Há anos que leio referências a “Walden” (1854) que leio reverências a Thoreau, e agora que aqui chego e leio a obra em si, surpreendo-me sobremodo com o que encontro. Não vinha à espera de nada em particular, apenas talvez o reconhecimento da natureza, o reconhecimento de uma vida enriquecida pela simplicidade dessa natureza, contudo encontrei tudo menos isso.
Antes que possam dizer que passei ao lado da essência, li sobre a obra, sobre o autor, sobre a sua proximidade com Ralph Waldo Emerson e em particular sobre a corrente filosófica que ambos procuram defender e fazer avançar, o transcendentalismo. Tanto que quase poderia desculpar a má impressão criada pela obra com base nessa corrente. Mas sendo o transcendentalismo proposto por estes, é sobre estes que nos devemos pronunciar.
Diga-se que a minha visão crítica desta obra não é uma raridade, o livro tem sido imensamente criticado desde que foi publicado. E ainda em 2015 a New Yorker publicou um extenso texto a tentar explicar o que há de errado com o livro, acertando, na minha opinião, em muitos dos problemas do texto, nomeadamente dos valores defendidos no mesmo.
Começando pelo único ponto positivo, a premissa. “Walden” tem uma premissa atrativa, alguém que se cansou de viver a vida desenfreada em sociedade e decide retirar-se para o meio da floresta, viver isolado e sozinho, apenas com a natureza, dependendo desta para sobreviver, evitando qualquer contato ou dependência de outros humanos. A atratividade desta ideia assenta na tentativa de se chegar à essência do que somos, do que nos define, de nos encontrarmos sem depender tanto dos espelhos que são os nossos pares. Assim como da separação da materialidade, da recusa da dependência dessa, vivendo o mais natural possível, objetivando voltar ao estado mais natural possível.
Contendo algo de positivo, visto pelos olhos de Thoreau tudo isto se transforma no seu oposto. Ou seja, Thoreau assume esta visão de modo extremista, radicalizando completamente a sua posição e a do mundo que o rodeia. O discurso segue atacando todos os que o rodeiam, separando-se deles, assumindo-se como o único ser que importa à face da terra. Autocentrado, inicia uma aventura tresloucada para quem nada já faz sentido desde o próprio ato de comer e beber à educação ou trabalho. O idealismo segue atrás da frugalidade e austeridade total, em nome de não se sabe o quê. Tudo isto está em parte na base do tal transcendentalismo, o ir além daquilo que somos pela supressão das necessidades, nomeadamente das do corpo, visto como mero envelope de uma alma que se quer pura. Não fosse todo o discurso de Thoreau pontuado por toda uma arrogância, pedantismo e orgulho e talvez se pudesse aceitar.
O primeiro capítulo, o maior do livro e dedicado à economia, ou modo como sobreviver em termos financeiros, é de uma sobranceira impressionante. Thoreau, filho de industriais, educado em Harvard, apresenta-se como especialista em matéria de sobrevivência, desdenhando do conhecimento e das imensas dificuldades que sofrem quem habita e vive apenas daquilo que a terra oferece, acabando por sobreviver ele próprio muito à custa das ajudas de todas essas pessoas. Um discurso típico de quem alimenta ideias, sem nunca ter de verdadeiramente que se suportar nelas. Isto é algo a que ainda hoje podemos assistir, a idealização do regresso à terra e à agricultura, como se essas vidas pudessem ser vividas apenas aos sábados com sol, esquecendo toda a dureza das condições de quem faz disso vida.
Este transcendentalismo tem algumas relações com o hinduísmo, contudo torna-se inaceitável quando filtrado por uma enorme falta de humildade. A visão critica dos outros torna inaceitável tudo o que tenha para nos dizer. Tudo se torna ainda mais ridículo quando nada do que se vai dizendo assenta em qualquer trabalho de análise metódico, já para não referir científico já que nem sequer religioso, mas apenas e só individual e subjetivo. Se muitos optam por ver nesta abordagem de Thoreau, o rechaçar de tudo e todos, um ideal de desobediência, eu vejo antes um ideal de arrogância. Eu vejo a antítese da célebre frase de John Donne “Nenhum homem é uma ilha”.
Por fim, apesar de escrito de modo bastante eloquente, o discurso está carregado de metáforas simbólicas que conduzem o texto muitas vezes a fugir da prosa para um registo mais poético. Esta forma não advém das competências estilísticas do autor, mas antes das raízes das formas românticas que permearam muito do que definiria o transcendentalismo. Contudo não é em si um texto de grande beleza, menos ainda quando dotado de um conteúdo assente no idealismo e egoísmo de Thoreau.
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