dezembro 25, 2021

Milkman (2018)

"Milkman" é brilhante, mas não se oferece a todos do mesmo modo. Facilmente podemos encontrar quem deteste, como acontece com o crítico do NYT, ou quem adore e lhe ofereça o Booker 2018. Na generalidade fala-se de um livro de difícil leitura, mas ser um livro que exige uma leitura mais lenta e atenta não tem nada que ver com ser difícil. Mais, comparando com outros fluxos de consciência, Joyce ou Woolf, é imensamente acessível, muito mais na linha de um bem-humorado Tristram Shandy. Mas se a escrita impressiona, é o ponto-de-vista interior, como se estivéssemos literalmente dentro da cabeça de uma adolescente de 18 anos que enfrenta um mundo feito de conflitos numa Irlanda nos anos 1970, que acaba a marcar-nos.

O Regresso de Júlia Mann a Paraty (2021)

Foi o primeiro livro que li de Teolinda Gersão e fiquei imensamente agradado pela competência da sua escrita. Elaborada, descritiva mas imaginativa. Quanto a este livro em concreto, não é um livro, mas um conto que foi expandido por via de duas cartas que o precedem e ajudam a introduzir e caracterizar o universo do conto. Quanto ao conto, é belo, apesar da sua tendência excessivamente descritiva, os laivos de realismo mágico elevam o historicismo biográfico a novela e criam uma experiência que termina com intensidade psicológica.

dezembro 24, 2021

Imperium de Robert Harris

“Imperium” (2006) é uma obra de ficção histórica com capacidade para nos envolver nas tramas da época, entretendo-nos enquanto vamos aprendendo sobre a época, neste caso o século I a.C. na Roma Antiga. Robert Harris escolheu como personagem principal Marco Túlio Cícero, o grande orador, mas principalmente o senador romano que mais escritos nos deixou e que perduraram até aos nossos dias. São esses escritos que permitem aos historiadores ter um acesso privilegiado a uma época já com 2000 anos, assim como aos romancistas aceder a matéria direta para o seu trabalho de recriação. Harris nada arrisca na forma, limita-se a descrever a ação, situando no espaço-tempo e gerindo conflitos conhecidos da história, criando suspense que nos faz virar páginas, que nos levam a descobrir os porquês, usando alguns comportamentos sociais como adereços, mas deixando praticamente de fora os mundos interiores de cada personagem.

Efeitos positivos da Disney na percepção das crianças do género e corpo

Num estudo longitudinal (Coyne et al, 2021), feito ao longo de 5 anos, com crianças (meninas e meninos) em idade pré-escolar, verificou-se que as crianças que mais se envolviam com a cultura das princesas Disney (Cinderela, Bela Adormecida ou Branca de Neve) demonstravam, passados 5 anos: atitudes mais igualitárias sobre os papéis de género; menor adesão a normas hiper-masculinas; e melhor estima corporal. Ao contrário da mera interpretação estética, ou seja, feita analisando as obras a partir do olhar do investigador, e que se tornam populares por darem conta de desvios comportamentais anti-progressismo, estes estudos estão focados nas crianças, mas não apenas num dado momento, analisam os impactos efetivos no crescimento à passagem do tempo, nomeadamente na passagem de criança a pré-adolescente.

dezembro 18, 2021

Viajar no tempo para salvar Sócrates

A premissa era super-interessante — viajar no tempo para evitar a morte de Sócrates — mas a execução acabou ficando abaixo das expectativas. Esperava mais discussão filosófica, apesar de ter lido que para alguns tem demais. Esperava uma explicação mais forte para alguém se lançar na senda de fazer Sócrates mudar de ideias. Esperava congruência narrativa, apesar dos necessários saltos temporais das viagens no tempo. Mas talvez o maior problema tenha acontecido com o facto de pela primeira vez ter sido incapaz de suspender a minha descrença quanto às viagens no tempo. Passei grande parte do livro a teorizar sobre a razão porque não é possível, muito influenciado pela teorização sobre o tempo de Carlo Rovelli.

dezembro 11, 2021

Ruído no processo de decisão

Daniel Kahneman tem 87 anos, e o seu leegado está construído, tendo-lhe sido reconhecido o mesmo com o Nobel pela criação de uma área inteira: a economia comportamental. Neste livro, Kahneman apresenta-se com outros dois autores, Olivier Sibony quase desconhecido, e Cass R. Sunstein, reconhecido pela sua hiperatividade, com mais de 30 livros publicados, só em 2021 já vai com 3, mas também conhecido pela sua crença numa sociedade governada por algoritmos. Os autores dedicam-se à apresentação de uma nova variável de viés, ou melhor, uma nova designação para uma especificidade de viés, o ruído. Para os autores o "ruído é a variabilidade indesejável de juízos". Ou seja, é a variabilidade que acontece numa mesma decisão quando tomada por pessoas diferentes. O clássico exemplo é o dos juízes que podem atribuir uma sentença de 11 meses a 11 anos, em função do juiz que decide, podendo este ser influenciada pela hora do dia, pela vitória de uma equipa de futebol, e uma miríade de outros fatores, no momento da sua decisão.

dezembro 08, 2021

"Bewilderment" (2021) de Richard Powers

Uma leitura comovente sobre um mundo humanamente íntimo e abundante em ciência. A história acontece num futuro próximo raiado pelos problemas da atualidade — aquecimento global, pandemia, polarização política e ativismo —, visto a partir dos olhos de uma criança de 9 anos, diagnosticada distintamente em função de cada médico — com autismo, OCD ou ADHD —, que perdeu recentemente a mãe e tem de enfrentar o mundo tendo como único amigo o pai que é astrobiólogo e se dedica à modelação de simulações de possíveis formas de vida em exoplanetas. Um dos melhores livros de 2021.

dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

novembro 28, 2021

Universo sem sentimento

Perder o marido, ficando viúva com dois filhos, é uma experiência trágica com claros efeitos pós-traumáticos, mas usando a abordagem que a autora tanto gosta, a estatística, não é uma experiência nada incomum, nem agora, nem em toda a história da nossa espécie. Por outro lado, ser-se uma cientista de topo, premiada com uma bolsa MacArthur, a chamada "Bolsa dos Génios" no domínio da busca de inteligência fora da Terra, ou surgindo na capa da New York Times Magazine, com o título: "A Mulher Que Pode Encontrar-nos Outra Terra", é algo muito pouco comum, reservado a um número muito restrito de pessoas. Neste sentido, juntar as duas coisas poderia ter funcionado, poderia ter sido um memoir distinto. O problema acontece quando de frente batem e chocam espetacularmente a emocionalidade e as relações humanas de uma família com a racionalidade e abstração do mundo das ciências exatas. Ou seja, Sara Seager é uma cientista brilhante e com certeza teria sido muito interessante ouvi-la falar do seu trabalho e das complexidades da sua ciência, mas ouvi-la expor enormes incongruências de ser esposa e mãe, não tendo sequer noção destas é doloroso. Se no final nos diz que descobriu, apenas quase aos 50, que  era autista, a verdade é que não usou o livro, em parte alguma, para apresentar qualquer visão crítica das peculiaridades do seu comportamento. O seu discurso auto-centrado manteve-se igual, Seager é exatamente a mesma pessoa no final e no início do livro, nada mudou, e nesse sentido pergunta-se qual o interesse de um livro que não tem nada para dizer. Deixo alguns excerto de suporte a esta minha crítica: