julho 26, 2020

A ciência do sobrenatural

“Supersense. Why we believe in the Unbelievable” (2009) é o segundo livro que leio de Bruce Hood, professor britânico de neurociência cognitiva do desenvolvimento, e se não traz nada de muito novo, acaba tocando e aprofundando um assunto pelo qual tendemos a passar e definir de dois modos opostos, dependendo do momento: secundarizando como inexorável, parte da condição humana; ou criticando como efeito de baixa literacia científica. Falo da crença na superstição e religiosidade, a crença em tudo o que está para além da experiência empírica do natural, ou seja, o sobrenatural. Hood trabalha ao longo de todo este livro, munido de dezenas de exemplos e estudos, a estrutura cognitiva que dá suporte àquilo que faz de nós humanos e simultaneamente crentes.
Temos uma necessidade absoluta de significado, sem o que não conseguimos atribuir valor ao mundo que nos rodeia, daí que passemos, o nosso cérebro passa, praticamente todo o tempo a decifrar padrões e a dar-lhes sentido. Não é suficiente que a realidade exista enquanto conjunto de objetos e elementos, precisamos de lhes conferir categorias, hierarquias, valores, atributos, pesos, precisamos de comparar, e acima de tudo de significar. Isto é inerente a nós, não é possível sair deste modo de conhecer a realidade, porque é assim que o nosso cérebro está desenhado. Isto não é propriamente negativo, pois foi este mesmo design mental que nos permitiu criar a ciência e evoluir tudo aquilo que evoluímos como espécie ao longo de milénios. Mas como em tudo, existem sempre perdas ou disfunções. Assim como conseguimos criar algo tão impressionante como a Matemática, conseguimos simultaneamente criar algo como a Religião. Ambas nasceram do mesmo modo de trabalhar a realidade, ambas seguem necessidades impostas pelo nosso modo de pensar, e ambas parecem, ao nosso cérebro, fazer absoluto sentido.

Leia-se a seguinte lista e reflita-se sobre o que tem em comum:

  • O monumento Pártenon em Atenas, ou o Coliseu de Roma;
  • Um autógrafo de Stephen Hawking, ou de Stephen King;
  • Um casaco usado por Michael Jackson, ou por Ted Bundy;
  • A casa em que viveu Leonardo Da Vinci, ou Adolf Hitler;
  • A caneta usada por Eça de Queiroz, ou Fernando Pessoa;
  • O barco em que viajou Vasco da Gama, ou Cristóvão Colombo;
  • Um quadro de Picasso, ou de Van Gogh; 
  • Uma casa em que se deram múltiplos assassínios, ou suicídios;
  • O coelhinho ou bonequinha com que dormíamos em criança;
  • Fotografias de familiares que já partiram;
  • Etc.

Nada existe de comum entre estes, a não ser que são coisas, objetos constituídos de átomos, moléculas e substâncias. Contudo quando observados por nós, humanos, ganham camadas adicionais de significado, que por sua vez introduzem variáveis novas que alteram a nossa perceção dos mesmos. É a isto que Hood chama de SuperSentido. A nossa capacidade para percecionar além da matéria, para percecionar além da natureza, o Sobrenatural.

Um dos exemplos mais discutidos neste tipo de abordagem psicológica é a visita às Caves de Lascaux, França, lugar com uma história que percorre no tempo 30 mil anos. A sensação de estar em frente de desenhos, carvão gizado na pedra, com todos aqueles anos, séculos, milénios e depois perceber que se está numa cave réplica, a meia-dúzia de metros da real gera uma desilusão potente. O mesmo efeito poderia ser criado se nos dissessem que estaríamos a visitar a caravela original em que Vasco da Gama descobriu a Índia para a seguir descobrir que era uma mera réplica com meia-dúzia de anos. Assim, talvez não seja de admirar que o Governo da Grécia ande numa guerra jurídica há dezenas de anos com o British Museum, para reaver o conjunto de pedras pertencentes ao friso do Pártenon, e que poderiam facilmente ser replicadas.
O governo francês gastou 75 milhões de dólares na criação de uma réplica, o mais autêntica possível, das Caves de Lascaux, por forma a preservar as originais dos vários problemas que produziriam as visitas de diárias de milhares de turistas e curiosos. Contudo quando as pessoas descobrem que não estão a visitar as verdadeiras caves a desilusão é enorme.

Hood realizou um conjunto de experimentos, com crianças, e alegadas máquinas avançadas de replicação atómica, que permitiriam replicar todo e qualquer objeto, propondo às crianças duplicar os seus brinquedos/objetos de estima pessoal. A reação foi invariavelmente a mesma, por mais idênticas que fossem as cópias, nenhuma criança as preferia às que eram suas. Como se esses objetos estivessem imbuídos de substâncias sobrenaturais, autênticas, sagradas ou mais puras. Isto leva Hood a dizer o seguinte:
“Society can tell us what is sacred but, to be experienced as sacred, something must become supernatural. It has to be more than mundane. It must possess qualities that are unique and irreplaceable. Discerning such qualities requires a mind designed to sense hidden properties. If something can be copied, duplicated, corrupted, cloned, forged, replaced, or substituted, it is no longer sacred. To arrive at this belief we have to infer that there are hidden supernatural dimensions to our sacred world. And with this thinking comes all the supernatural qualities of connectedness and deeper meaning. We need these to make sense of why we value some things over and above their objective worth.”
Ou seja, a coisa sagrada é uma coisa culturalmente criada pela nossa mente no momento em que a dotamos de significado, colocando a coisa num patamar distinto, especial. É daqui que depois surgem todas as dimensões criadas pelo humano que conduzem à produção de religiões, monarquias, mitologias ou simples cultos de personalidade. Tudo é possível, porque em tudo podemos ver mais do que aquilo que lá está, não porque lá esteja, mas porque somos feitos desta forma, temos esta necessidade de interpretar, de atribuir propósito.

A base deste supersentido somos nós mesmos, os humanos. Tendemos a não colocar as pessoas no mesmo patamar das coisas. Consideramos que essas não são descartáveis como meros objetos, porque essas são únicas em si, também pelas relações que construíram conosco. A sua perda por morte, traição ou simples conflito, não é mera perda de substância, nem sequer de pessoa exterior a nós, mas de algo que somos graças a essa pessoa, e que deixamos de poder continuar a ser quando a perdemos.

Daqui emana o problema central do “supersentido”, já que enquanto espécie aprendemos a compreender o outro enquanto imbuído de características vitais e mesmo essenciais, atribuindo-lhe na gíria a designação de “alma”. Na verdade, o vitalismo ou animismo não se distingue muito do modo como funciona efetivamente o processo da vida, e como esta a separa do mero objeto, ou como preferimos dizer do inanimado. Mas é desse animismo que fizemos evoluir o conceito de essencialismo, pela elevação da vida a algo único e dotado de essência extraordinária. A partir daqui, foi muito fácil começar a transpor essa essência para outras espécies, tais como os nossos animais domésticos, desde logo por via da sua antropomorfização, seguindo-se os objetos e todo o restante mundo real. 
Ou seja, por um lado vemos toda a realidade como dotada de propósito, o que nos conduz a produzir significados explicativos. Por outro lado, para produzir as interpretações desses propósitos, tendemos a colocar-nos no lugar dessas coisas, o que acaba transferindo o modo como sentimos e percecionamos, e como qualificamos o nosso próprio animismo, para tudo o resto. 

Hood defende que a origem está no desenvolvimento da cognição, e que o processo começa em criança. Enquanto crianças acreditamos que o Sol existe para nós, que nos segue para onde formos, ou que o modo como pensamos é idêntico para todos. Por isso se queimarmos uma cadeira, acreditamos que ela sentirá dor, do mesmo modo que sentirá a bicicleta quando a pontapeamos, isto para não falar do terror que podemos sentir se algo acontecer com os tais brinquedos/objetos prezados a nível pessoal e emocional. 
"Sentimental" de Reagan Caron

As religiões, habilmente ou canhestramente, tendem a manter estas crenças vivas, trabalham sobre a ideia do propósito, centradas na figura do humano como centro do universo, transferindo o animismo para tudo, tornando o universo numa versão maior do nosso próprio modo de conceber a realidade. Hume já tinha desmontado este princípio, há 200 anos, como cita Hood:
“There is an universal tendency among mankind to conceive all beings like themselves, and to transfer to every object, those qualities, with which they are familiarly acquainted, and of which they are intimately conscious. We find human faces in the moon, armies in the clouds; and by a natural propensity, if not corrected by experience and reflection, ascribe malice and good-will to everything, that hurts or pleases us. Hence . . . trees, mountains and streams are personified, and the inanimate parts of nature acquire sentiment and passionHume (1757), in "Natural History of Religion"
Por isso, mais facilmente aceitamos vestir um casaco sujo com cocó de cão e não lavado, do que um casaco usado por um serial killer, mas lavado pelos métodos mais higiénicos à face da terra. A ideia de que o mal possa ter trespassado para o casaco impede-nos de raciocinar. Do mesmo modo, a nossa experiência de uma tela pendurada na parede da nossa cozinha pode ser cabalmente transformada, da noite para o dia, se nos disserem que não é uma cópia, mas uma tela verdadeiramente pintada pelas mãos de Salvador Dali. Daqui para a perceção do mundo como criado por um Deus, super-humano, criador daquilo que somos é um passo natural. O ceticismo e a racionalidade requerem o esforço de sair da caixa que o design mental cria e a manutenção de alerta constante, sem o que mesmo os mais cépticos podem cair nas suas próprias armadilhas, correndo atrás do autógrafo da pessoa adorada, ou elegendo a superstição como forma de atravessar momentos de crise. 
Vejam-se os casos seguintes:
“Tony Blair always wore the same pair of shoes in the House of Commons at Prime Minister’s Question Time. During his Presidential campaign, President Barack Obama carried a lucky poker chip. He also developed a bizarre superstitious ritual of playing basketball on the morning of every election in his path to the White House. His opponent, John McCain, was open about his catalogue of superstitions, always carrying a lucky feather and a lucky compass from his Vietnam piloting days. One wonders why, as he was shot down and spent many years as a prisoner of war. During the presidential race, McCain also always carried a lucky penny, a lucky nickel, and a lucky quarter. Apparently, this sum of 31 ‘super cents’ was not enough to secure presidential victory for this luckless senator.”

julho 14, 2020

Nietzsche, o psicoterapeuta

Não lia Nietzsche há mais de 25 anos, já tinha esquecido a sua força retórica, tinha-me habituado a pensar que os seus aforismos serviam apenas os sonhos de adolescente. Aliás, ao longo dos anos fui lendo, aqui e ali, algumas interpretações e teorias sobre as suas ideias, umas interessantes, outras bastante críticas, mas nunca me apeteceu lá voltar. Agora ao ler "Quando Nietzsche Chorou" (1992) acabei por dar comigo a viajar no tempo até às leituras de "Assim Falava Zaratustra" (1885), "Para além do Bem e do Mal" (1886) e de "O Anticristo" (1888). Recordei o “super-homem”, mergulhei de novo no destemido conceito que tanto apaixonou Jim Morrison, mas tenho de dizer que o que extraí foi bem diferente, para o que contribui imenso a escrita pedagógica de Yalom, mas também o facto de ter mais do dobro da idade que tinha.
Li a versão portuguesa da Saída de Emergência, mas não coloco aqui a capa porque a mesma usa uma foto da catedral de Notre Dame em Paris quando toda a ação se passa em Vienna.

"Quando Nietzsche Chorou" é um trabalho brilhante de Irvin D. Yalom, pelo modo como usa o meio de contar histórias, e em concreto o modelo do romance, para “ensinar os leitores”. Yalom é muito frontal, não pretendia escrever um mero romance, nem pretendia com ele dizer grandes verdades, o que lhe interessava era contar uma história através da qual se pudesse aprender mais sobre o psicologia do humano e nomeadamente sobre a arte da psicoterapia. Obviamente que Nietzsche não foi psicólogo, mas o conceito criado por Yalom, colocando o filósofo primeiro no divã e depois no lugar de terapeuta, é absolutamente brilhante. Ao longo das páginas temos a oportunidade não só de compreender como nasceu a psicoterapia, Freud aparece como amigo do médico de Nietzsche em algumas sequências, mas essencialmente porque nasceu. A isso acrescenta-se o uso que Yalom faz da psicoterapia para analisar, diria mesmo “esventrar”, o corpo teórico de suporte às grandes teorias de Nietzsche desde o choque entre o niilismo e a verdade suportada pelo conhecimento absoluto, da crítica à religião — “Deus está morto.” —, ao desprezo pela moral "Torna-te quem tu és!" e “O que não me mata torna-me mais forte!”.

Enquanto ia lendo, pensava para mim se muitas das ideias que carrego não estariam contaminadas deste espírito a quem dei bastante atenção no final da adolescência, mas de quem muito sinceramente nada recordava, ou pensava nada recordar. Várias vezes ao longo dos últimos anos me fui questionando se realmente teria compreendido alguma coisa “Assim Falava Zaratustra” que me ficou como o texto mais denso e intrincado que alguma vez li. Mas ao terminar esta leitura, percebi que tinha reencontrado Nietzsche, ele estava ali na minha frente, completo e íntegro, como desde sempre. Não que o tenha seguido, julgo que nunca seguimos ninguém em exclusivo, mas algumas das suas ideias martelaram parte daquilo em que me transformei. Talvez a mais evidente de todas tenha ficado pelo valor que atribuo ao conhecimento, à razão e à ciência, em detrimento de qualquer outro atributo humano, seja do foro material ou imaterial. Podemos questionar tudo, o niilismo tem esse problema, e chegar a um ponto de nada adiantar nada, mas é aqui que Nietzsche se distingue, porque vê o conhecimento como a única via capaz de criar e manter entreaberta uma porta no nosso caminho, sempre quase lá e ao mesmo tempo sempre inalcançável, instigando-nos a continuar todos os dias. 

O livro não será uma obra simples para quem desconheça os domínios da psicoterapia ou Nietzsche, mas não é complexa. Aliás, a desconstrução de Nietzsche é imensamente conseguida, dada a construção do personagem totalmente moldada pelas suas ideias. Talvez o seu maior problema seja o excesso de exposição, com Nietzsche e Breuer a investirem muitas páginas de diálogos pejados de ideias, conceitos e teorias. Mas este não é um mero livro de entretenimento, é um livro com uma missão, e como com todas as obras dotadas desse propósito, é preciso aceitar a proposta do autor para poder retirar o máximo do que nos é proposto. 

Deixo alguns dos excertos que marcaram esta leitura, e me fizeram dar voltas às ideias, nomeadamente alguns diálogos entre o médico Josef Breuer e Friedrich Nietzsche. Os excertos são da edição brasileira.

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Nietzsche: “A sensualidade é uma cadela que morde nosso calcanhar! E quão habilmente essa cadela sabe mendigar um pedaço de espírito, quando se lhe nega um pedaço de carne (..) “O desejo, o estímulo, a voluptuosidade... são os escravizadores! A ralé desperdiça a vida como suínos alimentando a vala do desejo.”

Nietzsche: “Você quer voar, mas não se pode começar a voar voando. Primeiro, tenho que lhe ensinar a andar, e o primeiro passo ao aprender a andar é entender que quem não obedece a si mesmo é regido por outros. É mais fácil, muito mais fácil, obedecer a outro do que dirigir a si mesmo.”

Nietzsche: “afirmei que havia uma divisão básica no estilo dos homens: aqueles que desejam a paz de espírito e a felicidade têm que acreditar e abraçar a fé, enquanto aqueles que desejam a verdade devem renunciar à paz de espírito e devotar sua vida à investigação. Eu sabia disso aos 21, há meia vida. É tempo de você aprendê-lo: deve ser seu ponto de partida básico. Você deve escolher entre o conforto e a verdadeira investigação! Caso escolha a ciência, caso opte por ser libertado das cadeias sedativas do sobrenatural, caso, conforme alega, escolha evitar as crenças e abraçar o ateísmo, então não poderá ao mesmo tempo ansiar pelos pequenos confortos do crente. Se você matar Deus, terá também que deixar o abrigo do templo.”

Nietzsche: “– Não estou muito preocupado. Acho que tenho tido quarenta anos desde que cheguei aos vinte!”


***Cap. 16***

Breuer: “Tenho pensamentos mórbidos, sombrios. Com frequência, sinto como se minha vida tivesse atingido o cume. – Breuer pausou para se lembrar de como o descrevera a Freud. – Escalei até o pico e, quando observo além da borda para ver o que existe adiante, vejo apenas deterioração: a queda no envelhecimento, netos, cãs ou talvez– deu um palmadinha no centro calvo do couro cabeludo– simplesmente a calvície. Mas não, isso não está exatamente certo. Não é a queda que me incomoda... é a não ascensão.”

Breuer: “– Às vezes, imagino que todos têm uma frase secreta, Friedrich, um tema profundo que se torna o mito central da vida da pessoa. Quando eu era criança, alguém uma vez me chamou de "o rapaz infinitamente promissor". Adorei esta frase. Entoei-a para mim mesmo milhares de vezes.”

Nietzsche: “– E o que aconteceu com aquele rapaz infinitamente promissor?
Breuer: “– Ah! Esta pergunta! Formulo-a com frequência. O que ele veio a ser? Sei agora que não há mais promessa... ela se esgotou!”

Nietzsche: “– Diga-me, o que quer dizer exatamente com "promessa"? 
Breuer: “- Não sei exatamente. Pensava que sabia. Significava o potencial de escalar, de me alçar às alturas; significava sucesso, aclamação, descobertas científicas. Mas provei o fruto dessas promessas. Sou um médico respeitado, um cidadão respeitável. Realizei algumas descobertas científicas importantes: enquanto existirem registros históricos, meu nome será sempre conhecido como um dos descobridores da função do interior do ouvido na regulação do equilíbrio. Além disso, participei da descoberta de um importante processo de regulação respiratória conhecido como reflexo de Herring-Breuer.”

Breuer: “As metas realizaram-se, sim. Mas sem satisfação, Friedrich. De início, a euforia de um novo sucesso durava meses. Gradualmente, porém, foi se tornando mais volátil – semanas, depois dias, até horas – até que agora o sentimento se evapora tão rapidamente, que já nem penetra em minha pele. Acredito agora que minhas metas foram imposturas: jamais foram o verdadeiro destino do rapaz infinitamente promissor. Muitas vezes, sinto-me desorientado: as antigas metas deixaram de funcionar e perdi o dom de inventar metas novas. Quando penso no fluxo de minha vida, sinto-me traído ou enganado, como se tivesse sido vítima de uma piada celestial, como se tivesse esgotado minha vida dançando à melodia errada.”

Nietzsche: “- Mas, como é que não ajudou à sua própria carreira”
Breuer: “- Eu protelei a redação e publicação de artigos científicos. Recusei-me a dar os passos formais preliminares necessários à nomeação para a cátedra. Não aderi às associações médicas corretas, nem participei de comissões universitárias, nem fiz os contatos políticos corretos. Não sei por quê. Talvez isso tenha a ver com poder. Talvez eu recue da arena competitiva.”

Nietzsche: “– Então, isso foi aos 29. E ao chegar aos quarenta, a segunda crise?
Breuer: “– Uma ferida mais profunda. Chegar aos quarenta abalou a ideia de que tudo me era possível. Subitamente, entendi o fato mais óbvio da vida: que o tempo é irreversível, que minha vida estava se consumindo. É claro que eu já sabia disso antes, mas sabê-lo aos quarenta foi uma espécie diferente de saber. Agora, sei que "o rapaz infinitamente promissor" foi meramente uma ordem de marchar, que "promissor" é uma ilusão, que "infinitamente" não tem sentido e que estou em fileira cerrada com todos os outros homens marchando em direção à morte.”

*** Cap. 18 ***

Nietzsche: “– O problema, Josef, é que sempre que abandonamos a racionalidade e recorremos às faculdades inferiores para influenciar os homens, resulta um homem inferior e mais vulgar. Quando diz que deseja algo que funcione, tem em mente algo capaz de influenciar as emoções. Bem, existem especialistas nisso! Quem são eles? Os sacerdotes! Eles conhecem os segredos da influência! Eles manipulam com musica inspiradora, eles nos apequenam com pináculos altaneiros e naves monumentais, eles encorajam o desejo de submissão, eles oferecem a orientação sobrenatural, a proteção contra a morte, até a imortalidade. Mas veja o preço que cobram: escravidão religiosa; reverência pelos fracos; estase; ódio ao corpo, à alegria, a este mundo. Não, não podemos recorrer a esses tranquilizantes, a esses métodos anti-humanos! Precisamos de encontrar formas melhores de aprimorar os nossos poderes da razão.”

julho 07, 2020

O adeus íntimo de Morricone

Já tinha partilhado esta carta no Facebook, mas depois de a traduzir para português senti a mesma com tanta mais intensidade a ponto de a querer repartilhar. É um adeus sincero e honesto, mas é um adeus profundamente pensado nos outros, naqueles que ficam. Não há espaço para glórias, feitos ou grandezas tudo isso é vão, irrelevante e secundário. Morricone trabalhou uma vida inteira para criar o Épico através da sua música, mas ao partir é apenas do Amor pelo outro que nos fala.
Imagem do momento, com a carta de Morricone, em que foi anúnciada a morte em Roma

Vêm-me à cabeça dezenas de imagens de filmes musicados por Morricone, centenas de horas passadas a ouvir os seus discos, mundos-história inteiros sintetizados em pequenos momentos capazes de nos retirar do lugar e de nos fazer viajar infinitamente. Acredito no seu sentido íntegro e único, mas questiono-me o quanto deste texto de adeus, escrito pouco antes de se ter sentido mal e pressentir que estava quase a deixar-nos, se relaciona com a maneira de estar latina? O quanto tem isto que ver com a necessidade e reconhecimento do outro humano, aquele que conosco faz a jornada, a necessidade de proximidade desse outro? Caminhamos para um mundo de total individualismo, em que o espaço é cada vez mais pequeno para a relação humana, e em que tudo se move por objetivos, metas, métricas e valores financeiros...
Ennio Morricone e Maria Travia

Tradução para português
Obituário escrito pelo Papa

Eu
ENNIO MORRICONE
Estou morto.

Por isso anuncio a todos os amigos que sempre estiveram próximos de mim e também aos que estão um pouco distantes e os saúdo com muito carinho. Impossível nomear todos eles.

Mas uma lembrança especial é para Peppuccio e Roberta, amigos fraternos muito presentes nos últimos anos da nossa vida.

Há apenas uma razão que me leva a cumprimentar todos assim e a ter um funeral de forma privada: não quero incomodar.

Saúdo calorosamente Inês, Laura, Sara, Enzo e Norbert, por terem partilhado grande parte da minha vida comigo e com a minha família.

Quero lembrar com amor as minhas irmãs Adriana, Maria, Franca e seus entes queridos e dizer a eles o quanto eu os amava.

Uma saudação completa, intensa e profunda aos meus filhos Marco, Alessandra, Andrea, Giovanni, minha nora Monica e aos meus netos Francesca, Valentina, Francesco e Luca.

Espero que eles entendam o quanto eu os amava.

Por último mas não menos importante (Maria). Renovo contigo o extraordinário amor que nos uniu e que lamento abandonar.

Para ti a despedida mais dolorosa."
Morricone com a esposa e filhos

Texto original
NECROLOGIO SCRITTO DA PAPA'

Io
ENNIO MORRICONE
sono morto.

Lo annuncio così a tutti gli amici che mi sono stati sempre vicino e anche a quelli un po’ lontani che saluto con grande affetto. Impossibile nominarli tutti. 

Ma un ricordo particolare è per Peppuccio e Roberta, amici fraterni molto presenti in questi ultimi anni della nostra vita.

C'è una sola ragione che mi spinge a salutare tutti così e ad avere un funerale in forma privata: non voglio disturbare.

Saluto con tanto affetto Ines, Laura, Sara, Enzo e Norbert, per aver condiviso con me e la mia famiglia gran parte della mia vita.

Voglio ricordare con amore le mie sorelle Adriana, Maria, Franca e i loro cari e far sapere loro quanto gli ho voluto bene. 

Un saluto pieno, intenso e profondo ai miei figli Marco, Alessandra, Andrea, Giovanni, mia nuora Monica, e ai miei nipoti Francesca, Valentina, Francesco e Luca. 

Spero che comprendano quanto li ho amati. 

Per ultima Maria (ma non ultima). A Lei rinnovo l’amore straordinario che ci ha tenuto insieme e che mi dispiace abbandonare. 

A Lei il più doloroso addio.

julho 05, 2020

Videojogos enquanto simulacros do recreio escolar

Uma criança de 8 anos, em Espanha, escreveu uma carta aos pais pedindo que o proibissem de jogar Fortnite. A mãe publicou a carta no Twitter, e como seria de esperar, depois dos já comuns ataques a tudo o que se torna viral, decidiu fechar a conta no Twitter. Mas a carta pode ser encontrada online, e é o que me interessa aqui, não por conhecer a criança ou os seus pais, mas antes porque exemplifica aquilo que se passou com milhões de crianças em todo o mundo em tempos de COVID-19 e isolamento, sendo um assunto que interessa contextualizar e debater.
"Sinto falta daquele tempo em que ia à escola para ter tempo para tudo. Quando era eu mesmo e não o que sou agora, que passo todo o dia no Fornite."
"No meu coração, sei que mereço que me proíbam os videojogos, mas o meu cérebro diz que necessito de jogar videojogos."
"Mãe ou pai, se estão a ler, proíbam-me de jogar videojogos. É o melhor para mim".
Crianças de todas as idades, habituadas a socializar, interagindo verbal e fisicamente numa forma diária, foram obrigadas, de um dia para o outro, a encerrar-se em casa. Os professores e amigos desapareceram e durante mais de 2 meses todas estas crianças foram confinadas à presença e convivência exclusiva com pai, mãe e irmãos. Até os avós lhe foram vedados, sendo mesmo etiquetados de perigo para esses seus familiares. Não houve mais escola, mas também não houveram mais atividades, nem futebol, nem piscina, nem música, nem teatro, nem cinema, nem sequer o parque, os jardins ou as bicicletas. 

2, 3 ou 5 pessoas encerradas dentro de 4 paredes com acesso ao mundo exclusivamente realizado por via de janelas de pixels, micros e auscultadores. Claro que podiam ler, podiam ver filmes, podiam ouvir música, podiam pintar, desenhar, escrever mas nada disso poderia substituir o outro. A visceralidade da interação com o outro semelhante é insubstituível por qualquer meio, qualquer criação, história ou jogo. 

Não foram os videojogos, como Fortnite, que viciaram as crianças. Antes, estes videojogos pela sua natureza social, cooperativa e colaborativa, por meio da internet, providenciaram aquilo que mais falta lhes fazia, o contacto e a relação com os outros. Jogar Fortnite não é o mesmo que jogar Pac-man ou Tomb Raider, nem o mesmo que ver um filme ou ler um livro, o espaço de Fortnite funciona como simulacro do recreio das escolas. Fortnite recria o espaço e providencia o acesso a milhões de jogadores, permitindo que estes se encontrem ali e interajam, por meio de um Avatar (boneco) e a sua própria voz, com os seus pares. O espaço é preenchido com muitos objetos visualmente atrativos, inexistentes no recreio de qualquer escola, mas que são imaginados durante muitas das brincadeiras nesses espaços reais. 

Em essência, o que acontece dentro do Fortnite e que faz com que todos os dias aquelas crianças queiram ali voltar, passa muito longe dos objetos mais ou menos educativos — tais como armas, motorizadas, roupas e uma miríade infinita de outros novos que surgem ali todos os dias — e foca-se quase em exclusivo na chama do contacto humano. Da agência permitida dentro de um mundo que é observável pelos colegas e amigos, a quem se pede ajuda por micros e de quem se recebem conselhos por auscultadores, que se juntam para colaborativamente vencer outros, ou para construir cenários e espaços até agora só possíveis na sua imaginação. 

É isto que torna Fortnite tão relevante, mas se se tornou no símbolo desta pandemia para tantas crianças, foi também porque tecnologicamente a Epic, empresa criadora do jogo, soube posicionar-se como nenhuma outra empresa. Todo o mundo virtual de Fornite é de acesso gratuito (o modelo de negócio assenta na aquisição de objetos dentro do mundo de jogo), mas isso ainda não é tudo, ele é jogável em qualquer consola, em qualquer computador e em qualquer telemóvel. A esmagadora maioria das crianças em idade escolar têm hoje acesso a um smartphone e por isso, independentemente do estrato social, conseguem entrar e jogar com os seus amigos, rever e recordar, conversando e brincando, para convencer os outros da sua presença e relevância no seio do tecido social que constitui os grupos de amigos. Isto é vital para qualquer ser-humano, e mais ainda para qualquer criança em formação.

Por tudo isto, ler nesta carta um apelo ao fim dos jogos, um dedo acusatório a Fortnite é não compreender o enquadramento nem querer estruturar o contexto que a suporta. Estamos perante uma criança que ao escrever esta carta não está a gritar contra o Fornite, antes está a gritar por tudo o que perdeu e de que sente falta — a escola, a música, o desporto e os amigos. Porque um simulacro virtual de um recreio escolar não pode substituir-se a todas as facetas da vida de uma criança. Claramente ajuda, mas avatares virtuais são simulacros, não são pessoas, mas ainda mais relevante, não é possível transferir para dentro de um ambiente virtual tudo aquilo que constitui a agência de um ser-humano em crescimento num espaço real. Por isso a criança está cansada de Fortnite, ela continua a voltar lá porque é o mais próximo que tem desse mundo conhecido e anterior, mas horas e horas ali dentro não lhe aportam as experiências de que sente falta, e por isso o seu "coração" queixa-se, porque a ilusão mental criada pelo seu cérebro não é forte o suficiente para o fazer esquecer todas as emoções que o mundo anterior lhe proporcionava.

julho 04, 2020

Psicologia humana e a gestão de grandes crises

Gosto imenso de Jared Diamond, por isso nunca me canso de o ler e ouvir. É verdade que ele tende a realizar um trabalho altamente especulativo sobre objetos de estudo que à primeira vista poderiam ser tratados de forma mais empírica, mas é isso que o torna tão interessante, porque não hesita em trabalhar nas fronteiras das múltiplas disciplinas para encontrar novas respostas e novas formas de compreender o mundo. Neste seu mais recente livro, "Upheaval: Turning Points for Nations in Crisis" (2019) Diamond faz um cruzamento direto entre a Psicologia, em particular as abordagens ao tratamento de crises pessoais, e a História Económica de países inteiros. O resultado apresentado, 12 passos para lidar com as crises, terá a sua relevância e também limitações, mas gostei particularmente das sínteses que Diamond traçou das crises dos diferentes países retratados —  Finlândia, Japão, Chile, Indonesia, Alemanha, Australia e EUA.
Aprende-se imenso, nem que seja a ideia principal de que cada país é dono de um historial que o condiciona, e aquilo que serve a um não serve a outro. Neste sentido, o trabalho de Diamond poderia ser visto como inconsequente, contudo não o será. Aliás, nesse sentido justifica-se mesmo que ele não tenha feito uma seleção de países em termos objetivos, mas se tenha limitado aos países que conhece em maior detalhe, não só por neles ter vivido, mas por falar em parte as suas línguas e conhecer os seus costumes por dentro. A ideia central de um guia de 12 passos nunca pode ser o de seguir todos, mas antes o de servir enquanto ementa de possibilidades que possam ser orientadoras na tomada de decisões.

No fundo, Diamond acabad realizando um extenso trabalho de história comparativa, que servirá a muitos dos que ocupam cargos de decisão e necessitam deste conhecimento, que é conhecido na giria como benchmarking. O exemplo da Finlândia abre a discussão porque é desde logo aquele que dita as grandes limitações que estes trabalhos comparativos têm, e por isso tudo o que se conhece sobre cada país deve ser muito bem enquadrado antes de se poder pensar em importar de forma direta para qualquer outro país.

Deixo a lista do Modelo de 12 Passos e os excertos de 3 países: Finlândia, Chile e EUA

  1. Acknowledging the crisis itself. After all, you can’t fix a problem if you continue to deny that it exists.
  2. Accepting responsibility to respond to crisis.
  3. Distinguishing the things that need to change from those that are so important to your identity that they shouldn’t be interfered with. This process is called selective change.
  4. Getting assistance from outside sources.
  5. Learning about the methods others have used to respond to similar crises.
  6. Recognizing a personal or national identity.
  7. Undertaking an honest self-appraisal.
  8. Recognizing and learning from how you’ve handled past crises.
  9. Showing patience in coping with failure.
  10. Showing flexibility.
  11. Identifying your core values.
  12. Determining the constraints on your ability to enact selective change.


Excerto sobre a Finlândia

“Finland had bitter memories that, when it actually was attacked by the Soviet Union in 1939, it had not been helped by the U.S., Sweden, Germany, Britain, or France. Finland had to learn from its history that its survival and independence depended on itself, and that Finland would be safe only if the Soviet Union felt safe and trusting towards Finland.”

“Finland’s total losses against the Soviets and the Germans in the two wars, the Winter War and the Continuation War, were about 100,000 men killed. In proportion to Finland’s population then, that’s as if 9 million Americans were killed in a war today. Another 94,000 Finns were crippled, 30,000 Finnish women were widowed, 55,000 Finnish children were orphaned, and 615,000 Finns lost their homes (..) In addition, in one of the largest child evacuations in history, 80,000 Finnish children were evacuated (mainly to Sweden), with long-lasting traumatic consequences extending to the next generation ”

“[Today] many Finnish actions do indeed horrify Western European and American observers. It could never happen in the U.S. or Germany that a presidential election would be postponed, a presidential candidate would withdraw his or her candidacy, a publisher would cancel a book, or the press would censor itself, just to avoid inflaming Soviet sensitivities. Such actions seem to violate a democracy’s right to freedom of action.”

“To quote President Kekkonen again, “A country’s independence is not usually absolute… there was not a single state in existence that did not have to bow to historical inevitabilities.” (..) “There are obvious reasons why Finland has to bow much more to historical inevitabilities than does the U.S. or Germany: Finland is small and borders on Russia, while the U.S. and Germany do not.”

“The end result is that, in the 70 years since the end of World War Two, Finland has come no closer to becoming a Soviet or (now) a Russian satellite. Instead, it has succeeded in steadily increasing its ties with the West while still maintaining good ties with Russia. At the same time, Finns know that life is uncertain, and so military service is still compulsory for Finnish men and voluntary for Finnish women.”

“In order to make productive use of its entire population, Finland’s school system aims to educate everybody well (..) even those few Finnish private schools receive the same level of funding from the government as do public schools and are not permitted to increase their funding by charging tuition, collecting fees, or raising endowments! (..) Finland has the world’s highest percentage of engineers in its population. It is a world leader in technology. Its exports account for nearly half of its GDP, and its main exports are now high-tech (..) Finland’s combined private and government investment in research and development equals 3.5% of its GDP, almost double the level of other European Union countries (..) The result of that excellent educational system and those high investments in research and development is that, within just half-a-century, Finland went from being a poor country to being one of the richest in the world”

“Kekkonen’s defense of Finland’s policy was summarized in the phrase “Finlandization is not for export.”


Excerto sobre o Chile

"Developments in Chile from 1970 onwards were guided by two consecutive leaders who represented opposite extremes in politics and personality: Salvador Allende and Augusto Pinochet.

Allende was a quintessential Chilean professional, from an upper-middle-class family, rich, intelligent, idealistic, a good speaker, and endowed with an appealing personality (...) Allende rated as moderate by Chilean socialist standards.

(...) what policies did Allende adopt upon becoming president? Even though he knew that his candidacy had been supported by only 36% of Chilean voters (..) he rejected moderation, caution, and compromise (..) His first measure, with the unanimous support of Chile’s Congress, was to nationalize the U.S.-owned copper companies without paying compensation

(...) He nationalized other big international businesses. He horrified the Chilean armed forces (…) by carrying a personal machine gun given to him by Fidel Castro, and by inviting Castro to Chile for a visit that stretched out to five weeks. He froze prices (even of small consumer items like shoe-laces), replaced free-market elements of Chile’s economy with socialist-style state planning, granted big wage increases, greatly increased government spending, and printed paper money to cover the resulting government deficits.

The result of Allende’s policies was the spread of economic chaos, violence, and opposition to him. Government deficits covered by just printing money caused hyperinflation, such that real wages (i.e., wages adjusted for inflation) dropped below 1970 levels, even though wages not corrected for inflation nominally increased. Foreign and domestic investment, and foreign aid, dried up. Chile’s trade deficit grew. Consumer goods, including even toilet paper, became scarce in markets, which were increasingly characterized by empty shelves and long queues. Rationing of food and even of water became severe.

“Allende fell because his economic policies depended on populist measures that had failed again and again in other countries. They produced short-term benefits, at the cost of mortgaging Chile’s future and creating runaway inflation.” Many Chileans admired Allende and viewed him almost as a saint. But saintly virtues don’t necessarily translate themselves into political success.

The long-expected coup took place on September 11, 1973

By default, the new army chief of staff became Pinochet (…) When the junta took power, Pinochet himself announced that its leadership would rotate. But when it came time for Pinochet to rotate off and to step down as leader, he didn’t do so.

As soon as the junta took power, it rounded up leaders of Allende’s Popular Unity Party and other perceived leftists with the goal of literally exterminating the Chilean left-wing. Within the first 10 days, thousands of Chilean leftists were taken to two sports stadiums in Santiago, interrogated, tortured, and killed.

Pinochet personally ordered a general to go around Chilean cities in what became known as the “Caravan of Death,” killing political prisoners and Popular Unity politicians whom the army had been too slow at killing. The junta banned all political activities, closed Congress, and took over universities. It set up networks of secret detention camps, devised new methods of torture, and made Chileans “disappear” (i.e., murdered them without a trace).

Whatever the motives, the resulting free-market policies included the re-privatization of hundreds of state-owned businesses nationalized under Allende (but not of the copper companies); the slashing of the government deficit by across-the-board cuts of every government department’s budget by 15% to 25%; the slashing of average import duties from 120% to 10%; and the opening of Chile’s economy to international competition.

(…) the results were that the rate of inflation declined from its level of 600% per year under Allende to just 9% per year, the Chilean economy grew at almost 10% per year, foreign investments soared, Chilean consumer spending rose, and Chilean exports eventually diversified and increased (…) The economic benefits for Chileans were unequally distributed: middle-class and upper-class Chileans prospered, but many other Chileans suffered and found themselves living below the poverty level.

(...) the junta announced another plebiscite in 1988 that would extend Pinochet’s presidency for yet another eight years until 1997, when he would be 82 years old. This time, though, Pinochet miscalculated and was outmaneuvered (…) the “No!” campaign prevailed, with 58% of votes cast. (…) But—42% of Chileans had still voted for Pinochet, in that free election of 1988.

Once the alliance of the 17 “No!” groups had thus won the referendum, the alliance’s leftists faced the necessity of convincing the alliance’s centrists of the Christian Democratic Party that a new leftist government wasn’t to be feared and wouldn’t be as radical as Allende’s leftist government had been. Hence leftist and centrist parties joined in an electoral alliance termed Concertación. Leftists agreed that, if the alliance could win the 1990 election (which it did), they would let the presidency alternate between a leftist and a centrist, and would let the Christian Democrats fill the presidency first. Leftists agreed to those conditions because they realized that that was the only way that they could eventually return to power.
In fact, Concertación proceeded to win the first four post-Pinochet elections, in 1990, 1993, 2000, and 2006.

In 2010 Concertación was defeated by a right-wing president (Sebastián Piñera), in 2014 socialist Bachelet returned to power, and in 2018 right-winger Piñera again. Thus, Chile after Pinochet reverted to being a functioning democracy still anomalous for Latin America, but with a huge selective change: a willingness to tolerate, compromise, and share and alternate power."


Excerto sobre os EUA

“Each political party is becoming increasingly homogenous and extreme in its ideology: Republicans are becoming more strongly conservative, Democrats more strongly liberal, and middle-of-the-roaders are declining in both parties."

"Surveys show that many Americans of each party are increasingly intolerant of the other party, see the other party as a real danger to the U.S.’s well-being, wouldn’t want a close relative to marry a supporter of the other party, and want to live in an area where other people share their own political views."

"If you are an American reader of this book, you can test this pulling-apart of America on yourself: how many people do you personally know, and count among your friends, who told you that they were voting for the other party’s presidential candidate in the 2016 election?”

“Thus, the question to answer isn’t just why our politicians are becoming more uncompromising, independently of their constituents. We also need to understand why American voters themselves have become more intolerant and politically uncompromising. Our politicians are merely obeying their voters’ wishes. As for that political polarization of American society as a whole, one explanation frequently suggested is “niche information. “When I was a teenager, cable TV didn’t exist; the first TV program of any sort didn’t come to my city of Boston until 1948; and for years thereafter, we Americans got our news from just three big TV networks, three major weekly newsmagazines, and newspapers. Most Americans shared those same sources of information, none of which was clearly identified with conservative or liberal views, and none of which slanted its information heavily. Now, with the rise of cable TV, news websites, and Facebook, and with the decline of broad-market weekly print newsmagazines, Americans choose their source of information according to their pre-existing views. Looking at my monthly cable TV bill, I see that I can choose among 477 channels: not only Fox News or MSNBC depending on whether I prefer a conservative or a liberal slant, but also channels devoted to Africa, Atlantic Coast college sports, cooking, crime, France, hockey, jewelry, Jewish life, Russia, tennis, weather, and myriads of other narrowly defined subjects and viewpoints.”

“I can thereby choose to remain strictly tied to my current interests and views, and not be distracted by other subjects and unwelcome views. The result: I lock myself into my political niche, I commit myself to my own set of “facts,” I continue to vote for the party that I’ve always preferred, I don’t know what’s motivating the supporters of the other party, and of course I want my elected representatives to reject any compromise with those representatives who don’t agree with me."

"Most of the U.S. population now uses social media, such as Facebook and Twitter. Two unrelated friends of mine, one of whom happens to be a Democrat and the other a Republican, explained to me separately how their Facebook account serves as their main information filter. The Democrat (a young man) posts news items and comments to his Facebook friends, who in turn post items of their own, and whom he has selected in part because they share his views. When someone posts an item with a Republican point of view, he “unfriends” that person, i.e., drops her from his list of Facebook friends. The people whom he unfriended included his aunt and uncle, whom he also stopped visiting in person because of their Republican views. He checks his Facebook account on his iPhone frequently throughout the day, and uses it to identify and read on-line newspaper articles aligned with his views, but he doesn’t subscribe to a print newspaper or watch television. My other friend, who happens to be Republican, gave me a similar account, except that the acquaintances whom she unfriends are those who post items with a Democratic point of view. The result: each of my friends reads only within his or her already-determined niche.”


Este livro faz parte de uma trilogia de Jared Diamond intitulada "Civilizations Rise and Fall". Deixo ligações para as resenhas dos anteriores dois livros:
1. Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies (1997)
2. Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed (2004)
3. Upheaval: Turning Points for Nations in Crisis (2019)

julho 01, 2020

Universos de fantasia-científica

“Quinta Estação” (2015) é o primeiro volume da trilogia “Terra Fraturada” da escritora americana N. K. Jemisin que se tornou numa espécie de recordista ao ser a primeira mulher negra a receber um prémio Hugo e o primeiro autor a receber 3 prémios Hugo em anos consecutivos, exatamente com esta trilogia — em 2016, 2017 e 2018 — sendo considerada "indiscutivelmente o escritor especulativo mais importante da sua geração". Se isto não chegar, posso ainda dizer que a formação de base de Jemisin é a Psicologia e que ela tende a escrever suportada em ciência. Aliás, foi esta última parte que me fez embarcar na sua leitura, após perceber que os seus mundos-história operavam num domínio que podemos definir, de forma oxímora, como fantasia-científica.


Desde o início do livro, Jemisin é bastante clara no desenho do universo, apresentando-o aos poucos, mas sempre suportado em lógica e racionalidade. O mundo-história é constituído por uma realidade alternativa na qual o planeta em que os humanos, e outras espécies, habitam atravessa constante agitação sísmica, provocando em ciclos de centenas de anos o apagamento de civilizações inteiras, fazendo com que as gerações seguintes praticamente desconheçam as anteriores. Esta premissa abre espaço para um mundo de possibilidades que colocam em conflito o racional de um desconhecido que garante o sentido mágico que a fantasia tanto preza. Pode-se dizer que o universo criado oferece ciclos continuados de ambientes pós-apocalípticos, aproximando-se da tendência atual do uso da figura do pós-apocalipse mas exacerbando a mesma para explorar os seus efeitos no ser humano.  
Mapa do Sossego, o planeta em que se desenrolam as histórias

E é exatamente aqui, no campo dos personagens, que Jemisin eleva a qualidade do discurso no género, menos habituado à dramatização psicológica, para oferecer a cada um dos personagens todo um historial, variabilidade moral e profundidade emocional. Estamos muito longe da mera premissa que puxa o enredo e faz seguir as aventuras, como a necessidade de descobrir a origem de uma qualquer força, a conquista de um qualquer território, ou o regresso do bem/paz ou equilíbrio, mais importante do que isso é conhecer aquelas pessoas: porque estão ali e porque se comportam daquela forma. Neste sentido, a obra acaba fugindo bastante aos cânones do género, já que se aproxima muito mais do tradicional romance. Os personagens vivem em realidades de relações sociais complexas, em que temos dominadores e submissos, em que a opressão é uma constante e cabe à narrativa levar-nos compreender como funcionam as desigualdades e como lidam as pessoas com as mesmas.

Tendo em conta o enfoque nas relações sociais e sua psicologia, o mundo criado por Jemisin é, no âmbito do nosso mundo contemporâneo, imensamente progressivo, algo que em tempos de grande polarização política, e provindo de uma autora americana negra dá conta de uma forma de estar reflexiva e preocupada com o mundo real que habitamos. Temos protagonistas negros, mulheres, homossexuais, transgéneros e até relações poliamorosas, tudo servido como parte de um universo perfeitamente lógico e natural. A autora tem perfeita noção dessa polarização, conhece fenómenos como o GamerGate, e a própria tem vindo a ser alvo dos mais diversos ataques à medida que vem ganhando prémios e tornando-se mais conhecida. Por isso os universos por ela criados não são inocentes, sendo ela a primeira a admitir que a criação de mundos-história por criativos serve na criação de mitologia e modelos mentais que os leitores utilizam para interpretar o mundo. Por isso, podemos dizer que estes seus livros contribuem para uma espécie de ativismo, no qual Jemisin reflete sobre o mundo que habitamos e oferece alternativas que nos questionam sobre muito daquilo que damos por adquirido nesta nossa realidade.


Entrando na leitura propriamente dita, podemos dizer que “Quinta Estação” começa por parecer algo estranha, dada a quantidade de factos de uma realidade que nos é estranha, ao que acresce uma narração a três vozes. Mas ao fim de meia-centena de páginas estamos ambientados e o universo começa a ganhar forma na nossa cabeça. A história conta-se no presente, mas uma das vozes dá-se a conhecer numa rara segunda-pessoa que sabe bastante mais sobre o antes e o depois do que se vai contando. Jemisin é bastante hábil a coser as diferentes vozes e a construir os arcos de cada personagem, ainda que me pareça que com este quadro teria sido possível criar um pouco mais de clímax, perto do final, com a junção das três narrações. Contudo, emocionalidade não falta ao longo de todo o livro, com as diferentes espécies a darem conta das castas e classes sociais e das opressões vividas, assim como dos comportamentos mais impróprios que nos incomodam, não tanto pelas figuras representadas, mas antes por conhecermos a base societal que serviu de inspiração à criação dessas figuras.

Voltando à ideia da fantasia-científica, diria que isto é talvez aquilo que tende a distinguir os universos da Marvel e da DC ou de Star Wars e Star Trek. Na Marvel as histórias que suportam as origens de cada um dos heróis tem normalmente por base uma explicação científica, sejam as transformações radioativas sejam as mutações genéticas da biologia evolucionária. Neste sentido não admira que as histórias passadas ao cinema tendam a focar-se repetitivamente nessas origens, já que isso é o que verdadeiramente interessa nos personagens, e não as suas repetitivas aventuras rocambolescas. Já no caso de Star Trek, o foco tende a estar na compreensão da diferença entre espécies, na exploração dos traços alternativos daquilo que poderíamos ser enquanto espécie, e não meramente das histórias de luta entre o bem e o mal que se repetem sem fim, e das quais pouco ou nada podemos retirar. É isso que Jemisin faz aqui, foca-se nas origens do seu mundo e dos seus personagens e procura explorar as diferenças, a partir das quais cria espelhos de nós próprios que nos obrigam a refletir sobre as sociedades que criámos.

Vale a pena ver o discurso de Jemisin na receção do terceiro prémio Hugo, e se tiverem vontade de compreender melhor como se criam estes universos, aconselho vivamente o workshop que ela deu no ano passado na comemoração dos 25 anos da revista Wired, no qual ficarão a saber do gosto, e claro influência, que têm tido videojogos como "Mass Effect" no seu trabalho.


Imagens do Workshop de Jemsin na Wired 25, explicando a conceptualização da criação de mundos (world building) nas suas formas Macro e Micro.


Análise do segundo volume.
Análise do terceiro volume.

junho 25, 2020

A casa que confere a Liberdade

“A Casa de Mr Biswas” (1961) parece, à primeira vista, uma regular saga familiar que extrapoladas as devidas distâncias culturais podemos aproximar do quadro criado por Mann com “Buddenbrooks” (1901), acrescendo o facto de ambas as obras se inspirarem em dados autobiográficos. A escrita de Naipaul difere bastante de Mann, menos rebuscada e bela, mas mais eficiente. Dito assim pode parecer que se ganhará com esta leitura apenas o acesso a um historial de costumes situado numa geografia distinta, Trindade e Tobago, contudo existe aqui algo mais. A longa tradição familiar, sustentáculo do romance de Mann, sofre aqui um enorme revés pelo enquadramento histórico da emigração que suporta as famílias do romance de Naipaul e dá conta do seu desenraizamento. 
A capital de Trindade e Tobago, Port of Spain, nos anos 1940

Trindade e Tobago é um país formado por duas pequenas ilhas — Trindade, a maior, e Tobago — ao largo da costa da Venezuela. Com pouco mais de um milhão de habitantes, mas detentora de petróleo, apresenta hoje um nível de vida, em termos de PIB per capita, três vezes superior à Venezuela, sendo mesmo ligeiramente superior a Portugal. A ilha foi descoberta por Colombo no século XVI tendo estado sob controlo Espanhol até ao século XVIII quando passou para as mãos de Inglaterra. Mais importante para a compreensão do cenário da obra de Naipaul é o facto de em 1831 ter sido abolida a escravatura na ilha, libertando os escravos provenientes de África que acabariam por abandonar a agricultura. Para dar resposta ao problema, os ingleses lançaram um sistema de incentivo à emigração de habitantes da Índia para Trindade que duraria até 1917, consistindo na introdução de cerca de 150 mil indianos na ilha. VS Naipaul era descente dessa corrente migratória, que representa hoje cerca de 50% do total do país. Este enquadramento não surge no livro, mas é requerido para o contextualizar.
Seepersad Naipaul (1906–1953), com o seu Ford Perfect, pai de VS Naipaul e que serviu de base para criar Mr. Biswas.

Naipaul abre o romance de forma a criar uma elipse narrativa, dando conta do facto de Mr. Biswas, personagem principal, estar com 46 anos e a 10 semanas do dia da sua morte. Viajamos depois até ao dia do seu nascimento, para ao longo das mais de 500 páginas o acompanhar a si, à sua família, a da esposa e depois os seus filhos. A saga inicia-se com um tom humorístico forte, inclinado à ironia e sarcasmo, mas vai evoluindo, como que amadurecendo, para se tornar cada vez mais melancólica. Tal como o próprio título indica o foco é a casa, mas essa só aparecerá no final, até lá Mr. Biswas terá de penar, chegando a viver com toda a sua família — mulher e 4 filhos — enfiados num único quarto.

Mas a casa serve mais do que isso, ela é a alegoria da emancipação, da libertação final. Ao longo de todo o livro vemos Mr. Biswas progredir mas sempre debaixo da alçada de alguém, nomeadamente a partir do momento em que casa e entra no seio de uma família alargada, com algumas posses e que preserva tradições do país de origem, a Índia. Mr. Biswas vive dependente, buscando as mais diversas formas de fazer frente à opressão de que é alvo pela família da mulher. Tudo parece resumir-se sempre às casas onde vai vivendo, sempre sob os comandos da família da esposa, nas quais se torna difícil compreender quantas pessoas lá vivem e como cabem lá. O excesso de pessoas confere dinâmica, mas confere também um sentido de caos. As tradições pairam, mas apenas isso, o caos é dominante e tudo é volátil, faltam âncoras, tudo é demais e esgota quem ali vive. A possibilidade de viver em casa própria, com a família, é miragem libertadora mas vão ser precisas várias tentativas goradas para lá chegar. Aliás, podemos ver estas tentativas de libertação metáfora dos contratos que os ingleses faziam com as famílias da índia que os obrigavam a trabalhar durante anos em Trindade e Tobago para pagar as viagens e os alugueres dos espaços em que moravam quando chegavam.
A casa que serviu de base à Hanuman House onde vivia a família da esposa de Mr. Biswas com todas as suas irmãs.
A família Capildeo que serviu de base à família Tulsi, as 9 irmãs e os dois "deuses", da mulher de Mr. Biswas

Mas o que é mais interessante é o modo como Naipaul consegue levar-nos a sentir essa mesma libertação no final. Após centenas de páginas de andar para frente e para trás, de felicidade misturada com tristezas, de parecer impossível sair do mesmo lugar, e quando se sai apesar da casa não ser nenhuma cama de ouro, mas sendo deles, sendo daquela família que claramente a merece, é chegada a hora do fim de Mr Biswas. Batemos no início do livro e sentimos as páginas fecharem-se, como se nenhum outro final fosse possível. A casa e a libertação de Mr Biswas não representam apenas o crescimento, o deixar para trás, mas representam a criação de um verdadeiro porto seguro que provém de um sentimento telúrico que se liga intimamente com a responsabilidade de velar pela família. É por isso que Mr Biswas pode finalmente partir, é esse reconhecimento que produz em nós a sensação de libertação pelo dever cumprido, de luta encerrada.


Vale a pena ler também, de VS Naipaul, "A Curva do Rio" (1979).

junho 18, 2020

"A Plague Tale: Innocence” (2019)

O videojogo "A Plague Tale: Innocence” alicerça-se, segundo os criadores, em “The Last of Us” e “Brothers: A Tale of Two Sons”, o que é notório no campo da narrativa, contudo em termos do design diria que se aproxima mais de algo como "The Order: 1886". O estúdio francês, Asobo, soube aproveitar as origens da cidade natal, Bordéus, para trazer para o centro da narrativa a Peste Negra e a Inquisição criando um cenário propício à produção de conflito e interesse dramático. Já a jogabilidade carece de coerência e síntese, ainda que se crie progressão ao longo do jogo, as mecânicas variam e mudam. Como exemplo, basta ver como em plena batalha final nos é oferecido acesso, pela primeira vez, ao verbo "correr" sem qualquer racional de suporte. Ainda assim, a arte e narrativa redimem a experiência.
Sendo a história o melhor de todo o jogo, junta-se-lhe arte de grande nível, tanto visual como sonora, menos na animação. A modelação e os modelos base usados são de grande detalhe e refinamento, sendo depois imensamente bem trabalhados na ilustração, tanto cor e luz, tudo envolvido em música de câmara barroca que acaba fazendo-nos sentir completamente imersos naquele mundo. Aliás, se os dois irmãos conseguem expressões dignas do nosso interesse, preocupação e compaixão, a praga de ratos consegue plenamente o nosso horror e tensão. Estes últimos são imensamente bem suportados pelos efeitos sonoros, e por isso não raras vezes damos por nós a recear que aquele mundo de ratazanas salte para fora do ecrã para o meio da nossa sala às escuras. A época da idade média resulta imensamente bem nas tonalidades castanhas escolhidas que lhe oferecem um caráter de autenticidade e de um tempo em que a madeira predominava na feitura dos espaços humanos. 
Se a animação funciona menos bem deve-o em parte à rigidez da interação que tolda também a jogabilidade, algo que dificilmente podemos separar. Ou seja, nem sempre os comandos nos obedecem totalmente, nem sempre os objetos se movem como esperados, nem sempre os personagens reagem como pretendido. Mistura-se a animação e o design numa tentativa de controlo da tensão da experiência mas que acaba a sugerir problemas de mau desenvolvimento. 

Se a IA, de forma geral, funciona bem, tanto no controlo dos personagens acompanhantes como dos inimigos, nestes últimos as capacidades perceptivas aumentam progressivamente sem qualquer razão, a não ser a de criar a sensação de progressão de dificuldade. Se no início podemos fazer stealth seguindo apenas pelas sombras, no final basta estar em linha com os soldados, não interessa a distância nem a luz, para sermos detectados, como se os soldados se tivessem tornado super-soldados. Isto acaba por elevar, em excesso, a dificuldade o que vai criando frustração porque contra as lógicas anteriores. Mas essa frustração não se fica pelo design, já que este acaba por produzir uma necessidade de repetição excessiva, seguindo lógicas de resolução por mera tentativa-e-erro, desligando-nos completamente do núcleo narrativo que está a ser contado nesses momentos.

O jogo salva-se pelo excelente trabalho realizado no design de narrativa, nomeadamente de personagens, com os dois irmãos a fundirem-se muito bem, tal como em “Brothers: A Tale of Two Sons”, indo mesmo além e aproximando-se por vezes da profundidade conseguida em "The Last of Us". O irmão mais novo, Hugo, não é mero acompanhante, nem Amicia é mera protectora deste. Existe uma verdadeira relação de irmãos com um arco-dramático completamente delineado que começa na fragilidade de lidar com mundo real, próprio de crianças da nobreza, e evolui para o amadurecimento e autonomização de ambos os irmãos. Não se pode dizer que é uma história com grandes ideias para comunicar, mas é uma história perfeitamente delineada, assente no valor universal da inocência, totalmente coerente e capaz de sustentar o nosso interesse ao longo de todo o jogo. Tanto assim é que os escusados bosses finais, repetitivamente difíceis, só são ultrapassados por nós porque desejamos veemente ver aqueles irmãos chegarem ao fim das suas jornadas.

junho 14, 2020

Da melancolia polar

Per Peterson é norueguês e aquilo que escreve vem impregnado de um sentimento distintamente melancólico, típico dos países próximos dos pólos. A leitura do seu mais conhecido livro, "Cavalos Roubados" (2003) fez-me voltar a um sentir que já conhecia, mas de outro meridiano, o Alasca de David Vann. O livro não é perfeito, tem altos e baixos, mesclas de universos menos interessantes, algumas repetições, mas o sentimento percorre todo o livro, impregna todas as suas dimensões, e é ele que fica, como se o autor nos transportasse para dentro da sua cúpula emocional.
O modo como Peterson consegue criar esta cúpula sensorial também se aproxima de David Vann, no sentido que ambos tratam tragédias humanas, mas fazem-no com imensa subtileza. Não usam a tragédia para produzir lágrimas fáceis, não usam a dor para nos deitar abaixo, antes trabalham numa linha fina entre a emoção e a cognição. Dão-nos a conhecer, ou levam-nos a trabalhar para compreender o que aconteceu, mas fica do nosso lado produzir a emocionalidade a partir daquilo que compreendermos. 

Para o leitor mais desatento pode até parecer que o autor não dá a importância devida, ou não explica, pode até parecer desprovido de sentido que não se aprofunde a tragédia, que não se dê mais explicações, e mesmo até não nos permita, enquanto leitores, “usufruir” daquele sofrimento. Mas é isto mesmo aquilo que distingue este sentir mais polar, no qual existe uma certa distância humana. Em que se sofre, em que se procura o fim de tudo, mas não se culpa ninguém, nem nenhuma situação por isso. Como se se pairasse por cima das tragédias, elas nos dissessem respeito, mas fizessem parte da realidade que vivemos, inevitáveis, mas ainda assim dolorosas, muito dolorosas...

Só descobri no final do livro aquilo que aconteceu ao autor em 1990, e ainda bem. Ajudou-me a compreender melhor parte do sentimento que trespassa o livro. Continuo sentir que existe ali muito do traço emocional emanado da polaridade geográfica, mas claro que as vidas pessoais de quem escreve têm inevitavelmente o seu impacto.

Esqueçam o título, esqueçam a capa.