maio 23, 2020

O Sino (1958)

Iris Murdoch é para mim uma escritora muito particular por ser capaz de produzir uma escrita carregada de erudição e ao mesmo tempo imensamente acessível. Apresenta enorme densidade em elaboradas construções frásicas que funcionam como belos descritivos de ação e pensamento que nunca cansam. Por outro lado, consegue fazer tudo isso mantendo um fio de enredo imensamente intenso, com um sucedâneo de eventos que captam o nosso interesse, e nos levam a questionar sobre o que vai acontecer a seguir, enquanto nos deliciamos com os interiores de cada personagem.
O “Sino” não está muito distante do “O Mar, o Mar” (1978), temos uma pequena comunidade de pessoas, cada uma com as suas particularidades, mas unidas por um mesmo desejo, encontrar-se, perceber o que podem ainda fazer das suas vidas que os faça sentir melhor consigo próprios e com os outros. Temos espiritualidade pelo meio, com um convento vizinho, mas o centro é mesmo a quinta para onde se retiram na ânsia por, através do afastamento da realidade corriqueira cheia de prazeres e culpas, encontrar a transcendência que lhes permita redimir tudo o que para trás ficou.

O “Sino”, apesar de aqui apelidado de Gabriel (o anjo mensageiro de Deus), acaba por não entregar as mensagens que todos esperam, criando uma conclusão anti-climática, mas ao mesmo tempo realista, porque de acordo com os resultados destes retiros que tantos de nós prezamos e passamos tempos a imaginar que podiam por nós, pelo interior, fazer milagres. Relembre-se “Walden” (1854) de Thoreau, hino ao escape e retiro, que acaba por colocar a nu o quanto tudo não passa de mero luxo inventado pela burguesia, birra em jeito de confronto das regras instituídas para viver em sociedade.

Mas o que me fica desta leitura é muito mais o mundo criado, a densidade humana povoado pelo interior de cada personagem, as suas relações, rejeições, ânsias e medos. Murdoch enreda belissimamente o que tem para contar, e transporta-nos para o universo por si criado, fazendo-nos sentir bem no seu mundo.

maio 01, 2020

Teoria Geral do Esquecimento

É um livro curto, mas se se lê numa tarde deve mais às brilhantes competências do autor no contar de histórias. Com uma premissa digna do género fantástico — uma agorafóbica que se empareda dentro de um apartamento no topo de um prédio de luxo em Angola durante os tumultos da transição para a independência e aí permanece por 30 anos sozinha — as parcas 250 páginas parecem voar na nossa frente, tecendo ficção e História de vários povos e especialmente de um continente. No final, respira-se África, respira-se humanidade, sente-se uma enorme leveza, apesar do Esquecimento, a dignidade nunca foi perdida.
Foi o primeiro livro de Agualusa que li, tendo-me apanhado totalmente de surpresa. Aproximei-me por causa da premissa, após a tomada de conhecimento da mesma numa lista de romances africanos, mas assim que abri a primeira página só consegui parar para almoçar e depois no virar da última página, o que dá bem conta do virtuosismo de Agualusa. Tenho de dizer que me ajudou imensamente o enquadramento do momento da independência de Angola escrito por Kapuściński — "Mais um dia de Vida" (1975) —, já que foi como voltar a esse a livro, e partir daí para uma outra história, que acabaria por se revelar muito mais do que isso.


[Muito breve interpretação com possível spoiler]

Não querendo revelar completamente o sentido da metáfora, aquilo que Agualusa procura dizer está centrado no título, sendo a personagem de Ludo quem encerra o livro questionando-se a si mesma sobre o porquê de todos aqueles anos perdidos, o porquê de se ter votado a todo aquele esquecimento, o que inevitavelmente nos obriga a pensar no continente, e no eterno esquecimento de si e por todos nós. No meio do conceito, acabamos por começar a criar uma teia mais alargada de sentidos desde logo a mais simbólica criada pelos animais-personagens — o cão albino Fantasma, o macaco Che Guevara, o hipopótamo Fofo e o pombo-correio Amor, mas também as origens da fobia de Ludo com base num evento na Costa Nova. Tudo é trespassado por uma teia narrativa que cruza sacos de diamantes com amantes, pais, protetores e condenados próprios do melhor que o realismo mágico nos tem dado.
O livro é curto, mas o fôlego é enorme, oferecendo profunda inspiração. O mundo do Esquecimento agarra-se a nós e preenche toda a nossa vontade de sonhar. Por várias horas não conseguimos desligar daquele universo, sentindo apenas que é ali que queremos estar, naquele mundo que produz, por entre a melancolia, uma visão de alcance sem fim graças à luz límpida de África que nos preenche de esperança.


Nota quantitativa no GoodReads.

abril 27, 2020

O Enigma de Nabokov

Li vários livros de Nabokov, li sobre a sua pessoa, os seus gostos, preferências e aversões, fui visitar a sua casa de infância e juventude quando estive em São Petersburgo, no entanto nunca compreendi muito bem porque era um autor que eu amava sem conseguir amar completamente a sua obra. “Lolita” deslumbrou-me totalmente em termos formais, contudo, nenhum outro livro seu alguma vez se aproximou. Ao mesmo tempo, não conseguia compreender o seu total desprezo por Dostoiévski, chocava-me ler o que dizia sobre ele, não muito diferente do que me choca ler o que diz Lobo Antunes sobre Fernando Pessoa. E agora, depois de ler "Fala Memória" (1951), julgo ter finalmente compreendido o enigma, sobre o que me deterei nas próximas linhas.
Nabokov teve uma infância digna da monarquia, mas com pais profundamente preocupados com a sua formação, tendo ele, por inclinação própria, sabido bem aproveitar tudo o que lhe foi oferecido. Antes de ter sido exilado, em fuga da Revolução Russa, para Cambridge em 1919, onde foi fazer o seu curso com cerca de 20 anos, tinha já viajado por quase toda a Europa. Aprendeu inglês antes do russo, falava e escrevia fluentemente além destas o francês e o alemão. O seu pai era profundo amante de literatura e ofereceu-lhe todo um mundo de leituras desde a mais tenra idade. Nabokov teve todas as condições para aceder ao melhor de tudo o que ser humano tinha criado até então nas artes literárias. Além disso, começou a prática de escrita desde muito cedo. Juntando a inclinação própria e diga-se alguma sorte pela particularidade oferecida pela sinestesia e o ambiente apropriado, Nabokov iria tornar-se num maestro das letras. A sua prosa evoluiria, o poético ganharia enorme densidade, e isso serviria para impulsionar intensamente a sua arte. Contudo, sinto que Nabokov seria sempre mais artesão do que artista.

Sempre considerei estranhos os dois papéis mais reconhecidos em Nabokov, escritor e colecionador de borboletas, por qualquer razão nunca senti que combinassem. No entanto, a relacioná-los colocava a beleza. A beleza das suas frases e a beleza dos padrões das borboletas. Foi agora, ao ler as suas memórias que compreendi o quão essas duas partes se aproximam, e como definiam a própria escrita de Nabokov. Desde logo, essa relação é evidente no modo distante e frio como fala da sua infância e família, como se tivesse estado sempre a janela vendo os eventos passar. Perto do final, demonstra para meu maior espanto, o prazer que retirava da criação de problemas de xadrez (estes problemas consistiam em montar uma jogada no tabuleiro e definir um número máximo de jogadas permitidas para fazer xeque-mate). O gosto por jogar xadrez não é per se qualquer motivo de surpresa, mas obter profundo prazer na conceção e resolução de problemas formais é um marcador indissipável da psicologia de um criador.

Esta análise que faço está naturalmente imbuída do trabalho que tenho vindo a desenvolver no campo dos perfis psicológicos e do modo como estes definem a nossa curiosidade e motivação, no modo como nos predispõem para o envolvimento com a realidade. Tendo eu definido três perfis — Abstracionista, Experimentador, Dramatista —, Nabokov parece não se encaixar em nenhum, ou encaixar nos dois mais opostos. Em favor do abstracionista, Nabokov apresenta o seu lado colecionista obsessivo e a resolução de problemas. Para o lado dramatista, Nabokov apresentava naturalmente a sua literatura e os seus romances. Contudo, da análise da sua literatura e relação com as qualidades de cada perfil, a conclusão a que chego é que Nabokov foi muito mais abstracionista do que dramatista, ou seja, foi alguém focado em sistemas e estruturas, pouco interessado em pessoas e nos seus dramas, algo que espero demonstrar nos pontos seguintes:


1 – Nabokov não gostava de Dostoiévski porque não compreendia a dramatização da psicologia humana colocada em cena por este. Para Nabokov a escrita era fraca, os enredos repetitivos, faltava beleza formal. Mas Nabokov na verdade não compreendia o que se passava efetivamente no interior de Raskólnikov, e menos ainda daqueles que o liam.

2 – Do mesmo modo Nabokov ridicularizava Stendhal, Balzac, Mann, Faulkner, Camus ou Roth, escritores que muito fizeram pelo avanço do psicologismo no romance, em choque frontal com a larga maioria dos escritores e críticos e de forma ostensiva. Na verdade, Nabokov não conseguia chegar a certos tipos de escrita, não por não ser capaz, mas porque não lhe tocavam, não lhe falavam.

3 - Durante alguns anos admirei Nabokov por ser frontal e falar abertamente contra Sigmund Freud, contudo só agora compreendi que aquilo que o incomodava nada tinha que ver com os seus métodos muito pouco científicos, mas apenas e só com o facto deste trabalhar a psicologia humana.

4 – A curiosidade de que Nabokov terá visitado os 46 estados americanos, referido neste livro mais de uma vez, em busca de borboletas, é mais do que isso, é um elemento central para compreendermos o seu comportamento obsessivo. Nada o faria impedir de ir atrás das suas metas e objetivos, eles foram sempre o seu norte.

5 – Do mesmo modo, os ataques a Boris Pasternak e Alexander Solzhenitsyn, os dois russos a ganhar o Nobel (1958 e 1970) quando Nabokov já era considerado um génio das letras, têm mais que ver com o competitivo inato em Nabokov do que com qualidades desses autores ou até mesmo inveja. O Nobel é um prémio, apesar da competição ser algo exótico no domínio da narrativa, das histórias e das letras, mas era isso apenas que interessava a Nabokov, atingir os objetivos.

6 — Um dos seus livros mais estudados é um poema, mas não é um poema qualquer. “Pale Fire” é um conjunto de significados escondidos por debaixo da capa e forma de um poema, mas “Pale Fire” não é nenhum poema, porque antes de o ser é um puzzle. Os críticos deslumbram-se com as intrincadas métricas que perfazem o poema de exatas  999 linhas, e o modo como os cantos podem ser lidos em série ou paralelo, abrindo caminho ao chamado hipertexto e cibertexto. “Pale Fire” é um problema textual criado por Nabokov, tal como os problemas que adorava criar para xadrez.


Tudo o que elenquei não diz que Nabokov não era escritor, nem que não era dotado de génio na escrita, mas diz-nos que Nabokov era fraco contador de histórias e que na verdade tinha pouco para dizer. O seu foco foram eram coisas e objetos, os humanos eram para si secundários, não relevantes, tal como diz o próprio George Steiner:
"O caso de Nabokov parece envolver uma desumanidade profunda, ou, mais precisamente, uma desumanização. Há compaixão em Nabokov, mas é superada em muito pelo desdém elevado, sombrio." George Steiner, Grandmaster, The New Yorker, December 10, 1990, pp. 153-157.
Para alguém que se considerava a si mesmo um génio e que prezava a arte acima de tudo, parece parco. Porque se admitimos a um cientista que se foque nos objetos em vez das pessoas é porque o seu trabalho contribui para o avanço do conhecimento humano que por sua vez servirá a todos. Já quando um artista se foca apenas na sua arte, no virtuosismo da mesma desligada de tudo e todos, é apenas a si mesmo que serve. No final de cada livro seu, fico sempre encantado com a forma, com a estrutura, com o virtuosismo, mas o que retiro verdadeiramente da leitura sabe a pouco. O único livro em que a forma me bastou, talvez porque tinha de bastar para compensar a abjeção da história contada foi “Lolita”, e é falando sobre esse que quero terminar, porque acredito que o enigma aqui desvelado nos pode ajudar a compreender um pouco melhor essa obra.

“Lolita” apresenta uma escrita absolutamente singular. Não é mera poesia, é toda a textura textual que cria um sentimento de espanto e surpresa no modo como o universo nos vai sendo oferecido, do ritmo do texto às metáforas ricas. Por sua vez, toda essa beleza é contraposta à descrição do mais profundo horror. Esse horror continua, até hoje, a não ser compreendido por quem o lê, gerando interrogações e dúvida sobre o que verdadeiramente está em questão na história que se conta. Contudo, a partir do que discuti acima, parece-me que a explicação está no perfil psicológico de Nabokov, alguém profundamente focado em coisas, não em pessoas. O seu foco era o livro, a obsessão pelo texto perfeito era total, já os personagens e os eventos eram apenas mais uma história, igual a tantas outras. O enigma emerge assim pela falta de empatia de Nabokov, pelo modo como se alheava completamente da relação emocional criada pelos personagens das suas obras com os seus leitores. O abjeto e nojo são por demais evidentes em “Lolita”, contudo Nabokov não parece apresentar nunca consciência de tal ao longo de todo o livro. Claro que se podem evocar sentidos escondidos na relação entre a beleza do texto e a beleza da ninfeta, contudo nada dessas interpretações poderá esconder o negrume do que se apresenta. Ou mais facilmente poderíamos dizer que pessoas más não fazem más histórias, para o que bastaria evocar Raskólnikov, mas para tal o escritor não poderia "esquecer-se" de evidenciar de que lado estava.

abril 25, 2020

Problemas do Estoicismo, de Seneca a Epictetus

Passei os últimos meses à volta de vários livros de Seneca (4 a.C. — 65 d.C) — “De brevitate vitae” e “Epistulae morales ad Lucilium” — e Epictetus (55—135) — "Enchiridon” e “Discursos”. A razão pelo que fiz este investimento tem que ver com um certo encantamento pelo Estoicismo que me perseguia há décadas e que acabaria por aumentar ainda mais com a leitura de “Meditações” de Marcus Aurelius (121—180). Contudo, ao chegar a este ponto, pós-leitura dos textos originais, dos dizeres de cada um, tenho de dizer que o encantamento se desfez. Nem Seneca nem Epictetus me convenceram, antes pelo contrário ditaram o fim da minha procura. Apesar de tal, continuo a reconhecer qualidades em ambos, mas separo-os de Marcus Aurelius, e espero conseguir explicar porquê ao longo das próximas linhas.

Epictetus e Seneca


Mais Religião do que Filosofia
O estoicismo tem sido, do meu ponto de vista, definido erradamente como corrente filosófica. Na verdade, o estoicismo é mais uma religião, e é aqui que reside o seu principal problema. Porque, de uma forma simples, o estoicismo nunca esteve preocupado em estudar e compreender a realidade, a existência, ou sequer as morais. O estoicismo, objetivou muito mais à determinação do que era certo e do que era errado. O pensar sobre ou a reflexão aprofundada sobre causas e motivações pressupõe uma evolução contínua das dinâmicas que sustentam a realidade que não se coaduna com a determinação de certos e errados, de deveres e direitos. Isto faz sentido no âmbito de uma religião, sem qualquer carga pejorativa, já que ela serve na determinação de caminhos de pertença a grupos: “é certo isto, é errado aquilo, és igual a nós porque aceitas o certo e condenas o errado” se “acreditares no mesmo que nós, serás verdadeiramente feliz”, de outro modo “a infelicidade irá perseguir-te para todo o sempre”.

Repare-se como Seneca não está preocupado em discutir o que cria a sensação de passagem de tempo, ou porque sentimos que o tempo passa rápido ou lento, ele tem apenas certezas, e é isso que oferece a quem o quiser ouvir:
“Não é que tenhamos um curto espaço de tempo, mas que desperdiçamos muito dele. A vida é longa o suficiente e foi dada em medida suficientemente generosa para permitir a realização das maiores coisas, se a totalidade dela for bem investida.” In “Da Brevidade da Vida”
Todo o seu discurso assenta na ideia de estar na posse da verdade e de a poder demonstrar, mesmo quando aquilo que diz vai contra aquilo que fazia. Seneca foi um dos principais conselheiros das artimanhas políticas do Imperador Nero e também um dos homens mais ricos de Roma, repare-se nalgumas das frases do “Epistulae morales ad Lucilium”:
“De longe mais importante será viver como se estivéssemos sempre perante o olhar de algum homem de bem; eu já me darei por satisfeito se tu agires sempre como se estivesse a ser observado, uma vez que a solidão é conselheira de todos os vícios.” LIVRO 3, CARTA 25
“Faz o que te digo, pede conselho à filosofia, e ela te convencerá a não te importares com as contas! É esse então o teu problema, é por isso que adias a tua formação:  para não teres de recear a pobreza! E não será a pobreza desejável?” LIVRO 2, CARTA 17
Muitos de nós procuram na religião respostas, pressionados por um desespero criado pela ausência dessas. O melhor exemplo do verdadeiro filósofo foi e continua a ser Sócrates, conhecido pelo homem que fazia perguntas para as quais não tinha respostas. O mundo e nós, continua tudo a ser uma incógnita: de onde viemos e porque estamos aqui? O problema são os nossos receios e fantasmas internos, por sua vez alimentados pela nossa intrínseca necessidade de viver em comunidade. Não podemos viver sozinhos, precisamos dos outros, por isso é mais fácil encaixar no pensamento de um grupo e prosseguir. Porque o pensamento precisa de um corpo biológico para estar vivo, sem corpo não existe pensamento, logo o corpo e as suas necessidades sobrepõem-se inevitavelmente aos desejos existenciais. Assim torna-se preferível atirar para o fundo do nosso interior existencial a voz que clama por repostas, tapando a dúvida com verdades redondas e aceites por todos, concluindo que “viver na ignorância é uma bênção”.

Seneca e Epictetus não pretenderam oferecer respostas à razão por que estamos aqui, nesse sentido nunca quiseram tornar-se gurus religiosos. Ambos reconheceram a complexidade da realidade, e a nossa incapacidade para alcançar a compreensão do todo. Existem alguns princípios enunciados por ambos que servem de guia ao resto do seu trabalho, mas de uma forma geral, ambos se focaram muito mais na moral e comportamento. E se isto nos obriga a reconhecer que de algum modo foram mais do que simples religiosos, quando analisados em detalhe, parecem-nos ainda menos, talvez não menos, mas igualmente pouco relevantes.

Tenho de confessar que o meu primeiro choque com a possibilidade do Estoicismo na ser nada daquilo que eu entendia ser, me chegou tarde e apenas por via da leitura de “A History of Western Philosophy” de Bertrand, não tanto pela forma como ele destrói por completo a Ética de Aristóteles, mas primeiramente pela forma como ignora totalmente Seneca. Bertrand na pequena sumula dedicada ao estoicismo fala quase apenas dos pensadores gregos, dedicando pouco à vertente romana, e nessa falando quase exclusivamente das perspetivas de Epictetus e Marcus Aurelius. A principal razão prende-se com o facto de os romanos em nada terem avançado a filosofia proposta, e terem apenas se dedicado à discussão da moral, ainda que sustentados na base filosófica grega. Vejamos então essa base.

Fatalismo, a base da Contradição Estoica
O principal ataque às ideias dos estoicos surge normalmente por causa do determinismo. Os seus primeiros proponentes, os gregos Zenão (333 — 263 a.C.) e Crísipo (280 —208 a.C.), enredaram-se num conjunto de ideias que numa primeira linha parecem imensamente atrativas mas quando escrutinadas desembocam em paradoxos.

Zenão, o impulsionador da doutrina, defendeu a felicidade humana com base no abandono da emoção — emergente das paixões e posses —, contudo para garantir esse abandono era preciso uma recompensa lógica, para o que se agarrou a ideia de que tudo é comandado pelo destino, nada do que façamos alterará o percurso das coisas. Quando se acredita na ausência de esperança, na ausência de possibilidade de se atuar sobre as condicionantes, não é apenas a resignação que se instala, com esta emerge algo poderoso, a perda do medo, que acaba por oferecer uma força tremenda para continuar a sonhar interiormente.

A base teórica é típica de um helenismo ligado ainda ao misticismo, oferecendo a perspetiva de um mundo feito de elementos — fogo, ar, água, terra — que tudo condicionavam em ciclos. Assim tudo vinha do fogo e tudo voltava ao fogo. O mundo que vivemos é um ciclo eterno, de construção e destruição, não adianta lutar contra isso. De algum modo isto liga-se aos ciclos da vida do Budismo e às suas noções do carma. Mas podemos ligar aqui o próprio cristianismo, apesar de não se apresentar como ciclo, porque recorre à perspetiva narrativa — uma história com princípio, meio e fim — com o paraíso onde tudo termina! O budismo e o estoicismo só em aparência diferem, já que o ciclo continuado é mera fuga à questão do: “e depois do paraíso?”

Crísipo, sucessor de Zenão, foi mais longe. Sendo, de todos os personagens do Estoicismo, aquele que mais se preocupou em criar pensamento estruturado e capaz de ligar todas as esferas da realidade numa corrente filosófica, acabaria sendo o que mais longe levaria a questão do determinismo, exatamente pela necessidade de sustentar a argumentação. Assim para Crísipo, segundo Cícero:
“Se houver algum movimento sem uma causa, nem toda proposição será verdadeira ou falsa. Pois aquilo que não tem causas eficientes não é verdadeiro nem falso. Mas toda a proposição é verdadeira ou falsa. Portanto, não há movimento sem uma causa. E se é assim, todos os efeitos devem a sua existência a causas anteriores. E se é assim, todas as coisas acontecem pelo destino. Segue-se, portanto, que o que quer que aconteça, acontece pelo destino.” In “Tratado do Destino” (44 a.C.)
Se tiverem curiosidade em aprofundar esta ideia, recomendo vivamente a série de televisão “DEVS” (2020) de Alex Garland que usa exatamente este princípio para estruturar toda a epistemologia de suporte ao universo da série.
Mais tarde Epictetus proporia uma variação deste determinismo no seu Manual do Estoicismo (Enchiridion), dividindo o mundo em duas metades, logo na primeira regra:
“Todas as coisas existentes se dividem da seguinte forma: as que estão sob o nosso poder, e as que não estão.
Em nosso poder estão o pensamento, o impulso, a vontade de adquirir e a vontade de evitar e, resumidamente, tudo que resulta das nossas ações.
As coisas que não estão sob nosso poder incluem o corpo, a propriedade, a reputação, o cargo e, resumidamente, tudo aquilo que não resulta das nossas ações.
As coisas sob nosso poder são, por natureza, livres, não encontram obstáculos à sua frente, não são por nada limitadas; já as coisas que não estão sob nosso poder são fracas, servis, sujeitas a limitações, dependentes de outros fatores.”
In Enchiridion (135)
E aqui as coisas tornam-se mais complicadas, já que se coloca em convívio aparente, o determinismo e o livre-arbítrio, ou seja a essência do paradoxo do Estoicismo, como diz Bertrand Russell:
“Por um lado, o universo é um todo rigidamente determinístico, no qual tudo o que acontece é resultado de causas anteriores. Por outro lado, a vontade individual é completamente autónoma e nenhum homem pode ser forçado a pecar por causas externas.” In “A History of Western Philosophy” (1945)
No entanto, é aqui mesmo que que reside muito do interesse atual no Estoicismo, nesta conexão entre a inevitabilidade e a liberdade interior, já que a ausência de esperança no exterior, induz à perda de medo interior, e desse modo aumenta tremendamente a resiliência. Isto é tanto mais relevante quanto mais dura for a realidade vivida. Podemos ver isto mesmo em ação na terapia psicológica — Logoterapia — proposta por Viktor Frankl para lidar com o horror da vivência no campo de concentração de Auschwitz, que propõe:
“em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.” Em Busca de Sentido (1946)
Para este efeito, Frankl usa a divisão de proposta por Epictetus, entre o exterior e o interior. Em que podemos estar condenados por esse exterior, mas só nós podemos decidir sobre o interior. Assim, Frankl acaba a demonstrar que o paradoxo aparente do Estoicismo faz sentido em termos psicológicos, já que a ausência de medo faz nascer uma nova esperança:
“O prisioneiro que perdeu a fé no futuro — o seu futuro — estava condenado. Com a sua perda de crença no futuro, perdia também o seu domínio espiritual; deixava-se declinar e ficava sujeito à decadência mental e física.” in "Em Busca de Sentido" (1946)
Ou seja, e para terminar esta parte, nem tudo é menosprezável, e não é por acaso que o estoicismo serviria na definição do cristianismo, e o próprio cristianismo acabaria a durar séculos. Na verdade, em face da adversidade, estas abordagens ajudam, consolam, mantém-nos despertos para a possibilidade de algo melhor. O problema é que estas abordagens requerem a manutenção dessa adversidade, e se a vida é feita de adversidades, ela pode ser mais do que isso, por isso não se estranhe todo o caráter opressivo que a Igreja Católica soube tão bem imprimir no universo — desde o salvador torturado e preso numa cruz à imponência da sua arquitetura e claro, talvez o mais importante de tudo, a definição detalhada do Inferno e Purgatório — pois sem isso a teorização que a suporta não teria qualquer adesão.


A Psicologia da Ética e Modelos
Já acima falei do problema de Seneca, do “olha para o que eu digo, não para o que eu faço”, algo que não se aplica a Epictetus, este que nasceu como escravo, e teve de fugir de Roma por ordem do Imperador Domiciano que proscreveu todos os filósofos por volta de 93 d.C. Contudo, ambos se apresentam como portadores de verdade, e a questão nem sequer é saber se dizem ou não a verdade, a questão é saber se importa.

Vejamos aquilo que nos diz a psicologia sobre o modo como aprendemos a lidar com o mundo. A principal base da nossa ação constrói-se pela imitação. Tendemos a imitar os comportamentos daqueles que reconhecemos como gratificantes. Ou seja, se vir alguém roubar e viver uma boa vida sem nunca ser punido, enquanto ser humano tenderei a seguir esse caminho. Por outro lado, se vir que esse comportamento é efémero, que tarde ou cedo se é apanhado e punido, compreendo que é um comportamento que não devo seguir. O mesmo acontece quando vejo alguém que estuda e faz uma licenciatura, e depois tem um bom emprego, versus quem desiste de estudar e é depois fracamente recompensado.

Isto difere da venda de ideias sobre o que é certo ou errado, já que o certo e errado surge apenas pela avaliação das consequências, não da autoridade de quem fala. Que importa que os pais ou os governos digam que é importante estudar e fazer uma licenciatura, se depois as pessoas conseguem empregos piores, ou nem sequer emprego conseguem? Ou de que serve o pai dizer para não roubar ou não bater, e depois bater na mãe?

É por isso que é estranha a ideia dos gurus de auto-ajuda, dos pregadores de qualquer tipo, que pregam ideias que não praticam. Repare-se no paradoxo de termos um guru que vive dos rendimentos dos livros que escreve e das conferências que faz, que lhe permitem viver numa bela casa, com um bom carro, acesso a médicos e férias em bons hotéis e que depois vem clamar junto de pessoas na miséria, sem empregos, ou empregos precários, pessoas sozinhas sem família, ou com famílias disfuncionais, como se devem comportar para serem felizes. De que servem essas indicações? Essas pessoas e famílias precisam de saber como se comportar para serem felizes ou precisam de oportunidades para conseguirem sair da situação em que estão? Essas pessoas não precisam que lhes digam que a felicidade está dentro delas, precisam antes que lhes mostrem como sair da situação, que lhes proporcionem oportunidades para o efeito, e não serem usadas como coitadinhos a quem o guru explica o que é o mundo.

No entanto os gurus sobrevivem, porque produzem um discurso retórico que une os membros de uma comunidade e os faz sentir que estão todos no mesmo barco, ainda que cada um tenha de se desenrascar como puder. Reparem como as seitas e religiões emergem, não é graças ao pregador, elas vão buscar pessoas à comunidade que oferecem como exemplos de cura ou de ultrapassagem de problemas. Porque efetivamente, as pessoas não se deixam convencer por simples pregadores, sejam eles quem forem, as pessoas são convencidas pelo grupo que segue o pregador, “se os outros fazem?”, “se os outros continuam a ir atrás?”, “devem ter visto algo que eu ainda não vi”, “sabem algo que ainda não sei”, ou ainda, “não me interessa nada disto, não acredito, mas se sair deixarão de me falar, fico sozinho”. Isto não é uma questão de professor-aluno, o pregador não está a ensinar as suas audiências a tornarem-se pregadores. O que ele supostamente ensina, ou a razão por que as pessoas o vão ouvir, é porque ele detém, segundo a comunidade, um segredo, uma formula para a felicidade.

Na verdade, questões éticas e morais, não podem ser ensinadas por decreto, precisamos de as praticar e exemplificar, e sendo algo prático, mudam no tempo. Os decretos tendem a manter-se em registo para todo o sempre, as práticas e comportamentos evoluem, variam em função das condições de cada local e cada momento. Aquilo que era certo ou errado no tempo de Seneca é distinto do que é certo ou errado hoje, basta pensar na condição dos escravos ou da mulher nesses tempos.


Para finalizar, quero voltar a Marcus Aurelius, e a "Meditações", que é um livro diferente dos textos de Seneca ou de Epictetus. O livro de Aurelius foi escrito como registo diário íntimo, representa o seu pensamento em ebulição e evolução. Aurelius debateu-se com as teorias do estoicismo, defende-as porque quer acreditar nelas, mas debate-se com elas exatamente pela posição que ocupava tanto como general, como político e claro Imperador. Marcus Aurelius não pregou para que seguissem o que ele pensava, os seus escritos foram o escape que encontrou para lidar com aquilo que sabia estar errado em muito do que sentia. A escrita era a forma de lidar com a realidade bastante mais complexa do que a teoria. O seu papel enquanto modelo de moral servirá na medida daquilo que fez enquanto imperador, não daquilo que escreveu.



Nota: Não sou formado em filosofia. Estas notas dizem apenas respeito às leituras que fui fazendo e ao modo como as interpreto face ao restante conhecimento que detenho em distintos campos do saber. Deste modo assumo desconhecer grande parte da discussão filosófica em redor do Estoicismo. As ideias apresentadas dizem respeito a uma leitura de obras muito restrita.

abril 21, 2020

“Devs” (2020)

Alex Garland deu-nos anteriormente o livro “The Beach” (1996), depois escreveu os filmes de “28 Days Later” (2002) e “Sunshine” (2007), o videojogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2010) e o guião para “Never Let Me Go” (2010). Em 2014 fez direção pela primeira vez com “Ex Machina” e novamente em 2018 com “Annihilation”. Todas estas obras, sem exceção, possuem em si uma parte do talento de Garland. Mesmo em adaptações como “Never Let Me Go” do nobel Kazuo Ishiguro,  ou “Annihilation” de Jeff VanderMeer é possível sentir um pulsar que nos transporta até ao universo particular de Garland. “Devs” (2020) não é diferente, antes pelo contrário, é puro Garland estendido por 8 episódios, 6 horas de experiência audiovisual. Depois de começar, somos enredados numa trama de ficção-científica que cruza todos os nossos dilemas com as grandes empresas tecnológicas atuais e o desenvolvimento de um conceito hipotético que atiça a nossa curiosidade a ponto de só conseguirmos descansar nos créditos do último episódio.
O conceito apresentado é distinto, surpreende-nos e puxa pela nossa imaginação, contudo pouco depois percebemos como é posto em prática, o que o sustenta, no caso o determinismo, e começamos aos poucos a desligar por via de alguma descrença, mas Garland antecipa claramente isso e traz para a discussão a antítese do multiverso. Somos assim brindados com várias discussões instigantes sobre ambas as possibilidades e acompanhamos as mesmas até ao final. Não posso dizer que seja totalmente inovador, além do choque entre as ideias, muitas dessas têm sido amplamente discutidas, tanto nos diferentes media — livros, jogos e filmes — como na Física e Filosofia ao longo de séculos.
Provavelmente existe aqui a funcionar todo uma arte própria de Garland, tanto no domínio da escrita como no domínio do universo atmosférico da série que se edifica em cenários, música e fotografia absolutamente graciosos. Não posso dizer o mesmo das interpretações que têm momentos muito bons, mas apresenta também alguns momentos mais fracos. No entanto, a série consegue elevar-se a um nível de erudição raramente visto em televisão e manter a atração audiovisual intacta.

Deixo duas estrofes do poema "Aubade" de Philip Larkin, recitados por um dos personagens, já perto do final, que espero que sirvam para vos abrir o gosto e instigar a ir ver a série.
“I work all day, and get half-drunk at night. 
Waking at four to soundless dark, I stare. 
In time the curtain-edges will grow light. 
Till then I see what’s really always there: 
Unresting death, a whole day nearer now, 
Making all thought impossible but how 
And where and when I shall myself die. 
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.” 
 
The mind blanks at the glare. Not in remorse  
—The good not done, the love not given, time  
Torn off unused—nor wretchedly because  
An only life can take so long to climb 
Clear of its wrong beginnings, and may never;  
But at the total emptiness for ever, 
The sure extinction that we travel to 
And shall be lost in always. Not to be here,  
Not to be anywhere, 
And soon; nothing more terrible, nothing more true. 


       excerto de "Aubade" (1980) de Philip Larkin

abril 19, 2020

Augustus (63 a.C. — 14 d.C)

“Augustus” (1972) foi o meu terceiro livro sobre imperadores romanos — depois de “Meditações” (180) de Marcus Aurelius e “Memórias de Adriano” (1951) de Marguerite Yourcenar — assim como o terceiro livro de John Williams — depois de “Butcher's Crossing” (1960) “Stoner” (1965). Augustus não foi o melhor imperador, apesar de ter sido o primeiro após a República, nem representa, como livro, o maior feito de Williams, apesar de ter sido a sua última obra, na qual apresenta toda a envergadura do seu engenho. No entanto, Augustus foi um imperador absolutamente notável e Williams acabou prestando-lhe uma homenagem verdadeiramente memorável. Ler “Augustus” é uma viagem no tempo totalmente conseguida, porque criada a partir do interior de personagens que se dão a nós por meio de cartas em que se revelam e dão a conhecer o que era viver no centro do mundo no ano zero.


Começo por aquilo que mais me impressionou, a luta política e os bastidores do final da República e assassinato de Júlio César até ao nascimento da Roma Imperial, por meio da ascendência de Caio Octávio ao lugar de Augustus. Williams lança-nos no interior de um turbilhão de intrigas que chegam a parecer-se com telenovelas, mas que acabam por demonstrar a essência da verdadeira política. No final está sempre a questão do poder, mas o modo como se obtém e mais ainda como se mantém diz respeito à mais pura arte de controlo e manipulação social. Apesar da autocracia, o poder de um Imperador de nada valia se o povo, a massa do povo, não estivesse a seu lado. Para o efeito, a política torna-se sanguinária, não em termos de violência gráfica, mas em termos de calculismo e estratégia. Algo que o xadrez exemplifica muito bem, apesar de lhe faltar tudo o resto, já que não chegam as mecânicas de estratégia, requer-se também excelentes competências de leitura dos oponentes, a antecipação é fundamental, e ainda o carisma e grande empatia sem o que não se consegue o poder.


Confesso que senti, pela primeira vez, admiração pela arte da política, tal como pela ciência dos que a estudam, parece-me fascinante tentar compreender aquilo que envolve cada decisão em cada momento, porque tudo depende sempre dos olhos de muitos humanos e da capacidade de prever para onde estarão a olhar em cada momento. Por várias vezes recordei o ridículo do atual presidente dos EUA e pensei na quantidade de jogos que deverão passar-se por debaixo daquela cúpula, desde os que se pudessem lhe espetariam uma adaga até aos que o mantém ali como fantoche para acionar os seus desejos. É um mundo louco, ao mesmo tempo totalmente despegado da realidade dura das classes médias que garantem a riqueza das nações, mas recorrendo aos mais elementares comportamentos humanos que todas as classes reconhecem, desde a culpa à vergonha, passando pelo desejo, o medo e a falta deste. Por isso não admira a qualificação que Williams faz de Roma em termos da sua relação com a filosofia e a religião, pelas palavras de Estrabão de Amasia:
“That is the Rome that I live in now — a city of nearly a million people, I have been told. It is unlike anything I have ever seen. They come here from all over the world — black men from the burning sands of Africa, pale blonds from the frozen north, and every shade between. And such a polyglot of tongues! Yet everyone speaks a little Latin or a little Greek, so that no one need feel a stranger.”
(...)
“I begin to understand this Roman disdain for philosophy. Their world is an immediate one—of cause and consequence, of rumor and fact, of advantage and deprivation. Even I, who have devoted my life to the pursuit of knowledge and truth, can have some sympathy for the state of the world which has occasioned this disdain. They look at learning as if it were a means to an end; at truth as if it were only a thing to be used. Even their gods serve the state, rather than the other way around.”

No meio de todo este calculismo e grande frieza humana emerge um outro tema, muito relevante, a posição da mulher, nomeadamente da mulher em situação de poder. O casamento era, na Antiga Roma, central na manutenção dos equilíbrios de poder, pela força das grandes famílias que tinham de se rever nos seus líderes. Temos filhos e filhas a casar-se e a divorciar-se para simplesmente oferecer herdeiros, ou apenas a possibilidade desses herdeiros. Algo profundamente animalesco, no sentido de que as pessoas parecem existir apenas em função da sua potencial procriação. Ainda que espelho da condição humana, tudo o que fazemos ou somos é em função da nossa sobrevivência natural, contudo aqui é algo assumido em total consciência, como dever e missão do Ser. Impressiona, faz-nos ver o humano a uma luz distinta.


Se tudo isto era suficiente, a data do nascimento da Roma Imperial foi marcante não só por Augustus, mas também por uma enorme galeria de personagens da nossa História que atravessaram os destinos de Roma. Começando por Júlio César, o grande estratega militar, que se enamorou de Cleópatra, tendo o seu sucessor, Marco António, depois casado com ela e tido uma filha que acabaria por ser criada, após a morte de ambos, pela família de Augustus. Cícero o grande orador que morreria por ousar criticar Marco António. Horácio, Mecenas, Nicolau de Damasco, Ovídio, Seneca e Virgílio escrevendo a “Eneida” a pedido de Augustos. Enquanto tudo isto acontecia em Roma, e todos estes personagens imortalizavam a História, muito mais se passava no Egito, na Gália, na Bretanha, Espanha, em Atenas e claro em Jerusalém ainda que Williams tenha optado por se manter quase empre em Roma, talvez seguindo o próprio Augustus, como fica expresso nesta passagem:
“Unlike my uncle Julius Caesar, who found some odd renewal in such extended travels, I never felt at home in those distant lands, and always longed for the Italian countryside, and even Rome.”
No final do livro é muito importante voltar à página de abertura na qual John Wiliams diz:
“I have changed the order of several events. I have invented where the record is incomplete or uncertain; and I have given identities to a few characters whom history has failed to mention… With a few exceptions, the documents that constitute this novel are of my own invention – I have paraphrased several sentences from the letters of Cicero, I have stolen brief passage from the acts of Augustus, and I have lifted a fragment from a lost book of Livy’s history preserved by Seneca the Elder.”
Um dos erros ou alterações introduzidas por Williams que eu detectei após pesquisa, foi a menção à proscrição dos filósofos em 100 a.C., o que na verdade só aconteceria 200 anos depois, em 100 d.C pelas mãos do Imperador Domiciano, e que acabaria por levar Epictetus até à Grécia.

Para terminar, deixo excertos da última parte do livro, o derradeiro ano de vida de Augustus, em que este olha para trás, refletindo sobre o que foi, aproximando-se imensamente de Marcus Aurelius.

“One does not deceive oneself about the consequences of one's acts; one deceives oneself about the ease with which one can live with those consequences.”
“When I was young, I would have said that loneliness and secrecy were forced upon me. I would have been in error. As most men do, I chose my life then; I chose to enclose myself in the half-formed dream of a destiny no one could share, and thus abandoned the possibility of that kind of human friendship which is so ordinary that it is never spoken of, and thus is seldom cherished.”
“The young man, who does not know the future, sees life as a kind of epic adventure, an Odyssey through strange seas and unknown islands, where he will test and prove his powers, and thereby discover his immortality. The man of middle years, who has lived the future that he once dreamed, sees life as a tragedy; for he has learned that his power, however great, will not prevail against those forces of accident and nature to which he gives the names of gods, and has learned that he is mortal. But the man of age, if he plays his assigned role properly, must see life as a comedy. For his triumphs and his failures merge, and one is no more the occasion for pride or shame than the other; and he is neither the hero who proves himself against those forces, nor the protagonist who is destroyed by them. Like any poor, pitiable shell of an actor, he comes to see that he has played so many parts that there no longer is himself.”
“It was my destiny to change the world, I said earlier. Perhaps I should have said that the world was my poem, that I undertook the task of ordering its parts into a whole, subordinating this faction to that, and adorning it with those graces appropriate to its worth. And yet if it is a poem that I have fashioned, it is one that will not for very long outlive its time. When Vergil died, he earnestly beseeched me to destroy his great poem; it was not complete, he said, and imperfect. Like a general who sees a legion destroyed and does not know that two others have triumphed, he thought himself to be a failure; and yet his poem upon the founding of Rome will no doubt outlast Rome itself, and certainly it will outlast the poor thing that I have put together. I did not destroy the poem; I do not believe that Vergil thought I would. Time will destroy Rome.”

Textos do original, mas lido na versão portuguesa pela D. Quixote. Nota quantitativa no GoodReads.

abril 12, 2020

Literatura como arena de debate

Em "Elizabeth Costello" (2001) Coetzee cria uma nova abordagem ao romance usando ensaios seus, textos escritos e previamente publicados de não-ficção, que coloca na boca de uma personagem ficcional, que depois é obrigada defender-se da crítica. Parece uma forma de auto-questionamento, como se Coetzee quisesse por à prova as suas próprias ideias e crenças recorrendo ao romance como arena de debate virtual, usando as suas propriedades de simulador de realidade para se confrontar consigo mesmo. O resultado é muito impressivo, com um ritmo balanceado entre a racionalização e a sensorialidade, oferecendo conclusões muito atuais sobre a certeza e a verdade.
São 8 capítulos que debitam 8 conferências da escritora Elizabeth Costello, não são 8 temas, por que algumas conferências ampliam e oferencem diferentes perspectivas, do mesmo modo que nem todas as 8 foram alvo de publicação prévia de ensaio de Coetzee, as últimas 2 não foram. De entre os temas, temos:

1. A importância da literatura e seu criador, e ainda o fim inevitável da nossa passagem por esta vida.
Começa de forma muito racional, fica-se com a ideia de que o livro vai ser uma espécie de discussão meta-literária, interessante, mas desligada emocionalmente.

2. As propriedades e distinções do romance africano, nomeadamente os fatores da oralidade
Começamos a sentir Costello, começamos a perceber que é mais do que um ser racional, que sente e se sente, nomeadamente quando discorda.

3 e 4. Os direitos dos animais e o Holocausto
Aqui atinge-se um primeiro clímax, o racional fica para trás, é tudo força emotiva, é tudo dureza e violência verbal, somos levados a questionar-nos, quase mesmo a parar de ler de tão horrível o que estamos a imaginar.

Mas é aqui que Coetzee usa de forma mais extensiva a arena virtual, já que segue para uma segunda parte onde questiona tudo o que disse em defesa dos animais, colocando em causa ou em debate os extremos, e os dedos acusatórios.

5. Ataque às Humanidades pela Teologia
Neste ponto parece que mudamos totalmente, e voltamos à racionalização completa, mas é aqui que Coetzee nos surpreende, nos apanha de surpresa e nos tira o tapete. Antes de entrar aí, dizer como este capítulo me atirou de volta à leitura de “Incompletude” de Goldstein, pelo oposto desse livro. Em Incompletude é de ciência exata que se trata, de certezas absolutas, mas as humanidades não lidam com certezas absolutas, e de repente isso serve de mote à teologia para as questionar, e nós com ela, mesmo sabendo que não existe ali qualquer razão, porque a razão aqui não se aplica. É um momento brutal de ataques e contra-ataques entre duas personagens ficcionais, que facilmente poderão ter surgido na vivência de Coetzee enquanto professor universitário das humanidades.

O empenho na discussão sobre o valor das humanidades é tão grande que quase sentimos um choque elétrico quando entra a sensorialidade em bruto. Coetzee joga claramente nesse choque, sabendo que elevou o discurso a um nível de desapego emocional, de repente reenquadra toda a cena, e por meio de um simples flashback coloca-nos no lugar de voyeur, enquanto sentimos o arrepio que faz o livro tocar-nos bem dentro.

6. A descrição do Mal
Este é o ponto menos conseguido, talvez porque estando a aproximar-se dos questionamentos finais, Coetzee opte por começar a baixar o tom, ou porque a metáfora sensorial usada, apesar de imensamente poderosa, e que me fez engolir em seco, não se aproxime da metáfora velada de que se vai falando mas nunca se descrevem a propósito das torturas nazis. Mas a discussão que traz é profunda, e é algo com que me debato há tantos e tantos anos, e fica clara nesta simples frase:
“Se o que escrevemos tem o poder de nos tornar pessoas melhores, certamente tem também o poder de nos tornar piores.” diz Elizabeth Costello, em jeito de questionamento
Todas as semanas me questiono sobre isto a propósito da literatura, cinema e jogos. Se nos fazem bem, poderão também fazer-nos mal?

7 e 8. Últimos dois capítulos 
São estranhos, muito racionalizados à mistura com absurdo místico e existencialista. O primeiro com um debate em redor dos deuses gregos e suas relações sexuais com humanos. O último que surge tal qual um tribunal kafkiano na chegada ao purgatório de Elizabeth Costello.

Conclusões

Vários críticos tentaram encontrar uma interpretação que respondesse pela soma dos temas e discussões realizadas (ex. James Wood). Não concordei com o que fui lendo, porque não encontrei essa interpretação, mesmo depois de forçada por esses críticos. Porque no final senti que estava perante um Coetzee que tinha lutado de forma extraordinária pelo aprofundamento das suas certezas, mas que terminava apenas com mais dúvidas ainda.

Julgo que a grande conclusão, e isso faz parte da matriz das Humanidades, é que o mundo e toda a sua complexidade não é explicável por meras racionalizações. Tudo aquilo de que temos certeza, só a temos no momento em que olhamos para tal pela perspetiva que nos conduziu a essa certeza. Quando mudamos o ângulo, quando vemos a questão de outra perspectiva, de imediato nos assaltam as dúvidas sobre algo que até ali eram apenas certezas. Claro que isto é questionável quando entramos numa modelação orientada pelas ciências exatas, mas esse é um debate diferente, ainda que nesse ponto existam também todas as questões levantadas pelos teoremos de Godel.

No fundo, Coetzee escreveu um livro que plasma de forma frontal toda a teorização pós-moderna que nos diz que o mundo em que hoje vivemos está montado sobre fragmentos de ideias que não passam de ilusões de verdade. Porque não há verdade, não há certezas, não há finalidades, tudo é e não é. Vivemos em ilhas de realidade cada vez mais reduzidas, cada vez mais individualizadas, quando vez mais sozinhos. E por isso a leitura termina com um travo forte de tristeza, porque é difícil não nos questionarmos se foi para isto que elevámos tanto as nossas capacidades de compreensão do real... e isto sente-se claramente naquele capítulo final, kafkiano, absurdo... como se fosse inevitável aportar ali...


Nota quantitativa no GoodReads.

abril 10, 2020

Who's Afraid of Virginia Woolf?

Sendo uma peça de teatro (1962), foi como filme que o conheci há muitos muitos anos, mas mais do que isso, foi por meio deste filme (1966) que compreendi a importância da performance dramática e da direção de atores, e o quanto ambas eram fundamentais para que a arte cinematográfica fosse capaz de nos hipnotizar e transportar para outra realidade ao longo de duas horas. Obviamente o cinema importou do teatro o drama, e este pode por si apenas dar vida completa a um texto, mais ainda quando se tem ao seu serviço performances divinas como as de Elizabeth Taylor e Richard Burton. Mas não podemos esquecer que o cinema tem um realizador que põe em cena, que dirige os atores juntamente com as câmaras, e por via da composição, enquadramento e direção Mike Nichols acabaria tornando o texto de Edward Albee numa obra imemorial.
Mas a leitura do texto não é uma experiência perdida. Tenho referido a dificuldade de ler teatro, pela falta imensa que faz a dramatização, mas ler esta peça transportou-me até às tragédias gregas. Não sei se por me trazer continuamente à mente o filme, mas a verdade é que o vi há quase 30 anos, por isso tenho apenas impressões dele na memória. Contudo a leitura da peça consegue colocar-nos frente aos personagens, imaginá-los em movimento e sentir a sua verve, muito pela força do diálogo escrito por Albee. Podemos dizer que o texto colocado na boca dos personagens é duro, ríspido, direto, rápido e dito sempre no momento certo. Apesar de comédia, o seu tom negro transporta-o para a tragédia, com os quatro personagens a mais parecerem estar numa arena digladiando-se com palavras, vendo quem fere mais, mais rápido, quem chega ao final de pé.
O texto toca na essência de dois casais de académicos, pondo a nu não só as ilusões da vida em casal, mas também das ilusões da dignidade das profissões e dos seus legados. O twist final, um passe de mestre de Albee que tornaria a peça imemorável, é ele mesmo a cabal assunção de toda a ilusão, tornando a peça numa obra central do século XX.

Nota em estrelas no GoodReads.

abril 08, 2020

Lógica e emoção em Gödel

Kurt Gödel foi uma das mentes brilhantes da ciência do século XX, existindo quem o compare a Aristóteles, a Einstein ou Heisenberg, mas ao contrário destes, e apesar do seu inabalável contributo, nunca conseguiu alcançar o mesmo patamar de respeitabilidade pública. Rebecca Goldstein procura neste livro colmatar esse problema. Para o fazer, traça a história de vida de Gödel, aproveitando a sua veia romancista para nos envolver empaticamente com vários personagens históricos, e enquanto o faz dá conta do contexto científico com que nos conduz até ao âmago demonstrativo dos dois teoremas da incompletude de Gödel. Gostaria de dizer que é um livro acessível, porque foi para isso que Goldstein trabalhou, e admito que fez um trabalho notável, mas ainda assim não é facilmente acessível a todos, talvez por que tal não seja possível para algo que constitui em si mesmo a complexidade primordial da lógica. Contudo Goldstein consegue com este livro tornar clara a relevância dos teoremas e só por isso vale completamente a sua leitura.
O livro apela diretamente a todos os que estudam matemática e mais ainda aos que gostam da mesma, mas é um livro escrito a pensar em todos aqueles que gostam de ciência. Gödel encarna o académico brilhante e humilde que deveríamos todos almejar ser, o problema de Gödel foi ter levado esse modo ao extremo, muito por conta da sua personalidade, sobre a qual falarei a seguir. Para compreender o livro e compreender a relevância do trabalho desenvolvido por Gödel, diria que ter tido Matemática até ao 12º ano é suficiente e necessário. Ainda assim, quando entramos na discussão explícita da demonstração, requer algum foco e dedicação.

Em termos de personalidade, podemos dizer que Gödel enquanto um dos principais companheiros de passeio, no campus de Princeton, de Einstein, era o oposto deste. Gödel era fechado, abominava a crítica, não se dava com ninguém, e no final ninguém se dava com ele. Pelo excelente trabalho feito por Goldstein, percebe-se que isso aconteceu pelo extremismo assumido por Gödel face à lógica. Os seus colegas no final já só se referiam a ele como a Lógica, já que para ele tudo tinha de ser decidido dentro de um quadro demonstrável de razões. Gödel concebia toda a realidade como lógica, enquanto tal, tudo o que fazia tinha de ser determinado por lógica, ora isto levanta um problema grave que foi demonstrado por António Damásio em 1994. A lógica, ou racionalização, sem a componente de emoção, conduz à inação, pela simples razão de que se detém em considerações racionais levadas ao infinito. Em toda a sua vida Gödel não publicou mais 100 páginas, tendo deixado milhares por publicar, tudo porque não se sentia seguro, faltava-lhe a garantia lógica para prosseguir, ou melhor, faltava-lhe um sistema emocional mais robusto. É a emoção que dita a nossa sobrevivência, exatamente porque é capaz de curto-circuitar a razão. Porque frente a um carro que está prestes a atropelar-nos não permite que entremos no cálculo da melhor rota de fuga, simplesmente nos impele a saltar na direção possível.

Por outro lado, foi exatamente esta obsessão de Gödel que o conseguiu levar à demonstração dos Teoremas da Incompletude. A sua necessidade de compreender as razões que sustentavam a Matemática fez com que desenvolvesse um sistema demonstrativo da sua impossibilidade universal, ou seja, da impossibilidade da matemática preceder e suportar a lógica do universo.

Enunciado do 1º Teorema
"Em qualquer sistema formal adequado à teoria dos números existe uma fórmula indecidível — ou seja, uma fórmula que não pode ser provada e cuja negação também não pode." 
Enunciado do 2º Teorema de
"Um corolário do teorema é que a consistência de um sistema formal adequado à teoria dos números não pode ser provada dentro do sistema."
Estes enunciados, são apenas descritivos não são os teoremas, que usam todo um conjunto de símbolos que formalizam o conhecimento e demonstram efetivamente a impossibilidade. O que é interessante é o facto desta demonstração ter ramificações sobre toda a ciência, porque sobre todo conhecimento humano. Penrose utilizou-os para demonstrar que o pensamento humano não é mecanicista nem demonstrável pela simples lógica, algo que é bastante discutido por Goldstein, nomeadamente na relação com a IA. Contudo, faltou na discussão a variável emoção, parte cabal do sistema cognitivo humano, e que continua a marcar a diferença entre o orgânico e máquina, exatamente pelo que disse acima. Para a máquina tem de existir uma ordem concreta, suportada em regras e pressupostos, para o humano não. Por isso nós erramos e a máquina nunca erra. Mas também por isso, nós inventamos, criamos o nunca visto, e máquina não. Tudo isto tem vindo a tornar-se mais discutível agora que as máquinas têm acesso a bases de dados de informação de todo o planeta em modo dinâmico, contudo, em essência, é a espada emocional sobre a lógica que nos separa da máquina.

Deixo três excertos centrais do livro sobre tudo isto. Os textos são da versão inglesa, mas as páginas são da versão portuguesa da Gradiva:
“Gödel’s incompleteness theorems. Einstein’s relativity theories. Heisenberg’s uncertainty principle. The very names are tantalizingly suggestive, seeming to inject the softer human element into the hard sciences, seeming, even, to suggest that the human element prevails over those severely precise systems, mathematics and theoretical physics, smudging them over with our very own vagueness and subjectivity. The embrace of subjectivity over objectivity—of the “nothing-is-but-thinking-makes-it-so” or “man-is-the-measure-of-all-things” modes of reasoning—is a decided, even dominant, strain of thought in the twentieth-century’s intellectual and cultural life. The work of Gödel and Einstein—acknowledged by all as revolutionary and dubbed with those suggestive names—is commonly grouped, together with Heisenberg’s uncertainty principle, as among the most compelling reasons modern thought has given us to reject the “myth of objectivity.” This interpretation of the triadic grouping is itself part of the modern—or, more accurately, postmodern—mythology.” p.38
“But these mathematical intuitions that cannot be eliminated and cannot be formalized: what are they? How do they come to be available to the likes of us? We are once again thrown up against the mysterious nature of mathematical knowledge, against the mysterious nature of ourselves as knowers of mathematics. How do we come to have the knowledge that we do? How can we? Plato himself had argued that the very fact that our reasoning mind can come into contact with the eternal realm of abstraction suggests that there is something of the eternal in us: that the part of ourselves that can know mathematics is the part that will survive our bodily death. Spinoza was to argue along similar lines.
Few scientifically minded, post-Gödel thinkers would perhaps be ready to follow Plato and Spinoza into drawing conclusions of our immortality from our capacity for mathematical knowledge. After all, we are not only living with the truth of Gödel but also the truth of Darwin. Our minds are the products of the blind mechanism of evolution. Still, many scientifically minded, post-Gödel thinkers have testified to hearing, within the strange music of Gödel’s mathematical theorems, tidings about our essential human nature. They have argued from Gödel’s incompleteness theorems to conclusions about what we are; or rather, to be more precise, about what we are not. Gödel’s theorems tell us, according to this line of reasoning, what our minds simply could not be.
In particular, what our minds could not be, so goes the reasoning, are computers. The mathematical knowledge that we possess cannot be captured in a formal system. That is what Gödel’s first incompleteness theorem seems to tell us. But formal systems are precisely what captures the computing of computers, which is why they are able to figure things out without having any recourse to meanings. Computers run according to algorithms and we, it seems, do not, from which it straightforwardly follows that our minds are not computers.” p.216
“Gödel’s theorems are darkly mirrored in the predicament of psychopathology: Just as no proof of the consistency of a formal system can be accomplished within the system itself, so, too, no validation of our rationality—of our very sanity—can be accomplished using our rationality itself. How can a person, operating within a system of beliefs, including beliefs about beliefs, get outside that system to determine whether it is rational? If your entire system becomes infected with madness, including the very rules by which you reason, then how can you ever reason your way out of your madness?” p.223