março 17, 2019

Leitura obrigatória: "Homem Invisível"

"Homem Invisível" (1952) de Ralph Ellison é um livro passível de infinitas interpretações que começam no título e nunca param de se nos oferecer à sua compreensão. Não é um livro de alegorias nem de filosofias, existe uma trama que nos agarra, é romance, são eventos que se sucedem numa história repleta de peripécias, que começam no sul quente dos EUA e desembocam na fervilhante Nova Iorque, mas não deixa de ser filosofia no seu estado bruto, aquilo que emerge do relatar do quotidiano, motivado pelo fulgor da profundidade e detalhe com que se preenche a explanação desse relato. Mesmo os momentos que fui considerando menos bons por alguma incoerência — diferença de tipos de discurso e alguns aparentes clichés narrativos — acabam no final fazendo sentido como um todo, evidenciando a narração adotada como inseparável da história e seus personagens.

Fotografia encenada com base no prólogo do livro "Invisible Man", criada por Jeff Wall, 2000, MoMA

Temos um personagem, negro, nos anos 1920/1930, nos EUA, de quem nunca sabemos o nome, que começamos por acompanhar num tradicional registo de romance de formação, mas que aos poucos vamos percebendo que de tradicional tem pouco. Inicialmente marcado por capítulos ou cenas da vida do personagem em crescimento, praticamente estanques, num tom diarista que choca com momentos de ação e espetacularidade, mas em que o espetáculo não é usado como fomento de heroísmo nem de anti-heroísmo, gerando verdadeiros anticlímaces, que no fundo acabam contribuindo para a o cerne do livro, a invisibilidade do personagem. A invisibilidade começa no interior do personagem, sendo o sentido mais imediato de leitura os efeitos que provoca no seu comportamento, mas que ao longo de todo o livro, e principalmente ao fechar do pano — a fuga e queda num buraco — acaba a refletir-nos a todos, àquilo que somos perante a sociedade.

"Compreender. Compreende? E bem pior do que isso. Os seus sentidos registam, mas o cérebro entra em curto-circuito. Nada tem significado. Ingere mas não consegue digerir. Já é... bem, Deus me valha! É só olhar para ele! Um zombi que caminha! Já aprendeu, não só a reprimir as emoções mas também a sua humanidade. É invisível, a encarnação viva do negativo, a realização perfeita dos seus anseios, senhor! O homem mecânico!"
Não raros momentos, pelo menos até meio, somos levados a pensar em autobiografia, memórias, mas com o desenrolar dos eventos vamos percebendo que essa é apenas uma secção do pano de fundo. Ellison deu várias entrevistas e escreveu, frisando que não se tratava de autobiografia, mas não era necessário, bastava desde logo atender às referências psicológicas e existenciais de Dostoiévski, góticas e fantásticas de Faulkner, ou alegóricas e pastorais de Twain. O registo move-se entre o realismo confessional, agravado pelo uso da primeira-pessoa, e a fantasia mitológica que roça o surrealismo, de onde originaram as minhas primeiras objeções, mas que no virar da última página, se percebe como sendo vitais para a total compreensão da dimensão da invisibilidade. É um livro que fala do humano em grande profundidade, para o que usa um tom descritivo do interior do personagem verdadeiramente perfurante. No entanto nada disso envolve grandes tiradas filosóficas, nem sequer grandes acontecimentos. Na banalidade do quotidiano o fantástico acontece, mas esse é-o apenas à superfície, já que rapidamente se converte em vulgaridade pela repetição entre passado, presente e potencial futuro.
"Ilusões que tinham acabado de ser varridas da minha cabeça: universitários que trabalhavam  para retomar os estudos no Sul; rapazes mais velhos, paladinos do progresso racial, cheios de planos utópicos para a construção de impérios comerciais negros; pastores cuja a única autoridade era a que conferiam a si próprios, sem igreja nem fiéis, sem pão nem vinho, corpo ou sangue; dirigentes comunitários sem seguidores; homens de sessenta anos ou mais, ainda presos aos sonhos pós-Guerra Civil, de liberdade dentro da segregação; seres patéticos que não possuíam nada, excepto sonhos de cavalheirismo, que tinham empregos insignificantes ou recebiam parcas pensões, todos fingindo estar envolvidos em empreendimentos mais vastos, embora obscuros, que influenciavam os comportamentos pseudo-aristocráticos de certos congressistas sulistas, diante dos quais se desfaziam em reverências e cumprimentos, como galos senis num quintal; multidão mais jovem pela qual sentia agora um desprezo apenas comparável ao que um sonhador desiludido sente por aqueles que ainda desconhecem que estão a sonhar" 
"Hoje em dia, o meu mundo é feito de infinitas possibilidades. Que frase! Ainda assim, é uma boa frase e uma boa atitude perante a vida; o ser humano não devia aceitar outra; isso, ao menos, aprendi debaixo da terra. Até que um grupo consiga colocar o mundo numa camisa de forças, essa definição é possível e viável."  
 Surpreende como um livro americano de 1952 consegue fazer-se valer de uma premissa tão contemporânea, e ao mesmo tempo adversa à própria cultura dos EUA, a arte de falhar. Num mundo e cultura tão direcionados ao sucesso só ganhar interessa, falhar nunca, criámos a vergonha e a desonra para quem falha, porque o falhanço é o símbolo da impossibilidade, incapacidade e da incompetência, espaço reservado a perdedores. Ora Ellison apresenta um personagem num romance de formação como homem novo e empoderado pela educação, mas que falha em toda a linha, sem contudo o apresentar como perdedor, já que é a partir desses falhanços na sua relação com o mundo, que ele cresce interiormente e aprende a conhecer-se. De certo modo, podemos aqui ler uma relação direta com as “Memórias do Subterrâneo” (1864) de Dostoiévski, no que toca à sua oposição ao mundo perfeito prometido pelo Comunismo através da apresentação de um mundo existencialista que pauta a condição daquilo que faz de nós seres-humanos.

Ralph Ellison [1913 — 1994]

É um romance magistral e, no entanto, é o primeiro do autor, mas se isso não for suficiente para nos impressionar, é também o único. Ralph Ellison publicou esta obra com 39 anos, depois de 7 anos completamente dedicados à sua escrita, e passaria os restantes 42 anos da sua vida a trabalhar no segundo romance que nunca publicaria, do qual nos deixaria mais de 2 mil páginas, de onde Charles R. Johnson acabaria por coligir 400 páginas e publicar o livro “Juneteenth”. Comparando com outros autores, não falando de torrenciais ou recordistas, é caso para nos interrogarmos porquê? Esta questão não se coloca apenas na literatura, surge em todas as áreas criativas, sendo a conclusão mais consensual: “que provavelmente o autor disse tudo o que tinha para dizer”. Aliás, voltando a Dostoiévski, as ideias dos seus cinco romances mais importantes — “Memórias do Subterrâneo”, “Crime e Castigo”, “O Idiota”, “Demónios”, “Os Irmãos Karamazov” — poderiam também talvez ter sido todas sintetizadas num único grande romance.

março 13, 2019

A Casa do Professor, de Willa Cather

"The Professor’s House" foi publicado em 1925, quando Willa Cather tinha acabado de passar os 50, idade relevante pela temática de fundo escolhido: a crise existencial de meia-idade. O livro, como indica o título, foca-se num professor universitário, no topo da carreira, resignado pela falta de objetivos, passando os seus dias a rememorar um passado que não volta. Não tem, nem de perto, a acuidade psicológica de "Stoner" (1965) de John Williams, mas o modo como Cather desenrola os personagens e as suas tramas, em tempos diferentes e provoca a intersecção entre mundos aparentemente desconexos, acaba gerando uma reflexão rica e imensamente desafiante.


O início da obra começa de um modo algo lento, com personagens pedantes, pouco atrativos, mas vai-se tornando familiar, até que na segunda parte muda completamente de registo. O segundo momento é preenchido por um texto que começou por ser um conto e Cather depois transformou neste livro. Quando descobri o processo de construção do livro, fiquei reticente quanto à sua leitura, já que me soava a aproveitamento e potencial extensão artificial do mesmo. Contudo o facto de se tratar de um campus novel, género que me interessa particularmente, acabou fazendo com que o lesse. E assim, iniciado esse segundo momento, senti inicialmente que não fazia qualquer sentido, que era um rasgo completamente ao lado. Mas o texto vai evoluindo, o personagem vai-se mostrando e dando, e vamos compreendendo o que está Cather a tentar fazer. No momento em que ligamos aquilo que parecem ser duas histórias diferentes, a leitura eleva-se, algo que é ainda mais enfatizado pela terceira parte, a final do livro.

Não vou detalhar nada do que acontece, menos ainda da experiência, já que os sentimentos proporcionados me tocaram de forma bastante pessoal e profunda, algo que não tenho interesse em discutir aqui de forma pública. Contudo, conto voltar ao livro num outro texto a propósito da comparação entre o sistema universitário em 1925 e hoje.

março 12, 2019

Leonardo

Walter Isaacson tem vindo a escrever biografias sobre vários criadores multidisciplinares, ou polímatas, — Benjamim Franklin (2003), Steve Jobs (2011) e Ada Lovelace (2014) — e alguns génios — Einstein (2009) e Alan Turing (2014) —, tendo a última, sobre Leonardo (2017), servido de síntese aos dois tipos de criadores, dadas as capacidades deste para abraçar múltiplas artes (desenho, pintura, escultura, música ou arquitetura) e múltiplas ciências (engenharia, geometria, cartografia, anatomia, biologia, astronomia, ou física), e em várias dessas ter aprofundado e conseguido revolucionar o conhecimento existente — técnicas de pintura (sfumato e luz), geometria (perspetiva e vistas de sólidos) e engenharia (sistemas e hidráulica). Pode-se até discutir o valor de algumas das suas revoluções, mas não se pode retirar o mérito e brilhantismo de cada uma dessas inovações, o que em síntese nos obriga a colocar Leonardo no topo dos criadores de conhecimento de toda a História.

Livro: Isaacson, W. (2017). Leonardo da Vinci. NY: Simon & Schuster

Por ter nascido como filho ilegítimo, Leonardo não teve acesso a uma educação formal, tendo-se iniciado como autodidata, o que aliado ao facto de ser esquerdino faria com que escrevesse da direita para a esquerda, em espelho (o que para algumas teorias da conspiração tinha como objetivo vedar o acesso ao seu trabalho). Só aos 14 anos foi iniciado na aprendizagem do desenho e pintura com Andrea del Verrocchio, tendo depois disso recorrido sempre a diferentes especialistas para aprofundar aquilo que desejava aprender de novo. Leonardo recusava o conhecimento presente nos livros, considerava que o conhecimento estava no mundo, e só se podia adquirir pela observação e experimentação desse mundo, era um empiricista.
“His quest for knowledge across all the disciplines of arts and sciences helped him see patterns. Occasionally this mode of thinking misled him, and it sometimes substituted for reaching more profound scientific theories. But this cross-disciplinary thinking and pattern-seeking was his hallmark as the quintessential Renaissance Man, and it made him a pioneer of scientific humanism.”
Esta sua abordagem à construção de conhecimento, e a imensidão de conhecimento desenvolvido, fazem deste seu empiricismo a sua principal genialidade, algo que só foi possível graças a um conjunto de características psicológicas que o sustentavam: a persistência, a resiliência, e uma curiosidade inumana. Leonardo não se interessava por tudo ao mesmo tempo, começava num tópico — perspetiva, sombras, movimento de água, circulação do sangue, etc. etc. — e investia todas as suas forças até esgotar o que podia apreender da realidade. Como exemplo, no campo da anatomia e fisiologia, dissecou dezenas de cadáveres, tendo chegado a abrir um porco em que o coração ainda batia, para estudar a movimentação do sangue, e assim perceber que o coração não era feito de 2, mas 4 ventrículos separados. O seu trabalho moveu-se sempre pela sede de saber, de conhecer, de descobrir o que não sabia e não lhe conseguiam dar respostas. Movia-se por via da observação ao que juntava o desenho não apenas para registar as observações, mas para compreender o real. Quando tentou responder ao problema matemático da quadratura do círculo, ainda tentou seguir pela via do cálculo, com a ajuda do matemático Luca Pacioli, mas incapaz da necessária abstração, acabaria por recorrer ao desenho para construir as suas respostas.

Sólidos geométricos desenhados por Leonardo Da Vinci para o livro "Divina Proportione" (1506) de Luca Pacioli.
“During this period of intense anatomical study, Leonardo made 240 drawings and wrote at least thirteen thousand words of text, illustrating and describing every bone, muscle group, and major organ in the human body for what would have been, if it had been published, his most historic scientific triumph. ”
“His studies at times became such a deluge of details that they reveal more about his passion than about water’s dynamics. He spent hours fixated on flowing water, sometimes observing it and at other times manipulating it to test out his theories. In one part of the Codex Leicester he crammed 730 conclusions about water onto eight pages, causing Martin Kemp to comment, “We may feel that the boundary between dedication and obsession has been overstepped.”
“He was mainly motivated by his own curiosity (..) He was more interested in pursuing knowledge than in publishing it. And even though he was collegial in his life and work, he made little effort to share his findings. (..) This is true for all of his studies, not just his work on anatomy. (..) when he died, Leonardo would leave -- only piles of unedited notebook pages and drawings. (..) Over the years, and even centuries, his discoveries had to be rediscovered by others.” 
"[Leonardo] began scientifically by arguing that the embryo does not breathe in the womb because it is surrounded by fluids. “If it breathed it would drown,” he explained, “and breathing is not necessary because it is nourished by the life and food of the mother.” Then he added some thoughts that the Church, which believed that individual human life begins at conception, would have considered heretical. The embryo is still as much a part of the mother as her hands and feet are. “One and the same soul governs these two bodies,” he added, “and one and the same soul nourishes both.”
Em termos artísticos Leonardo foi um de vários da Renascença italiana, pertencendo ao trio destacado — junto a Michelangelo e Raphael —, um destaque que não se deveu apenas ao seu trabalho, mas também ao trabalho de quem analisou e escreveu sobre ele, quem o enalteceu e legou conhecimento sobre as obras, não é por acaso que Isaacson cita abundantemente Vasari. A mestria dos artistas de Florença era grande, mas a criação de estrelas das artes, algo que nunca até então tinha existido, só foi possível graças a um trabalho elaborado de comunicação, e foi isso que Vasari fez ao escrever a primeira obra da História de Arte: “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (1550), com 650 páginas. Claro que a tudo isto se juntam as condições ótimas proporcionadas a estes artistas pela elite financeira de Florença, Veneza e França.

1) 1489 – 1490, "Dama com Arminho", óleo sobre madeira, 54 cm × 39 cm; 2) 1490 – 1496, "La Belle Ferronnière", óleo sobre madeira, 62 cm × 44 cm; 3) 1513 - 1516 "S. João Batista", óleo sobre madeira, 69 × 57 cm; 4) 1503 - 1517, "Mona Lisa", óleo sobre tela, 77 cm × 53 cm. O exemplo máximo da arte e ciência de Leonardo foi a Mona Lisa, que começou a ser desenhada em 1503, esteve na sua posse até à sua morte, tendo sido trabalhada sempre que descobria outras formas de pintar.

Estudo da luz e sombra de Leonardo

Mas para Leonardo a arte não era diferente de todos os seus restantes interesses. Claro que muitas das encomendas que foi tendo eram no campo da arte, mas nem sempre respondia aos pedidos, e menos ainda ao que se pedia. O facto de ter passado toda uma vida focado no desenho fez com que revolucionasse a pintura, não tanto pelo virtuosismo da repetição, mas pelos ganhos que o conhecimento adjacente (anatomia, fisiologia e geometria) lhe foi granjeando (ver imagem com evolução das expressões faciais). Assim como quis tanto descobrir o interior do coração de um porco, quis conhecer o poder do efeito da perspetiva, que também ganhou bastante com todo o estudo imensamente aprofundado que fez sobre a luz e sombra (ver “A Última Ceia”). Para mim, Leonardo não foi artista nem cientista, foi ambos, mas foi acima de tudo o primeiro Designer. Movia-se no sentido de compreender o real, esboçava esse real para compreender o seu funcionamento, chegar às suas qualidades intrínsecas, a partir do que depois projetava teorias e possibilidades, algumas mais sólidas, outras, pura fantasia especulativa.


O fresco "A Última Ceia" 1495–1498, acima recortado do seu ambiente, e abaixo visto do lugar imaginado por Leonardo, para se ter a noção completa da perspectiva atente-se no efeito de profundidade conferido à parede. 

O livro de Isaacson pode não ser o livro mais completo sobre Leonardo, mas isso nunca nenhum o será. Pode também não ser o mais imparcial, mas isso é difícil quando nos detemos a analisar alguém como Leonardo. Mas é uma excelente biografia por se concentrar nos elementos base da genialidade intelectual de Leonardo, e deixar de lado outros tantos aspetos que poderiam ser discutidos — a família, os lugares, os problemas com a homossexualidade —, que são claramente menores. Leonardo representa para a humanidade o apogeu da cognoscência, e por isso é como tal que interessa lê-lo e conhecê-lo, mais do que como ser-humano, pois era praticamente inumano.
“The sexual act of coitus and the body parts employed for it are so repulsive that, if it were not for the beauty of the faces and the adornment of the actors and the pent-up impulse, nature would lose the human species.” Leonardo Da Vinci
No próximo dia 2 de Maio de 1519,  a data da sua morte faz 500 anos, e no entanto não paramos de descobrir feitos e obras. Só neste mês de março já vão duas, o esboço da Mona Lisa nua e a única escultura sua sobrevivente, no qual se pode ver um cristo sorridente. Se existe personagem da história que pode servir-nos de inspiração, que pode ajudar-nos a lutar contra as nossas crises existenciais, é Leonardo.

"A Morte de Leonardo da Vinci" (1818) por Jean Auguste Dominique Ingres. Na tela podemos ver o rei de França, Francis I, recebendo o último sopro de Leonardo.

março 10, 2019

Balança de justiça moral da História

Tenho muitas dúvidas sobre o histerismo condenatório que decorre à volta do legado de Michael Jackson em virtude do documentário "Leaving Neverland" (2019). Estive a reunir um conjunto de nomes ao longo da história com rabos de palha, desde Caravaggio (assassinato) e Da Vinci (pedofilia), a Einstein e Pessoa (declarações racistas), ou Heidegger e Hamsun (defensores do nazismo), passando por Picasso ou James Brown (autoritários e violentos), para tecer um argumento geral, mas acabei por desistir da ideia.

"O Tempo protege a Verdade dos ataques da Inveja e Discórdia" (1642), Nicolas Poussin

Cada caso é um caso, e cada pessoa tem níveis de aceitação diferentes em função da especificidade do legado e daquilo de que é acusada. Não é possível criar uma regra fechada que sirva uma análise generalista, pela simples razão de que os atos se opõem, ou seja, temos por um lado pessoas que serviram a sociedade, contribuindo com um legado considerado imensamente rico e relevante, por outro, essas mesmas pessoas cometeram crimes contra valores relevantes dessa sociedade. No fundo, trata-se de colocar na balança da justiça moral da História e chegar a um número que penda para o lado positivo ou negativo, mas como facilmente se depreende, nada disto é passível de medição, acabando por cair no subjetivismo de cada um.

Na verdade, qualquer vida escrutinada ao detalhe — quanto mais impactante e famosa tiver sido, mais escrutinada é, indo da exposição pública de cartas a diários íntimos — não pode encontrar apenas perfeição. Por muito mau que nos soe, e até ofenda, podemos contentar-nos pensando que afinal não passaram de meros humanos, que santos e deuses existem apenas na nossa imaginação.

março 09, 2019

Efeitos visuais de drogas

Bryan Lewis Saunders (1969) é um artista americano, já com uma longa carreira em vários domínios — pintura, video, performance, poeta, etc. Descobri o seu trabalho através do documentário de David B. Parker, "Art of Darkness" (2014), tendo-me impressionado particularmente a sua obra "Under the Influence", que consiste num conjunto de auto-retratos criados sob a influência de múltiplas drogas. A curiosidade sobre os efeitos das drogas é natural, mas conhecê-los e compreendê-los é bastante difícil, não só pela dificuldade de aceder às substâncias, mas acima de tudo pelos riscos que implicam (Saunders sofreu vários problemas neurológicos, apesar de não irreparáveis, no processo). Os efeitos das drogas, tal como o de qualquer outra experiência humana, são altamente subjetivos, ainda assim este trabalho abre-nos uma pequena janela sobre alguns esses efeitos.

Lithium (ref), tratamento depressão. Sobredosagem: vertigens, alterações neurológicas.

Absolut Shatter (ref), +- cannabis concentrado. Efeitos: humor e euforia

Abilify (after 3 months usage 3x maximum dose) (Aripiprazole), Usado como antipsicótico. Efeitos sobredosagem: depressão

Aderall (Wikipedia), usado para ADHD. Efeitos - estimulante cognitivo e focagem.

Alcohol (ref.) Efeitos: sedação, amnesia, incontinência, etc.


Absinth (ref) inebriation. Efeitos: espécie de lucidez bêbada

Cocaine (ref.) Efeitos: perda de contacto com a realidade, felicidade intensa

LSD (ref.) Efeitos: estados mentais alterados

Haloperidol (ref). Usado para esquizofrenia. Efeitos: potencial repetição de movimentos, sedação

Opium (ref) - Efeitos: analgésico, desaceleração do processamento mental

Na página do Saunders é possível ver muitos mais auto-retratos realizados sob efeito de mais substâncias. Algo que salta à vista nestas imagens é claramente a influência cultural da droga em questão. Questiono, seriam as obras iguais se Saunders não soubesse que droga estava a tomar em cada momento? Muito provavelmente não, e isso diminui a objetividade destas janelas, ainda que possamos dizer que as pessoas que tomam drogas, tomam-nas na ânsia por determinados efeitos prescritos pela medicina ou cultura, e desse modo as suas experiências das mesmas nunca são desligadas dessas expetativas.

março 08, 2019

Multimodalidade e expressividade nos videojogos

Acaba de ser publicado na revista científica Observatório o artigo "Multimodality and Expressivity in Videogames" no qual abordo a multimodalidade e expressividade nos jogos digitais, sob a perspectiva da comunicação audiovisual, discutindo dimensões críticas em relação à alfabetização e experiência dos videojogos. Começo por apresentar uma visão geral sobre como criamos sentido a partir dos media audiovisuais, para depois enquadrar o foco na natureza cognitiva multimodal dos jogos digitais. Segue-se uma discussão sobre as razões que fazem com que os jogos digitais se tenham tornando mais relevantes do que o vídeo, discutindo as diferenças dos dois meios em termos de aprendizagem, nomeadamente na distinção entre as representações vicárias e enativas.


Ao longo da discussão, realizada no artigo, dou conta das novas possibilidades abertas pela multimedia e jogos digitais, tanto na integração de diferentes modos, como pela oferta de um novo modo, a interatividade, que, como argumentou Bruner, abre novos espaços de representação pela enatividade. Além disso, demonstro como os jogos aproveitam a motivação para extrair comportamentos ativos dos jogadores, ou seja, as ações solicitadas pelo design de jogo que garantem o engajamento e interesse em continuar a jogar para além das abordagens simplistas (estímulos extrínsecos).

Aceder ao artigo completo que se encontra em acesso aberto.

março 06, 2019

Uriel da Costa (1585-1640)

Uriel da Costa nasceu no Porto, em 1585, sob o nome Gabriel da Costa Fiuza, enquanto cristão-novo. Depois de anos de estudo, incluindo passagem pela Universidade de Coimbra, o desalento com a religião cristã faz com que se converta ao judaísmo e emigre para a Holanda. Se a religião cristã o tinha afastado, o judaísmo de pouco lhe iria valer. Uriel ficaria na história internacional pela luta que empreendeu contra o obscurantismo religioso, tanto cristão como judaico. Na Holanda o impacto com o seguidismo dos escritos enquanto verdade absoluta, faz com que inicie todo um processo de ataque ao status quo, tendo escrito dois livros sobre o tema — "Propostas contra a Tradição" (1616) e "Exame das Tradições Farisaicas" (1623) —, pelo que seria excomungado, e o seu segundo livro queimado publicamente, e condenado a pagar uma multa avultada. Anos depois de viver em isolamento, decidiu volver à congregação, não com verdadeira crença, mas pela insustentabilidade da sua situação. A sua readmissão foi realizada por meio de 39 vergastadas públicas e ainda pelo pisoteamento das pessoas da sinagoga portuguesa de Amsterdão. Tudo isto pode ler-se no seu testemunho final "Exemplar Humanae Vitae" (1640).

Desenho ficcionado de Uriel da Costa ensinando o jovem Espinosa. Espinosa tinha apenas 8 anos quando Uriel morreu, é provável que a revolução que provocou tenha tido influência no pensar Espinosa, de resto não se encontrou qualquer outra ligação entre ambos.
"Aqui tendes a história verídica da minha vida; pus-vos diante dos olhos o papel que representei neste vaníssimo teatro do mundo na minha vida tão vã e instável. Agora, filhos dos homens, julgai com justiça e, despidos de todo o afecto, com isenção, proferi a vossa sentença conformemente à verdade, que isto é, sobre tudo, digno de homens que são verdadeiros homens. E se alguma cousa encontrardes que vos force à compaixão, reconhecei e deplorai a desventurada condição humana, de que também vós participais. E para que nem esta circunstância fuja ao vosso conhecimento, ficai sabendo que o nome que eu tinha quando cristão em Portugal, era Gabriel da Costa; entre os judeus para o meio dos quais oxalá eu nunca tivera vindo, fui, com leve alteração, chamado Uriel." Último parágrafo de "Exemplar Humanae Vitae", na tradução do latim de A. Epiphanio da Silva Dias
Cerimónia de Inauguração da Grande Sinagoga Portuguesa em Amsterdão, Holanda, 2 de Agosto,  1675

O livro "Um Bicho da Terra" (1984), de Agustina Bessa-Luís, procura ser uma biografia romanceada da vida de Uriel da Costa, mas apresenta enorme densidade de factos, dando conta de maior preocupação em não se desviar da realidade, do que em dar a conhecer a pessoa por detrás do mito. Agustina realiza um trabalho agarrado à cronologia, esquecendo que as pessoas são feitas de ideias e não de espaços ou datas. Falta uma ideia ou núcleo de suporte à intenção do livro, o que faz com que o relato faça tudo parecer mero sucedâneo de eventos. O romancear não funciona não apenas pela torrente de factos, mas também porque Agustina está mais centrada no detalhar do contexto do que em dar vida às ações dos seus personagens, por outro lado a biografia perde-se porque o relato sofre do tom da inverosimilidade própria do romance.

O título da obra de Agustina é a tradução de um pseudónimo usado por Uriel, Adam Romez (bicho da terra).

Quanto à veracidade do que é dito, dizer que Agustina fez um grande trabalho de investigação, contudo esse trabalho acabou sendo ultrapassado pela investigação posterior. Desde logo a capa do livro e o texto, fazem referência à proximidade entre Uriel e Rembrandt, lançando da suposição de que a pessoa no quadro "Philosopher in Meditation" (1632) poderia ser Uriel. Ora os mais recentes estudos em volta do quadro dizem-nos que a pessoa nele não deverá ser sequer um filósofo, mas apenas um homem idoso sentado à janela, tanto que o título é hoje bastante contestado, não sendo sequer o original da obra.

A obra de Agustina não é a primeira sobre Uriel, nem a última, já que data de 2012 o livro "A Figura de Uriel da Costa na Obra de Karl Gutzkow" (632 pp.) de Rogério Paulo Madeira. No ano anterior, 1983, o académico francês Jean-Pierre Osier publicava "D'Uriel da Costa à Spinoza" (299 pp.), e bastante antes, em 1922, Carolina Michaëlis dedicava todo o estudo académico, "Uriel da Costa: notas relativas à sua vida e às suas obras" (180 pp.). Anteriormente a estes trabalhos académicos, podemos encontrar, em 1847, uma peça de teatro "Uriel Acosta: a tragedy in five acts" por Karl Gutzkow, e em 1880, uma ópera, "Uriel Akosta" de Valentina Serova.


Mais alguma informação online:
Ushi Derman, Uriel da Costa: the Story of a Nonbeliever, December 19, 2018
Arlindo Correia, Uriel da Costa, 12.9.2006
Wikipedia inglesa e portuguesa

Romance ou ensaio?

"Jerusalém" (2004), de Gonçalo M. Tavares, situa-se num espaço de ação restrito, delimitado por um círculo de personagens que se organizam numa estrutura detetivesca, baseada na formula de mistério (que oferece informação a conta-gotas, para nos agarrar pela ânsia por respostas a quem?, quando?, como? e porquê?), e fá-lo imensamente bem, já que se sente dificuldade em pousar o livro depois de o começar. A particularidade da obra decorre do modo como sobre esta narração tipo é injectado um conjunto de conceitos complexos — o mal, a racionalidade, a loucura e a religião — que nunca chegam propriamente a ser detalhados. O autor opta por trabalhar as ideias de modo simbólico por forma a alargar o seu significado, mas também para poder fugir ao registo de ensaio e manter-se na circunscrição do romance.


Assim, temos um livro com capacidade para chegar a um público alargado, já que a leitura é facilitada pela enorme capacidade de retenção da nossa atenção, embora muito desse público chegue ao final sem saber muito bem o que fazer com todas as respostas que entretanto o autor lhes parece oferecer. Primeiro porque as respostas são-no apenas no que à trama diz respeito, já o simbólico é deixado completamente em aberto, criando um conflito no leitor,  entre o recorte perfeito da trama e a indefinição do seu significado. Para quem ouse ler nesse simbolismo, encontrará as suas próprias respostas aos problemas enunciados, e é isso que o autor espera, quem não o ousar ficará à porta do livro.

Como em todo o artefacto simbólico, as leituras que se fazem do significado da obra dependem mais da experiência e mundo do leitor do que daquilo que o autor coloca no artefacto. As pistas espalhadas ao longo das 250 páginas levantam em nós associações de ideias, fazem-nos trabalhar para a compreensão do que estamos a ler. Cada personagem é uma peça do puzzle de Tavares, mas este nunca a coloca no seu lugar, cria-as e fá-las dançar na nossa frente, instiga-nos a colocá-las no tabuleiro por nós imaginado. Todas as peças estão interligadas, o que nos diz que fazem todas parte de um mesmo quadro, mas aquilo que as liga são meras ações de causa-efeito, o que importa é o que cada um representa nesse quadro — o médico visionário e o médico carrasco, a mulher louca e o amante louco, o filho que não é filho e o assassino. Todos são meros humanos, dotados de imperfeição, comportando significado, ainda que simbólico, sobre o modo como o mal acontece, de onde surge e como se sustenta.
“Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem saudável, e ele — como qualquer criança – procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação confunde-se com a sensação de roubo: alguém ou algo me levou uma parte — parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual — então o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, diz Theodor Busbeck de modo mais directo." in "Jerusalém", Gonçalo M. Tavares
No final, percebemos que é uma obra talhada em busca da perfeição, que tudo está como está, da primeira à última página, com um objetivo concreto. Nada é dito ao acaso, tudo é perfeitamente racionalizado, ainda que tudo pareça nascido da loucura (repare-se no discurso exacerbado pela repetição), e só esta dicotomia granjearia nota máxima. Mas na verdade o artefacto falha em elevar-se acima da aparência de perfeição, pela falta de robustez nos conceitos que defende, já que não são suficientemente aprofundados. Fica tudo demasiado à superfície, com as leituras a surgir completamente divergentes. É um livro de 250 páginas, mas com mais espaços em branco do que de texto, de modo que na verdade não chega a passar das 100 páginas. Os livros não se medem em número de palavras, mas os temas também não são todos iguais, e tratar assuntos desta complexidade em tão breves resenhas de ideias, serve apenas no abrir de portas. Como o livro faz parte uma série — "O Reino", composto de 4 livros incluindo este — é provável que a leitura da série completa dê acesso a algo que só este livro não consegue dar. Vi entretanto que os 4 livros que compõem a série O Reino — "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser", "Jerusalém", "Aprender a Rezar na Era da Técnica" — foram editados, em 2017, num único livro (800 pp.), o que deverá fazer pleno sentido.

março 05, 2019

A literatura como paliativo

"When Breath Becomes Air" é um livro de memórias de Paul Kalanithi, a quem com 36 anos, no final de uma residência médica de 6 anos como neurocirurgião e prestes a conseguir o seu diploma, foi diagnosticado um cancro nível IV (inoperável) nos pulmões (sem nunca ter fumado). Ao longo das parcas 220 páginas (morreu antes de o poder terminar), que se lêem de uma vez, somos conduzidos pelo relato das opções e decisões tomadas ao longo de uma vida que permitiram a Paul Kalanithi chegar ao final da sua formação médica e escrever um livro pleno de expressividade. O seu livro tem servido de inspiração um pouco por todo o mundo — de Bill Gates a Andrew Solomon ou Atul Gawande —, tendo o Departamento de Medicina da Universidade de Stanford, onde se formou, criado mesmo, um ano depois da sua morte, o Prémio Kalanithi Writing para obras sobre pacientes em fim de vida ou cuidados paliativos.


Da minha intensa experiência de leitura, comparei-a com o relato da "The Last Lecture" de Randy Pausch (1960 - 2008), professor e investigador — de Entretenimento Digital na Carnegie Mellon — morto de cancro no pâncreas. Se Pausch me tinha tocado imenso, foi muito provavelmente catalisado por ser uma pessoa no meu campo científico, alguém que admirava, seguia e lia o seu trabalho de forma regular, contudo desta vez o embate parecia-me ser maior. No entanto, se tenho estudado imenso o que se vai fazendo no campo das neurociências, nem por isso tenho qualquer familiaridade com a neurocirugia. Por outro lado, este relato de Kalanithi fez-me recordar ainda um outro, não de fim de vida, ainda que também de memórias mas de alguém no ativo, "Sinto Muito" de Nuno Lobo Antunes, sobre a ala neuropedriátrica e os efeitos dos tratamentos oncológicos em tenras idades.

A edição portuguesa foi editada pela Saída de Emergência sob o título "Antes de Eu Partir"

Pensei assim que a intensidade da experiência se devia ao fator cérebro, aliás como diz a certa altura Paul Kalanithi, "a medicina relacionada com o cérebro comporta algo de esotérico que nos atrai e terrifica". Mas agora que escrevo estas linhas percebo que não foi só pela área de trabalho, foi claramente pelo modo como Kalanithi se expôs, e acima de tudo conseguiu exteriorizar e plasmar na escrita a sua percepção do mundo. Ora a isto não é alheio à formação de Kalanithi, que antes de estudar medicina fez licenciatura e mestrado em Literatura Inglesa, ao que se seguiu um mestrado em Biologia Humana ainda em Stanford, e depois um outro mestrado em História da Ciência e Medicina na Universidade de Cambridge. Foi apenas no final dos estudos em Cambridge que Kalanithi decidiu que queria ser médico, e para isso teve de voltar ao início, fazer provas e conseguir entrar em Medicina em Yale. Até esta altura Kalanithi acalentava a ideia de poder vir a tornar-se escritor.

Aliás, o autor fala do momento em que desistiu da literatura para abraçar a medicina, como um momento de viragem, em que bateu na parede pelo lado das letras. A sua ânsia era compreender o ser humano, e vinha acreditando que lá poderia chegar pela literatura, mas entretanto percebeu que em vez de se aproximar se estava a distanciar cada vez mais da vida efetiva. Por isso decidiu enveredar por um caminho que lhe permitisse "tocar na carne", assistir à vida de modo empírico. Por sua vez, já no final, quando decide escrever este livro, é exatamente por sentir o contrário. Por sentir, que a única forma de chegar ao que sentia dentro de si era por via da escrita, não tinha outra forma de conseguir compreender o que sentia. Talvez por isso mesmo o livro seja tão intenso, porque ele é uma busca pessoal por respostas para uma vida, tentativa de explicação de um momento, ainda que possa depois ter ficado como legado.

Nada disto é novo, a literatura, tal como as restantes artes servem-nos há milénios na compreensão do humano. Se a ciência nos ajuda a compreender os processos e os como, só a arte nos consegue explicar os porquê. Damásio dizia em 2017: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"; e enquanto muitos se admiram com estas palavras, o belíssimo livro de Jonah Lehrer, "Proust era um Neurocientista", data já de 2007. Mas esta discussão não tem qualquer sentido de novidade, já que ela esteve presente desde o início da nossa civilização, com Platão a divergir de Aristóteles na importância que se deve conferir as artes.

Para fechar. Este foi um dos últimos 'memoirs' que li, um género que antigamente desconhecia por o associar à mera biografia, mas que aprendi a amar por via da banda desenhada. Existe algo de muito particular nestes livros, não apenas em fim de vida, mas no simples facto de se apresentarem em primeira pessoa, mais ainda quando as pessoas possuem as ferramentas adequadas para a escrita. As descrições, quando conseguidas, do pensar interior são autêntica telepatia, como disse o próprio Stephen King no seu memoir. E nesse sentido, julgo que estas obras acabam funcionando como o píncaro do objetivo e razão porque inventámos a linguagem e a escrita.