y ou Z, tudo isso são apenas coisas, garante de status.

Metade dos portugueses tem em conta o potencial “instagramável” do destino [Público New]. Na imagem uma das polémicas de há algumas semanas com o tirar de selfies nos campos de Auschwitz.

Mas e porquê falar disto se cada um é livre? Bem, sim, somos livres de viajar, temos os mesmos direitos de tantos outros antes de nós. Mas talvez tenha chegado o momento de questionarmos se ter o mesmo direito dos que vieram antes de nós, nos dá também o direito de destruir aquilo que irão receber os que vierem depois de nós. Porque é isso que estamos a fazer com a indústria do turismo, estamos a destruir património dos nossos antepassados, a destruir habitats de espécies, a destruir o planeta colocando aviões no ar que consomem toneladas de combustível fóssil de modo totalmente irresponsável, e estamos ainda a destruir as vidas de quem habita esses locais, provocando perturbações brutais no imobiliário, entre tantas e tantas outras questões. Valerá a pena?


Atualização 16.4.2019
As agências de viagens já nem sequer disfarçam. Foto de um catálogo recente de uma agência nacional.


abril 14, 2019

Design de Narrativa, Desenho de Significado na Experiência Interativa

Foi publicado esta semana, na Convocarte - Revista de Ciências da Arte, da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, um novo artigo em que apresento todo um enquadramento teórico do recente domínio de Design de Narrativa que tem vindo a ser promovido pelo meio dos videojogos, intitulado "Design de Narrativa, Desenho de Significado na Experiência Interativa". Apresento neste uma modelação do conceito de Design de Narrativa a partir de três vetores — Estrutura, Personagens e Cenário —, com a Estrutura, base primordial do design, a ser evidenciada em quatro camadas — Linear, Ramificada, Modular e Modular Ramificada. O artigo acabou resultando num investimento maior do que o esperado, e por isso acabou ficando demasiado grande (quase 9000 palavras), de modo que fica como primeira parte do tema. A segunda parte será focada na poética das escolha interativas, e deverá surgir lá mais para o final do ano.

Zagalo, N. (2019). Design de Narrativa, Desenho de Significado na Experiência Interativa, in Convocarte - Revista de Ciências da Arte. No.7, Dezembro de 2019. ISSN:2183–6981. Lisboa: Faculdade de Belas Artes
A revista científica é publicada em acesso aberto, por isso o artigo encontra-se disponível para ser descarregado integralmente e sem custos no ResearchGate ou aqui.


abril 03, 2019

A Odisseia como romance primordial

Ou a Odisseia é uma narrativa demasiado complexa para o tempo em que se diz que foi criada, ou desde então nada de novo aprendemos... Neste livro, Uma Odisseia: Um pai, um filho e uma epopeia (2017), apresenta-se um conjunto de memórias que dizem respeito ao primeiro semestre de 2011, em que Mendelsohn lecionou a Odisseia, no Bard College (EUA), e a que o seu pai, com 80 anos, assistiu. No final desse semestre, pai e filho, fizeram um cruzeiro no Mediterrâneo para visitar os locais por onde passou Ulisses antes de chegar a casa. Mendelsohn cose as aulas e a interpretação da Odisseia com a sua relação com o pai, criando uma narrativa emocional, carregada de factos históricos e literários assim como de sentimento humano, capaz de conduzir pai e filho a “casa”. Não sendo uma grande obra, a escrita e estrutura deixam algo a desejar, é uma belíssima viagem.


É um livro que só faz sentido ler depois de se ter lido a Odisseia. A leitura está constantemente a levar-nos de volta à nossa experiência da Odisseia, com as diferentes interpretações que vão sendo apresentadas, não só alargando o nosso conhecimento, mas também densificando as nossas memórias dessa leitura, algo que contribuirá para que a viagem de Ulisses se sedimente ainda mais em nós. Não posso dizer que Mendelsohn se alargue muito, para quem tiver dedicado um pouco a leituras adicionais à Odisseia, a Homero, e aos gregos, não encontrará nada de muito novo, ainda assim o modo como tudo vai sendo apresentado, é não só imensamente agradável como enriquecedor da experiência do texto original.

Mendelsohn e o pai na viagem ao Mediterrâneo

A vista do Bard College, dando conta de um lugar propício ao estudo da Odisseia.

Voltando ao início, se já tinha esta ideia quando li a Odisseia, agora fiquei completamente certo disso, a Odisseia não é um épico, é um romance. Procurei depois sobre isto, e encontrei pelo menos dois autores que desconstruíram este argumento (ver abaixo referências), demonstrando como a Odisseia apresenta todos os ingredientes base daquilo que viriam a ser os romances pós D. Quixote. A saber:

. O amor maior pela mulher do que pelas deusas.
. O amor da mulher que tece e destece uma camisola, esperando 20 anos.
. O naufrágio e a perda de tudo.
. A origem da cicatriz, a gestão da emoção e drama.
. A educação de Telémaco.
. A moral, a compaixão, o amor, as emoções, as traições, o casamento, os filhos, os pais e mães, os deuses, os servos.
. Constelação de personagens que sustentam a moral de Ulisses.

Excerto do paper "The "Odyssey" as Romance" de John Dean

A Odisseia é a matriz de tudo o que foi escrito desde então, e por isso ou é tão brilhante que não a conseguimos até hoje suplantar, ou então, o modo como foi feita, o facto de ter sido testada previamente durante séculos como história oral, fez com que adquirisse traços daquilo que faz de nós seres humanos — sociais, afetivos e cognoscentes — tornando-se mais num modo como pensamos e exortamos o mundo, deixando de ser mero artefacto escrito.


Referências
Hubert McDermott (1989), Novel and Romance: The Odyssey to Tom Jones, Palgrave Macmillan UK
John Dean, (1976), "The "Odyssey" as Romance", in College Literature, Vol. 3, No. 3, The Homeric Epic, pp. 228-236

março 30, 2019

A Analfabeta

Quando acabei de ler "O Grande Caderno", primeiro livro de Agota Kristof [1935-2011], senti-me tão impactado pela diferença do que tinha acabado de ler que tinha de saber mais sobre quem tinha escrito tal. Quem era esta Agota que tinha nascido na Hungria, de onde tinha partido aos 21 anos, em 1956, com um bebé de 4 meses ao colo, para se refugiar na Suíça? Sentia que o seu livro falava tanto a partir de dentro, do seu mundo pessoal, que só o poderia compreender compreendendo-a a ela primeiro. Descobri então que tinha deixado um pequeno livro de memórias, "A Analfabeta" (2004), nunca traduzido para português, que acabei por adquirir na língua original, o francês, a língua que Agota adotou como sua, desde que se refugiou na Suíça.

"A Rapariga do Tatra" (1905) de Marianne Stokes

A escrita segue de muito perto aquilo que está nos seus romances (entretanto já li o segundo, "A Prova" de 1989). A sua vida e família não serviram de espelho aos livros, mas emprestaram toda a dor e sofrimento provocados pelo roubo da infância e de identidade. Agota fala em algo em que nunca tinha pensado a propósito da União Soviética. Se na Rússia as pessoas viveram sob o jugo do comunismo, esse comunismo era emanado da sua própria cultura. Os restantes países, como a Hungria, foram obrigados a adotar uma língua que lhes era completamente estranha, obrigados a deixar de ler os seus próprios escritores, a estudar a história e geografia da Rússia, a sua cultura foi apagada, ou como ela diz, "sabotada", substituída pela cultura de um país estrangeiro. É verdade que isto é o que acontece quando uns países invadem outros, como fez Napoleão, ou Roma, mas supostamente não era isso que a União Soviética dizia ser, era supostamente uma União de países, era a URSS.

A Revolução Húngara de 1956, 3 anos depois da morte de Estaline, foi um golpe falhado. Muitos, como Agota, aproveitariam para fugir, porque como ela diz, a Hungria só viria a ser livre 33 anos depois.

E no entanto, ao ler as palavras de Agota, dou por mim a pensar em Portugal em 2019, e nas salas de cinema espalhadas pelas dezenas de shoppings nacionais, e em 99% dos ecrãs em que passam apenas filmes em inglês, professando, doutrinando tal qual Estaline fez, os hábitos e comportamentos dos portugueses com os valores dos EUA. E ligo o rádio, onde quem canta continua a fazê-lo em inglês, para depois ligar a televisão e abrir o Netflix, e continuar a ouvir inglês, e a ser invadido por problemas culturais que não são os meus, mas é como se fossem. E quando falo com as pessoas próximas, e recomendo um filme europeu, dizem-me, "não, obrigado, não gosto de ver cinema que não seja falado em inglês"! Agota passou a sua infância com uma fotografia a cores de Estaline no bolso, e nós?

Tudo isto acaba por dar ainda mais força à minha interpretação dos gémeos, na alegoria do primeiro livro de Agota, como potenciais faces de uma mesma moeda, o Comunismo e o Capitalismo.

"L'Analphabete" tem apenas 56 páginas. Começa assim:
“Je lis. C’est comme une maladie. Je lis tout ce qui me tombe sous la main, sous les yeux: journaux, livres d’école, affiches, bouts de papier trouvés dans la rue, recettes de cuisine, livres d’enfant. Tout ce qui est imprimé.
J’ai quatre ans.”
e termina assim:
“Je sais que je n’écrirai jamais le français comme l’écrivent les écrivains français de naissance, mais je l’écrirai comme je le peux, du mieux que je le peux.
Cette langue, je ne l’ai pas choisie. Elle m’a été imposée par le sort, par le hasard, par les circonstances.
Écrire en français, j’y suis obligée. C’est un défi.
Le défi d’une analphabète.”