julho 05, 2020

Videojogos enquanto simulacros do recreio escolar

Uma criança de 8 anos, em Espanha, escreveu uma carta aos pais pedindo que o proibissem de jogar Fortnite. A mãe publicou a carta no Twitter, e como seria de esperar, depois dos já comuns ataques a tudo o que se torna viral, decidiu fechar a conta no Twitter. Mas a carta pode ser encontrada online, e é o que me interessa aqui, não por conhecer a criança ou os seus pais, mas antes porque exemplifica aquilo que se passou com milhões de crianças em todo o mundo em tempos de COVID-19 e isolamento, sendo um assunto que interessa contextualizar e debater.
"Sinto falta daquele tempo em que ia à escola para ter tempo para tudo. Quando era eu mesmo e não o que sou agora, que passo todo o dia no Fornite."
"No meu coração, sei que mereço que me proíbam os videojogos, mas o meu cérebro diz que necessito de jogar videojogos."
"Mãe ou pai, se estão a ler, proíbam-me de jogar videojogos. É o melhor para mim".
Crianças de todas as idades, habituadas a socializar, interagindo verbal e fisicamente numa forma diária, foram obrigadas, de um dia para o outro, a encerrar-se em casa. Os professores e amigos desapareceram e durante mais de 2 meses todas estas crianças foram confinadas à presença e convivência exclusiva com pai, mãe e irmãos. Até os avós lhe foram vedados, sendo mesmo etiquetados de perigo para esses seus familiares. Não houve mais escola, mas também não houveram mais atividades, nem futebol, nem piscina, nem música, nem teatro, nem cinema, nem sequer o parque, os jardins ou as bicicletas. 

2, 3 ou 5 pessoas encerradas dentro de 4 paredes com acesso ao mundo exclusivamente realizado por via de janelas de pixels, micros e auscultadores. Claro que podiam ler, podiam ver filmes, podiam ouvir música, podiam pintar, desenhar, escrever mas nada disso poderia substituir o outro. A visceralidade da interação com o outro semelhante é insubstituível por qualquer meio, qualquer criação, história ou jogo. 

Não foram os videojogos, como Fortnite, que viciaram as crianças. Antes, estes videojogos pela sua natureza social, cooperativa e colaborativa, por meio da internet, providenciaram aquilo que mais falta lhes fazia, o contacto e a relação com os outros. Jogar Fortnite não é o mesmo que jogar Pac-man ou Tomb Raider, nem o mesmo que ver um filme ou ler um livro, o espaço de Fortnite funciona como simulacro do recreio das escolas. Fortnite recria o espaço e providencia o acesso a milhões de jogadores, permitindo que estes se encontrem ali e interajam, por meio de um Avatar (boneco) e a sua própria voz, com os seus pares. O espaço é preenchido com muitos objetos visualmente atrativos, inexistentes no recreio de qualquer escola, mas que são imaginados durante muitas das brincadeiras nesses espaços reais. 

Em essência, o que acontece dentro do Fortnite e que faz com que todos os dias aquelas crianças queiram ali voltar, passa muito longe dos objetos mais ou menos educativos — tais como armas, motorizadas, roupas e uma miríade infinita de outros novos que surgem ali todos os dias — e foca-se quase em exclusivo na chama do contacto humano. Da agência permitida dentro de um mundo que é observável pelos colegas e amigos, a quem se pede ajuda por micros e de quem se recebem conselhos por auscultadores, que se juntam para colaborativamente vencer outros, ou para construir cenários e espaços até agora só possíveis na sua imaginação. 

É isto que torna Fortnite tão relevante, mas se se tornou no símbolo desta pandemia para tantas crianças, foi também porque tecnologicamente a Epic, empresa criadora do jogo, soube posicionar-se como nenhuma outra empresa. Todo o mundo virtual de Fornite é de acesso gratuito (o modelo de negócio assenta na aquisição de objetos dentro do mundo de jogo), mas isso ainda não é tudo, ele é jogável em qualquer consola, em qualquer computador e em qualquer telemóvel. A esmagadora maioria das crianças em idade escolar têm hoje acesso a um smartphone e por isso, independentemente do estrato social, conseguem entrar e jogar com os seus amigos, rever e recordar, conversando e brincando, para convencer os outros da sua presença e relevância no seio do tecido social que constitui os grupos de amigos. Isto é vital para qualquer ser-humano, e mais ainda para qualquer criança em formação.

Por tudo isto, ler nesta carta um apelo ao fim dos jogos, um dedo acusatório a Fortnite é não compreender o enquadramento nem querer estruturar o contexto que a suporta. Estamos perante uma criança que ao escrever esta carta não está a gritar contra o Fornite, antes está a gritar por tudo o que perdeu e de que sente falta — a escola, a música, o desporto e os amigos. Porque um simulacro virtual de um recreio escolar não pode substituir-se a todas as facetas da vida de uma criança. Claramente ajuda, mas avatares virtuais são simulacros, não são pessoas, mas ainda mais relevante, não é possível transferir para dentro de um ambiente virtual tudo aquilo que constitui a agência de um ser-humano em crescimento num espaço real. Por isso a criança está cansada de Fortnite, ela continua a voltar lá porque é o mais próximo que tem desse mundo conhecido e anterior, mas horas e horas ali dentro não lhe aportam as experiências de que sente falta, e por isso o seu "coração" queixa-se, porque a ilusão mental criada pelo seu cérebro não é forte o suficiente para o fazer esquecer todas as emoções que o mundo anterior lhe proporcionava.

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