Para mim, a premissa base de "Os Filhos do Bairro” assenta na explicação do mundo que temos como fruto do contar de histórias. A esta junta-se uma segunda, a mais debatida, da explicação do modo como surgiram as religiões e todo o seu impacto nos processo de civilização das sociedades. O registo escolhido é parabólico, num tom muito semelhante ao das “Mil e uma Noites” (800), mas poderíamos dizer também ao Velho e Novo Testamentos ou o Alcorão. A menção a estes últimos é intencional, já que a história que se conta tem por base as três religiões abraâmicas, ou monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Muitas das sínteses que se veem do livro falam sobre um conjunto de histórias, transparecendo quase a ideia de que se trata de um livro de contos, mas nada poderia ser mais errado. A estrutura apenas parece apresentar-se como um agregado de histórias, porque quando analisadas as suas relações, e compreendidos os seus objetivos e alcance damo-nos conta do facto de estarmos perante um romance não só completo, mas imensamente poderoso enquanto soma das partes. A estrutura é bastante distinta da matrioska das Mil e Uma Noites, porque funciona numa base de sucedâneo evolucionário, aparentemente natural mas com uns pós de sobrenatural, acabando por colocar em evidência, quase como representado sobre um tabuleiro de ideias, todas as perspectivas religiosas e pós-religiosas. Existe algo de teleológico no romance, mas ao mesmo tempo diria que mais do que explicar o fim, Mahfouz está focado no chegar ao como, e é esse que acaba tornando a estrutura do romance (o sucedâneo de mundos evolutivos), tão mais relevante, porque acaba enunciado em si mesma aquilo que nos conta.
Ou seja, Mahfouz usa o contar de histórias, os seus processos, para literalmente discutir o mundo em que vivemos e aquilo que somos enquanto sociedade e espécie. Podia ter-se socorrido do ensaio argumentativo, mas preferiu a narrativa com todo o seu fervilhar dramático. Na verdade, o que Mahfouz faz é pegar nas qualidades narrativas, aquelas que tendemos a usar mentalmente para compreender o mundo, para nos dar a ver como funciona esse mundo. Este modo é muito mais eficaz que o ensaístico, já que usa a forma mental como construímos conhecimento, como nos relacionamos com o mundo, que contém sempre um lado humano que o ensaio, pelo seu traço racionalista, tende a deixar de fora. Por outro lado, o uso das histórias é ainda mais vital quando o foco da explicação do mundo assenta numa análise dos livros de histórias de cada religião, as mais importantes para a civilização em análise, ao que Mahfouz não deixa de juntar o correspondente atual, o Humanismo, com a sua ausência de Deus.
Naguib Mahfouz
Não vou detalhar os personagens, quem representam em cada história, porque efetivamente representam personagens da mitologia que suportam a nossa civilização. Aliás, é por causa dessa representação tão clara que a obra foi banida no Egipto durante décadas, mas pior do que isso, Mahfouz sofreu uma tentativa de assassinato [2] em 1994, 35 anos depois do livro escrito, o que dá bem conta do quão perfurante o livro consegue ser em termos religiosos, mas vou mais longe, o que lhe aconteceu poderia ter sido mais uma das histórias contidas neste livro, o que torna todo o livro e o seu autor ainda mais coerentes e relevantes.
"Os Filhos do Bairro" é uma obra dotada de grande genialidade formal, que nos faz refletir em profundidade sobre a sociedade que temos, mas acima de tudo sobre aquilo que somos enquanto espécie. Não apresenta uma escrita muito elaborada, não sei o quanto se terá perdido na tradução, mas o cuidado estético e a mensagem poderosa fazem com que encaixe completamente no perfil do Nobel, ao lado de Saramago, Naipaul ou Marquez.
Nota: A Penguin criou todo um guia de questões [3] muito interessantes no apoio à leitura da obra de Mahfouz que pode servir clubes de leitura, assim como o uso das suas obras nas escolas.
Referências
[1] The Allegorical Significance of Naguib Mahfouz's, 1989
[2] From ‘Children of the Alley: The Story of the Forbidden Novel’, 2019
[3] “Children of the Alley Reader”’s Guide, Penguin
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