Há bastante tempo que desejava ler algo sobre a guerra civil na Síria. Ao longo da última década vimos refugiados chegarem à Europa, alguns deles por meios de grande perigosidade — atravessando o Mediterrâneo em barcas de madeira —, daí a curiosidade natural de saber como se chega a este estado — o de colocar em perigo a vida dos próprios filhos. Passados 10 anos sobre a guerra, a escolha de obras é grande, desde trabalhos académicos de fundo que explicam o conflito desde a génese do próprio país, a romances históricos a puxar à lágrima, existe de tudo um pouco. A obra de Wendy Pearlman, “We Crossed a Bridge and It Trembled: Voices from Syria” (2017), surgiu-me em várias listas na rede, tendo folheado várias, senti que era por aqui que queria aproximar-me do conflito. Contudo, se estranhei a falta de traduções, está apenas editada em inglês e turco, mais ainda me incomodou quando acabei de ler, dado o relevo da experiência sentida em toda a sua leitura. Pearlman criou uma obra intemporal, que não fala apenas da Síria, mas do ser humano, da sua fragilidade e relação com o território, por meio da experiência direta de quem viveu naquele lugar, em cada um dos momentos relatados. Nesse sentido, é uma obra obrigatória para quem quer perceber melhor o que aconteceu na Síria, mas também para quem desejar entrar um pouco mais adentro nas complexidades da relação entre a vivência e violência humanas e a construção civilizacional.
O livro de Pearlman segue um modelo hoje conhecido como o modelo de Svetlana Alexievich, por ter recebido o nobel em 2015, que assenta na construção de obras escritas a partir de relatos e testemunhos diretos de pessoas, as chamadas “vozes”. Pearlman é uma professora americana, com mais de 20 anos de trabalho em política do Médio Oriente, especialmente os seus movimentos sociais, refugiados e migrações. Este livro poderia ser fruto de um projeto de investigação, a recolha de testemunhos para análise posterior qualitativa da situação das pessoas que fugiram do país. Mas Pearlman optou por construir um livro para o grande público, seguindo a ideia das vozes, e assim a partir de centenas de relatos que conseguiu obter a partir de pessoas espalhadas pelo globo, construiu uma teia evolutiva dos factos da guerra. Cada capítulo representa um momento histórico da guerra, tendo nós como referência essencial os estados emocionais e visões da realidade oferecidas pelas pessoas entrevistadas. O modo como Pearlman desenhou a progressão do contar dos eventos ajuda numa primeira parte a compreender alguns porquês, depois progride para a discussão cada vez mais detalhada do campo de batalha no país, iniciando depois num crescendo o contar das fugas. Deste modo, Pearlman consegue produzir em nós um impacto emocional que vai aumentando com os relatos, cada vez mais brutais e desesperados, e nos obrigam a repensar não apenas o que se passou, e ainda passa, na Síria, mas no mundo em que vivemos.
Julgo que aquilo a que acedemos por meio destas “vozes” não seria possível aceder de mais forma nenhuma. Mesmo no jogo de 2017, "Bury my Love", em que somos colocados na pele de um refugiado sírio que tenta chegar à Europa, e que gera forte empatia, não se consegue chegar nem perto da emocionalidade destas vozes. Já o tinha sentido com Svetlana, mas aqui voltou a repetir-se a ideia de que o sentir da experiência interior é algo que pode apenas ser relatado na primeira-pessoa, tudo o resto é já mera interpretação, acesso em segunda-mão. Não quero dizer com isto que temos maior acesso à verdade, por aí julgo que temos até um acesso menor, já que inevitavelmente o relatos estão condicionados pela visão pessoal e subjetiva de cada voz. Mas em termos da experiência efetiva, da vivência sentida, estes relatos são insubstituíveis. E se aqui nos dão acesso ao mais desumano que podemos imaginar, incluindo mesmo aquilo que conhecemos hoje sobre os campos de concentração da Segunda Grande Guerra, a forma como tudo se estrutura e constrói produz em nós uma experiência quase-direta, ganhando enorme intensidade, tornando o objeto de relato, pela sua acuidade, belo. Estas pessoas dão-nos a ver o pior daquilo que somos capazes, e por meio delas e do trabalho de Pearlman, conseguimos ir além na compreensão do ser-humano e da nossa presença neste planeta.
Enquanto lia, acabei pensando muito na geografia da Síria, comparando a mesma com Portugal, pensando nas fronteiras da Síria — Israel, Líbano, Iraque, Turquia e Jordânia — e na pouca paz que conheceu aquele território ao longo dos últimos milénios. Ao contrário, Portugal tem apenas fronteira com Espanha, do lado do oceano, é tudo tão distante e de difícil acesso, que pouca interação por ali surge. Deste modo, não será por mero acaso toda a paz que conhecemos por aqui ao longo dos últimos mil anos.
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