maio 15, 2022

“Vladimir” (2022) de Julia May Jonas

“Vladimir” (2022) faz parecer que Philip Roth voltou para escrever sobre os efeitos do MeToo na academia e na arte, mas agora como mulher. Esta primeira obra de Julia May Jonas é irrepreensível na escrita, estrutura e erudição. Sob uma capa de aparente simplicidade narrativa — evocando "Misery" de King, "Rebecca" de Du Maurier e "Lolita" de Nabokov (autor que inevitavelmente se liga ao título) — Jonas vai lançando todo um questionamento avassalador sobre aquilo que somos em cada momento. Motivada pelos ataques institucionais do MeToo, Jonas coloca-nos na pele de uma professora universitária de 58 anos, muito certa do seu lugar, mas com fortes assaltos de dúvida sobre esse lugar. Entre a identidade que arquitetou com base no mundo para o qual erigiu as suas defesas, e o novo mundo que coloca em causa a existência dessas mesmas defesas, acaba colocando em causa a sua própria pessoa. Mas tudo isto é trabalhado num tom de comédia-negra, com a leveza entremeada por rasgos de incisiva análise do que fazemos e porque fazemos. É um ‘campus novel’ totalmente atual, capaz de ir além da crítica interna da academia, colocando o dedo no embate do MeToo com o Status Quo, não em defesa, nem contra, mas sim como provocação a ambos os lados.
"'Vladimir' contains far too many uncomfortable truths to be merely fun, but — especially for those of us with feet in the worlds of academia and literature — it remains, by turns, cathartic, devious and terrifically entertaining." Jean Hanff Korelitz, in New York Times

maio 12, 2022

O Instinto Humano

Miller passou as últimas décadas a defender a ciência por detrás da teoria da evolução em tribunais, apresentando argumentação contra os movimentos de criacionistas e defensores do design inteligente. Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a evolução, nomeadamente fique reticente quando ouve que “tudo não passa de uma teoria”, Miller faz aqui um bom trabalho de desmistificação, apresentando evidências, ao nível do DNA, do processo evolutivo da vida na Terra. Mas Miller não escreveu “The Human Instinct”(2018) para explicar o suporte existente à teoria de Darwin, o seu objetivo é bastante mais vasto. A questão central aqui é a de saber se o evolucionismo por ter morto Deus, como disse Nietzsche, nos deixou realmente órfãos e entregues ao niilismo, ou se podemos encontrar no próprio processo evolucionário algo mais.

maio 08, 2022

O Massacre de Nanquim

Não tivesse Iris Chang cometido suicídio em 2004, provavelmente não teria lido o seu livro “The Rape of Nanking” (1997). Chang foi fortemente atacada pelo Japão na forma da sua desacreditação, mas não parece ter sido esse o único motivo do seu fim. Quando morreu estava a trabalhar o tema da “Marcha da Morte de Bataan”, mais um crime de guerra japonês pouco conhecido. A leitura de “The Rape of Nanking” foi uma das minhas mais violentas experiências de leitura de sempre, por duas vezes senti o vómito subir-me à garganta. No final do livro, percebe-se que muitos dos que sobreviveram àquele inferno pereceram precocemente pouco depois. Isto fez-me sentir que talvez a nossa capacidade cognitivo-emocional não esteja preparada para tamanha dissonância. Levar uma vida normal de empatia humana enquanto se convive interiormente com horrores deste calibre.

Estátua de Iris Chang no Memorial das Vítimas. Nanquim, China

maio 01, 2022

Como Compreendemos o que Lemos

Daniel T. Willingham é um professor e investigador da psicologia que se dedica ao estudo dos aspetos cognitivos da aprendizagem, de quem recomendo vivamente a leitura do anterior "Why Don't Students Like School?: A Cognitive Scientist Answers Questions About How the Mind Works and What It Means for the Classroom" (2009). Neste livro, "The Reading Mind: A Cognitive Approach to Understanding How the Mind Reads" (2017), aprofunda exclusivamente o processo de leitura enquanto processo cognitivo para nos dar a compreender como lemos, desde o momento em que interpretamos as letras até ao momento em que criamos sentido de um texto que lemos. 

"Stop for a moment and wonder: what's happening in your brain right now—as you read this paragraph? How much do you know about the innumerable and amazing connections that your mind is making as you, in a flash, make sense of this request? Why does it matter?"

abril 30, 2022

O humano Aristóteles

A partir de um apurado levantamento histórico Annabel Lyon especula sobre os três anos em que Aristóteles foi professor de Alexandre o Grande. Aristóteles tinha cerca de 40 anos e Alexandre 13. Mas não se espere um mundo perfeitamente delineado e amigável. Lyon construiu um texto minimalista, oferecendo muito poucas referências, raramente enquadrando os episódios supostamente mais conhecidos das vidas de ambos, ao mesmo tempo que constrói as cenas num modo abstrato, situa-as ligeiramente no espaço e tempo, mas apenas por forma a lançar o leitor numa mais profusa especulação sobre o que e como terá acontecido. Esta abordagem torna o texto em si distante e pouco envolvente, já que procura estimular o efeito dramático no leitor que para o efeito tem de recorrer à História. Por outro lado, Lyon apresenta um mundo de comportamentos com dois mil anos, distantes, mas também feitos de carne, de desejos e ódios, o que não raras vezes nos faz bater de frente com imaginários de uma suposta elevação da Grécia Antiga.

abril 24, 2022

O último abraço

"Mama's Last Hug" (2018) é uma defesa, apoiada por décadas de ciência empírica, da existência efectiva de emoções nos animais não-humanos. Contudo, como livro, não vai além de uma conversa ligeira sobre o assunto, serve mais quem apenas quiser introduzir-se ao tema. O título do livro surgiu a De Wall pela visita realizada pelo professor Jan van Hooff à chimpanzé Mama, quando esta estava às portas da morte, originando um reencontro intensamente emocional, um momento mágico e profundamente humano entre seres de duas espécies.


"Jan van Hooff visits chimpanzee Mama" (YouTube)

abril 16, 2022

"The Mauritanian" (2021)

"The Mauritanian" (2021) de Kevin Macdonald, conta-nos a história de Mohamedou Ould Slahi que foi torturado e detido sem qualquer acusação em Guantánamo durante 14 anos. A história segue o livro "Guantánamo Diary" (2015) escrito pelo próprio Mohamedou Ould Slahi, e conta com a excelente performance de Tahar Rahim e ainda Jodie Foster.

O filme é uma chapada brutal na administração americana e na sua atitude sobranceira de polícia da democracia no mundo que constantemente demanda o "olha para o que eu digo e não para o que eu faço". Considerando o que foi feito, não só para com os prisioneiros, mas para com os próprios cidadãos americanos que tentaram por cobro à situação, podemos ver muitas semelhanças com aquilo que a Rússia está a fazer neste momento. Como se a guerra fosse sinónimo de carta branca, e as convenções que se assinam servissem apenas quando nos dão jeito.

O trabalho de Kevin Macdonald é sério, contido em termos emocionais. Existe um claro esforço no tratamento do caso para garantir a sua exposição que mesmo quando recorre a algumas sequências mais fortes e a cinematografia e montagem agressivas, nunca se deixa toldar por uma ideia de revanchismo ou acusação gratuita às autoridades, chegando mesmo a servir-se do anti-climax para passar as ideias da forma mais depurada possível.

No final, as imagens do verdadeiro Mohamedou Ould Slahi ajudam a compreender melhor quem ele é, e as particularidades da sua personalidade que tão bem Tahar Rahim emula no filme.

abril 15, 2022

Dinamarca na 2ª GG

"The Shadow in My Eye" (2021) de Ole Bornedal é um filme dinamarquês sobre a segunda guerra mundial que dá conta de mais um episódio pouco conhecido desta guerra. Da Dinamarca também, tinha visto "Land of Mine" (2015) de Martin Zandvliet, no qual se dá conta de uma costa oeste da Dinamarca pejada de minas. Para as retirar, foram trazidos milhares de soldados adolescentes alemães, que foram treinados e tratados de forma sub-humana, tendo metade sucumbido nas praias da Dinamarca.

"The Shadow in My Eye" (2021) e "Land of Mine" (2015)

Agora Bornedal traz-nos uma missão da Força Aérea Real Britânica, a 21 de Março de 1945, em que era suposto bombardear o quartel-general da Gestapo em Copenhaga, contudo a incursão acabou por se deturpar num acidente que conduziu ao bombardeamento de uma escola, matando mais de 120 pessoas, entre quais 86 eram crianças.

Zandvliet apresentava uma direção soberba, com um conjunto de atores quase desconhecidos a corresponder de forma intensa, passando agora a impressão de que Bornedal adocica um pouco o mundo representado. Ou talvez o facto de se tratarem de crianças completamente inocentes motive a criação de uma experiência menos crua e mais onírica. Por outro lado, o facto de ter visto o filme com Guerra da Ucrânia em pano fundo acabou por gerar em mim uma muito maior visceralidade.

Desconhecia ambos os episódios, baseados em factos reais, o que demonstra o quanto continuamos a desconhecer sobre muito do que aconteceu pela Europa fora ao longo dos 5 anos de guerra. E por isso mesmo, devemos obrigar-nos a refletir sobre tudo que está em jogo na Ucrânia, nomeadamente sobre tudo o que temos de fazer para que seja impossível uma nova guerra voltar a alastrar por todo o continente.

Subtextos de um Príncipe

Os livros de Iris Murdoch não se podem ler apenas enquanto histórias, a sua faceta filosófica está sempre presente no subtexto requerendo que nos debrucemos sobre as motivações do tema, buscando chegar ao que terá conduzido o pensar no engendrar do mundo ficcional e das ações dos personagens. No caso de “O Príncipe Negro” (1973), temos à superfície uma tragédia, um escritor de 58 anos divorciado que se apaixona pela filha de 20 anos de um casal que é constituído pelos seus dois melhores amigos de sempre, e acaba a desencadear reações trágicas e irreversíveis. Se a intriga mantém o nosso envolvimento até ao final e com boa intensidade emocional, aí chegados parece tudo saber apenas a “mais uma tragédia de amores”. Mas se refletirmos no sentido ético da filosofia de Murdoch (Duringer, 2022), podemos ver mais, podemos ver como todo o texto é um labor de dissecação do comportamento humano, numa tentativa de oferecer à compreensão aquilo que o nosso preconceito tende a impedir-nos de abarcar, sem recorrer a embelezamento nem persuasão. O personagem é apresentado na sua plenitude, com toda a carga negativa, reforçando mesmo a nosso recusa, contudo essa apresentação obriga-nos a repensar, a procurar compreender.