junho 07, 2021

Chernobyl, ficção histórica como documentário

Não tinha intenção de ver a série "Chernobyl" (2019), apesar do seu estrondoso sucesso, muito por ter já lido "Vozes de Chernobyl" da nobel Svetlana Alexievich que ficou para mim como obra seminal sobre o tema. A terminar os 5 episódios percebi o seu sucesso, que se deve ao drama já apresentado por Alexievich, agora aqui transposto, ainda que por muito violento que pareça a quem apenas viu a série, me pareceu bastante contido face ao que tinha lido. Mas, considero que a série não se limita ao livro, e consegue produzir o seu valor particular, nomeadamente na segunda metade. Falo de toda a discussão em redor da ciência e a desconstrução do que efetivamente aconteceu na sala de controlo e que permitiu a explosão do reator.

São 5 episódios, mas é no fundo um longo filme, sem excessos nem preenchimento, um filme ficcional tornado documento vivo, que faz dele um legado de enorme importância para quem hoje já desconhece o poder do nuclear.

Nota final, nomeadamente por comparação com a série alemã "Dark" que vi imediatamente antes, repare-se como toda a série se limita a rodar sobre 3 personagens apenas, fazendo desses os Heróis, Salvadores, figuras de Culto. O guionista é americano e a série é uma co-produção EUA-UK. Quando vi o grupo formar-se —Legasov (Jared Harris), Shcherbina (Stellan Skarsgård) e Khomyuk (Emily Watson) — pensei: "não pode ser, estes russos são loucos, um problema desta complexidade nas mãos de apenas 3 pessoas". Contudo, no final da série, nos créditos, lá surge a explicação de que Khomyuk não existiu e foi usada como personagem composta em representação de quase uma centena de cientistas e especialistas russos. Claro que dá bastante jeito a quem conta uma história, esta sintetização em poucos personagens, mas na verdade dá jeito porque quem conta aqui a história está formatado para o registo do espetáculo, para o que precisa do efeito de sobre-humano. No final da série, é impossível não pensar em Legasov como um herói mundial, contudo ele nada fez sozinho, nem sequer a libertação das suas cassetes após o suicídio aconteceram apenas por via das suas mãos. Mas para uma lógica de espetáculo, era fundamental ter heróis, alguém acima de toda e qualquer moral e capaz de algo que nenhum de nós conseguiria.

Funciona bem, para um enredo de base americana, ter uma catástrofe de uma complexidade inaudita a ser resolvida por apenas 2 homens. Mas é puro espetáculo, sem qualquer sustentabilidade realista.

Por muito, de mal, que tenha a dizer sobre o comunismo e a União Soviética, tenho-o aqui dito inúmeras vezes, não posso deixar de sublinhar esta obsessão capitalista com o endeusamento de punhados de humanos. Em certa medida, isto tudo não passa de uma obsessão ancestral, que remonta ao paganismo, com a diferença de que agora passámos a endeusar humanos. Mas dá conta de um retrocesso, ou talvez não. Podemos pensar isto como uma forma de estar americana, uma sociedade que surgiu muito rapidamente e se tornou império sem o devido tempo para criar corolários morais. Porque isto não acontece apenas no cinema ou literatura, isto é parte do espírito de base americano. Repare-se no modo como a Ciência passou a funcionar, imbuída desta forma de estar americana que opta por endeusar certos indivíduos, esquecendo totalmente o modo como a ciência acontece, a partir de milhares de pessoas e séculos de desenvolvimentos. Hoje apenas interessam os indivíduos que apresentam nos seus pergaminhos centenas de publicações, projetos de milhões de investimento, todos os restantes são vistos como gente irrelevante. E por isso, infelizmente mas inevitavelmente temos de aceitar os ataques que se vão fazendo ao humanismo, de que ao centrar-se exclusivamente no humano esquecemos que o cosmos não se faz à nossa imagem.

3 comentários:

  1. Excelente, como sempre. Subscrevo tudo o que escreveste.
    Adorei isto que resume, basicamente, toda a ambição norte-americana: "Funciona bem, para um enredo de base americana, ter uma catástrofe de uma complexidade inaudita a ser resolvida por apenas 2 homens. Mas é puro espetáculo, sem qualquer sustentabilidade realista."

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    1. Obrigado Raquel.

      Quanto mais tempo passo a pensar na série mais me incomoda, porque vou alargando a análise a muitos outros produtos culturais americanos que se tornaram a norma moral do mundo em que vivemos e que nos condicionam sem nos apercebermos do que nos está a acontecer...

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  2. Exactamente. Ontem ouvia um podcast com o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu (radicais livres) onde falavam exactamente deste cânone norte-americano que se alastrou pelo mundo. Das opiniões políticas aos contraplacados comestíveis, a influência dos EUA é imensa. Parece que ganharam um estatuto especial que legitima cada opinião, cada série, cada conflito. Não é de repente tornarmo-nos contra esta influência, até porque também há muitas coisas positivas, é só perceber que não se pode credibilizar tudo o que produzem. Tornaram-se o novo «papado» com as suas referências, decretos e sentenças. Não pode ser. Por isso, por exemplo, o encanto do cinema europeu: há mais autenticidade e nem tudo acaba resolvido pelo Tom Hanks ahahaha :)

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