agosto 02, 2019

Blueprint: Como o DNA nos faz como Somos (2018)

O prólogo de "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" de Robert Plomin diz várias coisas de entre as quais, a seguinte afirmação que se vai repetir ao longo de todo o livro, ainda que com ligeiras variações, mas apontando baterias sempre ao mesmo objeto:
“Genetics is the most important factor shaping who we are. It explains more of the psychological differences between us than everything else put together. For example, the most important environmental factors, such as our families and schools, account for less than 5 per cent of the differences between us in our mental health or how well we did at school – once we control for the impact of genetics. Genetics accounts for 50 per cent of psychological differences, not just for mental health and school achievement, but for all psychological traits, from personality to mental abilities. I am not aware of a single psychological trait that shows no genetic influence.”
Semenya foi esta semana proibida de correr em provas de atletismo se não tomar medicação que reduza a testosterona natural no seu corpo. Já sobre Phelps nunca nada foi dito sobre a sua fisiologia anormal (discussão abaixo).

Assim, e antes de lançar qualquer análise crítica ou tentativa de discussão quero dizer que sou grande defensor da variável genética. Acredito na relação 50/50 do impacto de cada domínio — natureza e ambiente — sobre aquilo que somos, ainda que por vezes tenda a deixar-me convencer que a natureza consegue dominar mais daquilo que somos do que a cultura e ambiente que nos vai moldando ao longo da vida. Por isso, não reagi violentamente ao livro como vi outros reagir, e como o próprio autor sabia que iria acontecer. Esta é uma guerra antiga, entretanto adormecida, mas a investigação em genética nunca parou e existem avanços significativos. Não apenas ao nível do controlo celular e do DNA, mas também de estudos longitudinais realizados. E Plomin é um dos investigadores mundiais com mais estudos no campo, tendo acompanhado várias comunidades, incluindo de gémeos, desde a nascença até aos 40 anos. Por isso existe neste livro muito que interessa a todos nós que estudamos domínios que lidam com o social, cultural e humano, e assim seja também defendido por outros.


Julgo que podemos dividir o livro em duas grandes partes: uma relacionada com a discussão daquilo de que somos feitos, e como a genética impacta sobre o indivíduo e a sociedade. E uma segunda parte, sobre a relevância e impacto da genética nas vidas dos indivíduos e sociedades nos tempos próximos. A primeira parte considero ser aquela que é mais relevante, porque nos leva a questionar vários modos de olhar a realidade. A segunda parte é aquela em que me junto ao coro de críticos, pelas razões que passarei a explicitar à frente.

Sobre a primeira parte, Plomin apresenta dados e estudos que suportam uma leitura com que estamos pouco habituados a ser confrontados no dia-a-dia nos dias de hoje, a da importância dos genes nas pessoas que somos. Por que não somos apenas aquilo para que trabalhamos, apesar de enquanto sociedade termos o dever de promover essa cultura, sabemos que essa é apenas meia-verdade, no entanto por todo o lado em nosso redor, parece muitas vezes preferir-se ignorar. Veja-se a parafernália de livros e estudos sobre talento de que tenho aqui vindo a dar conta: Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell; “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, e “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How” (2009) de Daniel Coyle. Sendo verdade que a genética não é alterável e não podendo transformar-se, talvez por isso mesmo muitos acreditem que mais vale não falar dela. Contudo, do meu ponto de vista isso é um erro. É um erro porque se aceitamos que não podemos mudar a nossa genética, então precisamos de compreender mais e melhor essa genética para enquanto sociedade, e individuos, a podermos aproveitar da melhor forma, e não colocar a cabeça debaixo da areia.

Existem muitas áreas onde isto é relevante, mas talvez a mais relevante de todas seja a Educação. Continuamos hoje, com tudo aquilo que já sabemos a tentar formatar crianças da mesma forma em escolas fabris. E o meu problema não são as escolas em si, ou o modo fabril, ou meu problema é a não diferenciação das crianças, porque se segue uma ideologia de todos iguais, quando sabemos que tal não existe. Porque quanto mais formatarmos o social, mais evidente a natureza tornará as diferenças. Claramente que as crianças têm a ganhar em andar em escolas com pares da mesma idade, mesmo com cargas genéticas completamente diferentes, incluindo crianças com necessidades especiais, nada contra isso. O problema não é a criação de socialização, colaboração e redes de suporte societal. O problema é colocá-los todos numa mesma sala, apenas por terem a mesma idade, a aprender todos o mesmos, é com isso que não me conformo. E não estou a falar de inteligência, estou a falar de algo muito mais relevante, mas mais complexo, mas ainda assim mais determinante, e que tem que ver com a personalidade (e que agora querem também moldar com o que dizem ser uma novidade educacional: as competências). A personalidade de cada um determina diferenças fundamentais no humano, e essas são profundamente genéticas, o que acaba dando razão a Plomin quando diz que a genética tem maior capacidade de prever o futuro de uma criança do que as variáveis sociais, já que essas não são duradouras, enquanto a genética está lá sempre. Ou seja, aquilo que somos à nascença é determinante para aquilo que podemos vir a ser, não sendo uma guilhotina, tem grande importância e é extremamente importante compreender aquilo que somos à nascença, não apenas para nos conhecermos melhor, mas para podermos guiar e orientar as nossas escolhas em função das nossas melhores possibilidades, e não em função de ilusões e sonhos que a sociedade nos quer vender a todo o momento.

Sobre esta discussão Plomin apresenta imensos estudos demonstrativos das variáveis genéticas, desde gémeos que são educados por famílias completamente díspares mantendo no entanto sempre as mesmas tendências genéticas que os levam a construir vidas e a ter sucessos imensamente próximos mesmo quando o ambiente prediria o contrário, dando conta da força genética sobre o ambiente. Noutros, dá conta do que diferencia as escolas privadas de elite das escolas públicas, que nada tem que ver com melhor ensino, melhores escolas, melhores professores, mas apenas e só melhor seleção genética. Tanto que Plomin não fala de escolas privadas, mas escolas seletivas. Naturalmente que se fazemos testes à entrada, e deixamos apenas entrar os que melhor reagem ao que pretendemos avaliar, as diferenças com instituições onde não há qualquer filtragem têm de surgir. Os estudos de Plomin vão mesmo ao ponto de desmontar as variáveis sociais construídas nesse entorno, demonstrando que não são elas que tornam o futuro desses miúdos auspiciosos, mas é a sua carga genética de partida.

Trazendo para a discussão dois exemplos. Repare-se no caso atual de Caster Semenya, que soube esta semana que estava impedida de participar em provas competitivas de atletismo da IAAF enquanto não tomasse medicamentos que lhe fizessem reduzir os níveis de testosterona!!! Por todo o lado vemos esta sede de normalização, da Escola à Empregabilidade, como se não pudéssemos ser apenas diferentes por assim ter nascido. Repare-se como ideologicamente isto é mesmo um contrassenso, já que exigimos a aceitação societal das diferenças, incluindo a aceitação da variabilidade de género, mas chegados a pontos em que a diferença genética atira para fora da normalidade pré-convencionada, obrigamos à reposição biológica das diferenças para manter o status quo social. Claro que Semenya representa um problema para quem organiza provas convencionais, porque tem um corpo “demasiado” masculino para as provas de mulheres, mas “demasiado” feminino para as provas de homens, o que a coloca em lugar nenhum dessas convenções. Por outro lado, e para nos fazer refletir, porque nunca se levantaram questões deste tipo no caso de Michael Phelps, sabendo que o seu corpo sai completamente fora da norma colocando-o num patamar bastante distinto dos demais.


Mas tudo isto é pouco novo, o que o livro traz de novo é a segunda parte, que discute uma nova abordagem à genética assente em grandes bases de dados, seguindo uma nova técnica chamada de "genome-wide association study" (GWAS), sendo aquilo com que menos concordo, e que também tem sido mais atacado (review na Nature). Pensar a criação de sistemas de avaliação genética envolvidos em algoritmos de previsão futura, para a manipulação do bloco genético gestacional (ou seja, o famigerado design de DNA de bebés), em função desses algoritmos é completamente absurdo. E não estou a falar do medo de "Gattaca" (1997),  não é apenas um problem ético, embora por esse lado já fosse suficiente para cancelar qualquer processo destes, mas porque estamos a falar de algo que impacta em 50%, ou seja, transformar algo que sabemos que nunca terá impacto acima dos 50% não é fazer design, é jogar na roleta russa. Mas é pior, porque 50% é apenas o máximo a que se poderia chegar, já que em termos efetivos, e seguindo os métodos aqui propostos, estamos a falar de 10 a 20% de previsibilidade de traços, que o autor defende como sendo já algo muito relevante por ir além de que qualquer outro elemento de previsão (Plomin defende, por comparação, o género só consegue dar previsibilidades de 1% de variação). Pois seja, mas sendo maior continua a nada valer, 10% são completamente diluídos num mar de mundo dotado de acaso. Sobre esse acaso, o da variabilidade física do meio, indo a um extremo podemos pensar: de que adiantaria desenhar seres biologicamente imortais se eles pudessem simplesmente morrer quando atravessam uma estrada, que paradoxos, que caixas de pandora estaríamos a abrir?

Se o livro se lê bastante bem, e abre sempre discussões para nos debatermos, confesso que a certa altura comecei a sentir uma das críticas que mais tem sido feita a Plomin, e do qual todos nós padecemos, a confirmação de viés. Para quem estuda genética todo o tempo, vai-se tornando cada vez mais natural ver tudo pelos olhos da genética. Para Plomin, é possível explicar praticamente todas as variáveis ambientais como sofrendo de influência genética. Ou seja, seríamos genes, nada mais do que genes. Plomin, na sua senda e defesa da sua dama vai a ponto de afirmar que o ambiente — os pais, as escolas, a política — “matter, but they don’t make a difference”, porque segundo ele, são variáveis “unsystematic and unstable, so there’s not much we can do about them”.  Como se bastasse atirar as crianças ao leões e deixar que os genes se desenvencilhassem. Esquece Plomin que ao fazer tal estaria simplesmente a ignorar a 50% da variabilidade humana, mas pior ainda, estaria a esquecer o enorme impacto do cuidado humano à nascença e todas as variáveis sociais já amplamente demonstradas por estudos (o mais recente é deste mês) com muito maior valor empírico do que previsões de 10%.

agosto 01, 2019

Animação: sentindo uma constipação

A história de uma constipação a partir do ponto de vista do nosso cérebro. O que pensa e imagina o nosso cérebro durante todo o processo de uma constipação, desde que começa a espirrar, passa a pingar do nariz, dor de garganta e sufoco, até que se liberta. Seoro Oh recorreu a uma história que todos conhecemos para dar conta de um mal de que padece — a rinite —, transformando assim num processo visual tudo aquilo que lhe atravessa a mente durante os piores momentos da doença. A animação "(oo)" (2017)



O trabalho de ilustração, animação, montagem e sonorização são de enorme qualidade criando assim a partir de um pequeno filme um mundo particular mas forte capaz de deixar uma impressão nos espectador. Entrevista com o autor.

"(oo)" (2017)  de Seoro Oh

Não-linearidade das relações humanas

Ao longo dos últimos 15 anos o cinema romeno tem sido uma das maiores referências no que toca à análise da psicologia das relações humanas, seguindo abordagens profundamente literárias e bergmanianas. “Ana, Meu Amor” (2017) não é diferente, com todo o filme a trabalhar uma relação complexa de um jovem casal, embora ainda assim me tenha surpreendido pelo modo como a sociedade romena é apresentada, já que são trazidos para cena vários detalhes religiosos e familiares que dão conta de uma sociedade ainda presa a vários arcaísmos. Por outro lado, toda a capacidade expressiva da linguagem fílmica é colocada ao serviço da história, com Călin Peter Netzer a demonstrar enorme mestria, nomeadamente no controlo narrativo e direção de atores.



Sobre a história, questionei-me ao longo do filme e várias vezes entretanto, se o impacto será o mesmo sobre alguém que não tenha passado por uma situação similar. O quadro oferecido é o de um casal a estudar na universidade, em que a jovem mulher apresenta problemas do foro psiquiátrico, provinda de famílias disfuncionais, estando bastante debilitada e logo altamente dependente, e o jovem, fruto de uma família de classe média estável, que vê nela uma oportunidade de “salvar” alguém, de fazer a boa ação da sua vida, ainda que contra a vontade dos seus próprios pais. O interessante disto é o modo como tudo se desenrola, e acaba passados alguns anos com os papéis invertidos (não posso dizer muito mais).

Se a história é esta, o impressionante é o modo como é dada a ver e sentir, como é tudo tão real, tão verdadeiro, tão impressivo. O filme apresenta-se de forma não-linear, variando continuamente num friso de 10 anos, o que é facilmente compreendido pela magnífica caracterização dos personagens, nomeadamente a componente do cabelo, com ele a perder cabelo e ela a trocar a cor, mas também a performance. Impressiona ver o ser-humano mudar, transformar-se, passar de um lado ao outro do espectro, de dominante a submisso, e como isso tolda totalmente a sua existência, a sua forma de ver o outro. Como tudo isso corrói e destrói completamente a relação que tinha surgido de uma necessidade de ambos os lados, mas que a vida natural de um casal se encarrega de alterar, obrigando naturalmente cada um a evoluir, e a encaixar os novos mundos e novas experiências do outro. Claro que é tudo fácil explicado assim, em teoria, e sabendo disso torna o filme ainda melhor, porque ele nunca dá lições, apesar de mostrar caminhos distintos como a religião ou a psicanálise, dá a ver para nos fazer refletir, para nos obrigar a questionar opções e decisões do passado, ou possível futuro.

A dor está presente, mas é preciso lê-la na evolução da relação, compreender como se constrói uma relação destas, e depois ainda compreender as vicissitudes da evolução de cada ser humano e das implicações das transformações numa relação que se faz de hábitos que acarreta rotinas e expectativas, que por força da transformação de cada um se transverte, e muitas vezes, se não talvez sempre, de formas não expectáveis, pelas evoluções naturalmente distintas de cada um. Porque aqueles que chegam ao fim da vida juntos, estão muito longe de serem as pessoas que se conheceram quando jovens. Tiveram filhos, educaram-nos, deram-lhes um futuro, e continuaram juntos “fazendo de conta” que era importante manterem-se juntos...


Confesso que me questionei sobre a estrutura narrativa, sobre o porquê da não-linearidade, e porque Netzer não tinha simplesmente optado por contar a história linearmente, o que lhe teria garantido um público mais alargado (li críticas de quem se sentiu demasiado confuso seguindo os fios narrativos). Contudo, refletindo sobre o que está em jogo — as relações humanas, como se constrói um casal e como se mantém unido — talvez o sentido da não-linearidade seja mesmo central. Porque o que é uma relação entre duas pessoas se não um contínuo de avanços e recuos? Apresentar uma relação entre dois humanos como linha única e progressiva de eventos, acabaria por tornar toda aquela relação em algo profundamente banal, mecânico pela causalidade dos eventos e praticamente expectável. A não-linearidade serve totalmente a complexidade daquilo que perfaz a circularidade do humano que se exponencia ainda mais quando tem de se relacionar com o outro e construir uma espécie de entidade única: um casal. Visto assim, Netzer tem toda a razão em descrever o seu filme, ou estudo, como: "a impossibilidade real de construir um relacionamento".


Nota: O filme está disponível no catálogo regular do FilmIn.

julho 29, 2019

Das lamentações criativas

Confesso que me soube a pouco — "Blood, Sweat, and Pixels: The Triumphant, Turbulent Stories Behind How Video Games Are Made" (2017) — de Jason Schreier, tanto na análise dos casos — "Pillars of Eternity", "Uncharted 4", "Stardew Valley", "Diablo III", "Halo Wars", "Dragon Age: Inquisition", "Shovel Knight", "Destiny", "The Witcher 3" — como nas conclusões gerais. O facto de serem tudo jogos bastante conhecidos ajuda, e torna interessante a leitura, mas no final fica-se como se tivéssemos acabado de ler 10 artigos do Kotaku, um bocado mais extensos. Falta capacidade para aprofundar e poder de dar a ver, para causar reflexão. Nada do que se diz é propriamente novidade, nem tão pouco segredo como os blurbs que vendem o livro querem fazer parecer. Lê-se o primeiro capítulo sobre "Pillars of Eternity" e sente-se o mesmo discurso do documentário “Indie Game -The Movie” (análise), o que não é mau, dá algum gozo, sabe bem. Depois "Uncharted 4" confirma algumas dúvidas sobre o que tinha acontecido na relação entre Last of Us e Uncharted, sem nada de muito espantoso. E chegamos a "Stardew Valley" e o seu criador, Eric barone, para entrar definitivamente adentro de “Indie Game -The Movie”. O problema é que depois disso é sempre a descer, porque o resto dos capítulos são todos iguais, mais do mesmo, apenas com diferentes intervenientes, diferentes jogos, lugares e montantes, uma decepção completa. Schreier não só não aprofunda, como apresenta um espírito crítico de nível zero, para ele todos estes criadores são dignos de idolatração, resta-nos admirar o seu esforço e agradecer-lhes.

"Uncharted 4" (2016)

Já aqui tinha ressaltado a parte da introdução e das cinco razões por que é difícil fazer jogos (ver texto), contudo quero salientar, e não é uma conclusão nova embora o último capítulo —sobre o jogo que nunca o foi “Star Wars 1313" — tenha ajudado a despoletar esta minha visão, e que tem que ver com as indústrias criativas. Criar algo digno de ser apreciado enquanto obra, enquanto detentor de valor ético, moral mas acima de tudo significante, não está ao alcance de indústrias, corporações, fábricas desenhadas para fazer dinheiro. Claro que se podem criar carrosséis para parques de atrações, capazes de gerar sensações fortes e divertir as pessoas durante um bom bocado. Mas ir além disso, criar artefactos que marquem as pessoas, que lhes toquem e as transformem, que as façam desejar ter sido elas a ter criado aquela obras é algo completamente distinto. É por isso que criar um jogo, um filme, um livro é diferente de criar um software de gestão de supermercado, ou um manual para aprender a usar o Photoshop. Porque nestes últimos só importa a eficiência, enquanto nos primeiros, sendo relevante a eficiência, ela pode ser secundarizada pelo significado, já que sem este é completamente irrelevante a sua existência. Um jogo existe apenas para significar algo, para estabelecer uma relação entre quem cria e quem joga, se serve apenas para passar o tempo, usa-se e deita-se fora, como fazíamos com os manuais de 3d Studio Max.

O jogo que nunca existiu porque Lucas resolveu vender a empresa à Disney, e esta simplesmente decidiu que não queria fazer jogos para consolas!!!

Esta assunção marcou-me ao ler o último capítulo, no qual os trabalhadores da Lucas Arts, em entrevistas, dizem-se dispostos a aceitar tudo e mais alguma coisa de George Lucas, mesmo dizendo que ele nada percebe de desenhar um videojogo, apenas porque o vêem como um mentor de culto, mas a resposta de Lucas acaba por ser o total desprezo, vendendo a empresa à Disney que ao chegar resolve terminar com todos os jogos a decorrer, mesmo "Star Wars 1313", que já tinha sido apresentado na E3. Sobre isto, Schreier não tem uma única palavra, como se fosse tudo aceitável, como se a indústria fosse isto mesmo, dinheiro a mudar de mãos. Que interessa os anos investidos por 60 pessoas num jogo?!! Na verdade, se calhar Lucas tinha razão, o facto de ser um jogo feito por uma empresa tão grande, fez do jogo um projeto de ninguém, um projeto que deve apenas apontar à eficiência dos parâmetros que vão garantir o retorno do dinheiro investido, nada mais. Quem é que quer saber de mais um jogo sobre Star Wars?

Não vou dizer que o livro seja toda uma perda de tempo. Para quem já se envolveu nestas aventuras de criar obras, jogos ou outro tipo qualquer de obra criativa, facilmente se reverá nas descrições. Sim, porque a complexidade da criação de jogos pode ser ligeiramente maior que noutras áreas, mas a produção criativa humana faz-se do mesmo modo, movido por muitas ansiedades, neuroses, frustrações, euforias, alegrias e derrotas...

julho 21, 2019

A coincidência e a genialidade num livro único

Mais importante do que saber que prémios ganhou este livro — "O Último Samurai" (2000) —, ou que tem surgido em várias listas do que melhor foi publicado até agora neste novo século, é para mim o facto de ser um primeiro livro carregado de experiência, porque é o resultado final de alguém que resolveu deixar para trás uma carreira para se dedicar a dar resposta a um desejo interno que a consumia desde sempre, é o resultado de uma mente chegada aos quarenta com meia-centena de romances inacabados. Foi a perseverança que fez Helen DeWitt deixar tudo para trás e tomar as rédeas da sua condição para passar a dedicar-se a criar a única coisa que daria sentido à sua vida, um romance. Só isto seria mais do que suficiente para eu querer ler o livro e admirá-lo, por mais fraco que fosse o livro, nunca se perderia a possibilidade de admiração de um grito pessoal, experiente e íntimo de alguém, porque nada pode ser mais interessante ou relevante do que isto em literatura.

Ilustração de Matt Cummings sobre o livro e que dá conta da obsessão da mãe e filho por livros e pelo filme "Os Sete Samurais" de Akira Kurosawa.

Ao longo de todo o livro assistimos a um diálogo justaposto, entre uma mãe solteira com inteligência acima da média e o seu filho prodígio, atravessando da infância à pré-adolescência. A relação entre duas mentes brilhantes permite-lhes planar acima do quotidiano e focarem-se exclusivamente na racionalização do real e factual, operando sempre a vários níveis de abstração, ou seja, não discutindo sequer obras, mas antes as meta-linguagens que permitem criar essas obras, da literatura ao cinema, da filosofia à linguística, de tudo um pouco atravessa a paisagem de “O Último Samurai”, mesmo alguma matemática e física, mas com muito menor ênfase.

As referências ao longo do livro são todas do topo canónico, somos brindados com discussões sobre a Odisseia, Ilíada, Gilgamesh, Argonautica, As Mil e uma Noites, Proust ou Joyce; os filmes Sete Samurais, Padrinho; ou os génios precoces de John Stuart Mill e Yo-Yo Ma; ou ainda a música de Brahms ou Olivier Messiaen tudo apresentado e dialogado muitas vezes no grego, islandês ou japonês originais à mistura com francês, alemão ou italiano, enquanto a mãe vai investindo dias a fio a datilografar, para poder pagar a renda e sobreviver, umas revistas britânicas antigas sobre “Pesca Avançada”, “O Criador de Caniches” ou “Esqui Aquático Internacional”, quando não têm de passar horas às voltas numa carruagem de metro para fugir à falta de aquecimento no apartamento em que vivem.

Mas nada disto é apresentado com sobranceria, claramente existe uma noção do que é importante, do que é relevante, do que devemos ir atrás, mas não existe um posicionamento acima de qualquer um pela condição de se ser brilhante menos ainda diferente, antes existe a noção de um investimento tremendo, de uma fuga à preguiça, vista essa sim como a razão pela qual nem todos chegam lá. Como diz a mãe a determinada altura a propósito da pessoa com quem teve uma relação de uma noite da qual acabaria por nascer o seu único filho: “The fact is that 99 out of 100 adults spare themselves the trouble of rational thought 99% of the time”; ou como disse Thomas Edison: “Genius is 1 percent inspiration and 99 percent perspiration”.

DeWitt cobre tudo isto com um esquema adicional que funciona como filosofía implícita de vida e que tem que ver com o acaso, o acidente e a coincidência. Tudo é possível, do pior ao melhor, por mais que nos esforcemos, não existe qualquer certeza de podermos ser recompensados, contudo talvez por isso mesmo não devamos fazer nada em busca dessa recompensa, mas apenas em busca daquilo que nos define. Esta é para mim a grande mensagem do livro, e da autora, alguém claramente muito particular, que foi capaz de produzir uma obra carregada de elevação intelectual e ao mesmo tempo imensamente acessível no campo emocional, tudo numa luta imensa contra os editores (ver o vídeo) que pretendiam um livro bastante mais simples, enquadrado nos cânones contemporâneos.


Uma última nota, é impossível ler este livro sem ir a correr rever "Os Sete Samurais" (1954),  agradecendo desde já a DeWitt toda a interpretação da obra fornecida ao longo do texto que me fez repensar o filme de ângulos que nunca antes tinha imaginado, demonstrando a força e relevância dos processos interpretativos tão caros às ciências humanas.

julho 20, 2019

5 Razões porque é Difícil fazer Videojogos

Comecei a ler “Blood, Sweat, and Pixels” do Jason Schreier e chegado ao final da introdução pareceu-me existir já material relevante para partilhar, tendo em conta que Schreier apresenta nessa mesma introdução uma espécie de síntese daqueles que são os problemas centrais da produção de videojogos, ou seja, dos elementos específicos que separam esta indústria cultural das demais, nomeadamente de um lado a cinematográfica, e do outro a de produção de software.


Definição do processo de produção de qualquer jogo:
“Every single video game is made under abnormal circumstances. Video games straddle the border between art and technology in a way that was barely possible just a few decades ago. Combine technological shifts with the fact that a video game can be just about anything, from a two-dimensional iPhone puzzler to a massive open-world RPG with über-realistic graphics, and it shouldn’t be too shocking to discover that there are no uniform standards for how games are made. Lots of video games look the same, but no two video games are created the same way”
As 5 razões apresentadas abaixo são o resultado da síntese de entrevistas a mais de 100 criadores da grande indústria internacional de jogos, entre 2015 e 2017, responsáveis por títulos como: "Pillars of Eternity", "Uncharted 4", "Stardew Valley", "Diablo III", "Halo Wars", "Dragon Age: Inquisition", "Shovel Knight", "Destiny", "The Witcher 3":


1. Eles são Interativos
“Video games don’t move in a single linear direction. Unlike, say, a computer-rendered Pixar movie, games run on “real-time” graphics, in which new images are generated by the computer every millisecond. Video games, unlike Toy Story, need to react to the player’s actions. As you play a video game, your PC or console (or phone, or calculator) renders characters and scenes on the fly based on your decisions. If you choose to walk into a room, the game needs to load up all the furniture. If you choose to save and quit, the game needs to store your data. If you choose to murder the helpful robot, the game needs to identify (a) whether it’s possible to kill the robot, (b) whether you’re powerful enough to kill the robot, and (c) what kind of awful sounds the robot will make as you spill its metallic guts. Then the game might have to remember your actions, so other “characters know that you’re a heartless murderer and can say things like, “Hey, you’re that heartless murderer!”
2. A Tecnologia está Constantemente a Mudar
“As computers evolve (which happens, without fail, every year), graphic processing gets more powerful. And as graphic processing gets more powerful, we expect prettier games. As Feargus Urquhart, the CEO of Obsidian, told me, “We are on the absolute edge of technology. We are always pushing everything all the time.” Urquhart pointed out that making games is sort of like shooting movies, if you had to build an entirely new camera every time you started. That’s a common analogy. Another is that making a game is like constructing a building during an earthquake. Or trying to drive a train while someone else runs in front of you, laying down track as you go.”
3. As Ferramentas são Sempre Diferentes 
To make games, artists and designers need to work with all sorts of software, ranging from common programs (like Photoshop and Maya) to proprietary apps that vary from studio to studio. Like technology, these tools are constantly evolving based on developers’ needs and ambitions. If a tool runs too slowly, is full of bugs, or is missing pivotal features, making games can be excruciating. “While most people seem to think that game development is about ‘having great ideas,’ it’s really more about the skill of taking great ideas from paper to product,” a developer once told me. “You need a good engine and toolset to do this.”
4. A Calendarização é Impossível
“The unpredictability is what makes it challenging,” said Chris Rippy, a veteran producer who worked on Halo Wars. In traditional software development, Rippy explained, you can set up a reliable schedule based on how long tasks have taken in the past. “But with games,” Rippy said, “you’re talking about: Where is it fun? How long does fun take? Did you achieve that? Did you achieve enough fun? You’re literally talking about a piece of art for the artist. When is that piece of art done? If he spends another day on it, would that have made all the difference in the world to the game? Where do you stop? That’s the trickiest part. Eventually you do get into the production-y side of things: you’ve proven the fun, you’ve proven the look of the game, and now it becomes more predictable. But it’s a real journey in the dark up until that point.” Which leads us to...”
5. É Impossível saber o quão "Divertido" será um Jogo até que o Joguemos
“You can take educated guesses, sure, but until you’ve got your hands on a controller, there’s no way to tell whether it feels good to move, jump, and bash your robot pal’s brains out with a sledgehammer. “Even for very, very experienced game designers, it’s really scary,” said Emilia Schatz, a designer at Naughty Dog. “All of us throw out so much work because we create a bunch of stuff and it plays terribly. You make these intricate plans in your head about how well things are going to work, and then when it actually comes and you try to play it, it’s terrible.”

Excertos da Introdução de “Blood, Sweat, and Pixels: The Triumphant, Turbulent Stories Behind How Video Games Are Made” (2017) de Jason Schreier, da Harper Paperbacks.

julho 14, 2019

A Ilusão da Memória: Recordando, Esquecendo e a Ciência das Memórias Falsas

O livro "The Memory Illusion: Remembering, Forgetting, and the Science of False Memory" (2016) não traz nada de muito novo, mas reforça com amplas evidências a fragilidade de algo que nos habituámos a acreditar como sendo a verdade daquilo de que somos feitos. Seguindo Damásio, o Eu é feito das memórias autobiográficas, por isso perceber o quão frágeis essas memórias são, e quão iludidos podemos tão facilmente ser, põe a nu a impotência daquilo que somos e ansiamos ser. Neste sentido, ler Memory Illusion funciona como uma espécie de porta para um ganho de maior consciência sobre o funcionamento do nosso inconsciente.


A especialidade de Julia Shaw é o estudo das memórias falsas. É professora na London South Bank University, e trabalha como consultora forense em casos relacionados com o abuso sexual. O foco do livro é sobre a facilidade com que se criam e apagam memórias, descrevendo-se técnicas sobre modos de fabricação de memórias falsas, e algumas tentativas para despistar as mesmas. É uma área de estudo pantanosa, já que incide totalmente sobre a subjetividade mais íntima, obrigando a trabalhar com grande latência ao erro, ou seja, sabendo que a verdade pode em muitos casos ser completamente impossível de recuperar.

Na generalidade gostei das abordagens, tive apenas algumas reticências nas breves incursões que a autora faz no campo educativo, nomeadamente no papel cognitivo da memória na aquisição de competências, tal como o pensamento crítico, deixou-se enredar facilmente pelo discurso do digital e da memória externa do Google, algo que acaba a fazer novamente quando discute o impacto das redes sociais nas memórias. O que vale é que estas duas incursões são muito breves, não podendo ser de outra forma, já que o foco e trabalho da autora está noutro campo.

Shaw não se inibe também de desmontar uma série de mitos, desde as memórias que alguns de nós pensam reter, anteriores à linha dos 3.5 anos, podendo rondar entre os 2 e os 5, mas colocando todas as memórias abaixo de 1 ano como simplesmente impossíveis. Parece existir um fascínio e grupos de pessoas que assumem recordar o dia em que nasceram, ou o primeiro objecto que viram, e no entanto tudo isso não passa de fabricações, como demonstram as dezenas de estudos realizados no campo. Outra das áreas que Shaw demonstra é a da hipnose, reconhecida por aparentemente ser capaz de recuperar memórias perdidas, algo também sem qualquer sustentação empírica. Do mesmo modo Shaw ataca sem qualquer pudor um dos métodos da psicanálise herdado de Freud, o tratamento por vida da recuperação de memórias traumáticas e reprimidas. Segundo Shaw, o que estes métodos — hipnose e psicanálise — tendem a fazer, é simplesmente criar memórias falsas, já que seguem todo o modus operandi da produção das mesmas.

Por fim quero deixar uma nota de reconhecimento e admiração pelo esforço que Shaw fez em evitar as chamadas universidades de elite, que não passam de universidades de propaganda, o que fica bem evidenciado pelo trabalho aqui apresentado, para o qual contribuíram dezenas de universidades europeias e estatais americanas, sem as quais o trabalho no campo hoje teria muito menos valor. Não raro, estes livros de divulgação limitam-se a citar meia-dúzia de universidades, sempre as mesmas, facilmente reconhecíveis e associáveis a uma chamada elite, ou seja a Ivy League americana e duas ou três inglesas, as mesmas que são citadas em todos os filmes de Hollywood e livros bestsellers. Shaw cita algumas dessas, mas não lhes dá qualquer espaço particular, não se coíbe como é tão usual fazer-se de citar universidades estatais americanas, e apesar de britânica cita imensas universidades europeias. Deixo uma listagem das citadas que apanhei rapidamente: Amsterdam, Geneva, Western Washington, Missouri, Oslo, Temple, North Carolina, Chicago, Tel-Aviv, Minnesota, Giessen, Nevada, British Columbia, Trier, Wilfried Laurie, Laval, Durham , Queen Mary, College of London, Southern California, New York, Columbia, Iowa State, Bordeaux, ESPCI Paris, Arizona, St Lawrence University, Freiburg, Cambridge, Stanford, Lille, Virginia, Harvard, Kent State, Tübingen, Zurich, Boston, Turku, Lethbridge, Stockholm, City, New South Wales, Flinders, Glasgow, Vanderbilt, Tufts, Dalhousie, Bielefeld, Cornell, Yale, Fairfield, Victoria, Maryland, Texas Women’s, MIT, Alabama, Illinois State, Hartford, Baylor, Duke, Toledo, Brown, Rice, Bern, Texas A&M.

julho 13, 2019

O Quarto de Marte (2018)

Foi o Segundo livro de Kushner, o primeiro tinha sido “Os Lança-Chamas” (análise), do qual tinha adorado a forma mas não me tinha ligado com o conteúdo, agora aconteceu em parte o contrário, já que a forma sendo boa não me impressionou, mas sendo fluída acabou gerando uma excelente plataforma para as histórias contadas e o universo criado. O tema de fundo é a prisão perpétua, como se chega a ela e como se lida com ela, quem são as pessoas (nos EUA) sujeitas a ela. Kushner faz um bom trabalho, não se liga à defesa nem à provocação, plana antes sobre os diferentes lados da questão, dá-a ver e a sentir, mas deixa na consciência do leitor o labor crítico de formação de opinião.


O mais evidente desta abstenção de exercício da sua posição e propaganda é desde logo o modo como Kushner evita as emoções que seriam fáceis tendo como pano de fundo condenadas à vida, e mesmo à morte. Seria fácil fazer chorar o leitor, ou logo a seguir enraivecer o mesmo. Temos momentos em que Kushner quase roça a defesa, em que dá conta dos problemas que vivem e atravessam as condenadas, mas é tudo suficientemente balançado para não nos levar pelo coração. As descrições do dia-a-dia, das relações entre prisioneiras, suas conquistas e escapes, vão preenchendo o espaço-tempo de algum normalidade que nos retira dos pensamentos de fins ou injustiças do sistema.

Ainda assim, mais perto do final, torna-se praticamente inevitável questionar a razão, o objetivo, o fundamento, e as evidências que suportam tais penas. Não é apenas pela gravidade, ou pela idade em que se cometem, ou pelo efeito de estupefacientes, ou desespero social ou humano, mas é mesmo pela desproporção da pena que não deveria nunca ser vista como vingança mas antes como reabilitadora. É isso que aqui se levanta, ainda que Kushner não o discuta, apenas aflore, ainda que Kusnher nem sequer dê exemplos ou comparações com outros estados americanos, ou com a Europa. Por exemplo em Portugal a pena máxima é de 25 anos, e essa raramente é cumprida na totalidade se a pessoa demonstrar arrependimento e tiver bom comportamento. Que buscamos demonstrar à sociedade quando penalizamos alguém com uma pena, ou no caso, duas penas perpétuas seguidas? Não é isto completamente desprovido de senso? Sim, eu sei que qualquer ser humano quando agredido, ou agredido um dos seus, reage vingativamente, existe uma necessidade interior de expiar a dor, de sentir que o universo se regula por uma justiça com pesos iguais. Mas se inventámos um edifício social de Justiça foi para findar com essa vingança, para pôr cobro a um sentimento que de nada serve, e que se seguido pelo sistema penal dá como exemplo a toda a sociedade a lógica dessa vingança, em nada então se diferenciado do animalesco desse sentir. Veja-se a história da condenada a três perpétuas que Obama indultou, compare-se os seus crimes com as aberrações dos casos OJ Simpson ou o mais recente caso de Jeffrey Epstein, em que o dinheiro e acesso ao sistema fazem toda a diferença.

Neste livro Kushner está completamente focada nas penas e nas prisões, nos seus personagens, e nunca abandona o tema, teve claramente muito trabalho para conseguir chegar a algumas das descrições apresentadas, ainda assim senti-o menos elaborado do que “Os Lança-Chamas”, menos rico em detalhe, talvez menos ornamentado, mas como disse, mais instigante em termos de mensagem.

julho 08, 2019

Therese Raquin (1867)

"Therese Raquin" (1867) é um romance curto, quase uma novela, centrado num triângulo amoroso com crime, e as consequências psicológicas desse crime. O cenário é tão antigo como o humano, a novidade assenta no modo como Zola trabalha os efeitos do crime, como entra pelas mentes dos criminosos adentro que soltos de culpa oficial não conseguem livrar a sua consciência da mesma. É algo que já tinha sido feito, com grande sagacidade no ano anterior, pelas mãos de Dostoiévski com “Crime e Castigo” (1866). Zola não desilude, mas corre mais riscos, apesar de naturalista não consegue evitar uns certos traços de terror psicológico por via de algum exageramento. O livro continua a ler-se bem ainda hoje, mas talvez o mais interessante seja mesma a parte académica, o lançamento da obra e as críticas duras que recebeu, o que pretendia Zola fazer e as justificações nos prefácios seguintes, assim como as adaptações para teatro e depois cinema.


Deixo ainda uma nota, estes clássicos têm sempre algo de mais relevante que é o modo como nos dão a ver outras épocas, os costumes e comportamentos, os receios e os despreendimentos. Uma das cenas mais impressionantes deste livro acontece na descrição do funcionamento da morgue de Paris em 1860. É uma descrição absolutamente macabra. Deixo um excerto:
“A Morgue é espetáculo ao alcance de todas as bolsas, que pobres ou ricos oferecem gratuitamente a si próprios.
A porta está aberta, entra quem quer. Amadores há que fazem um desvio para não perder uma destas representações da morte. Se as lajes estão vazias, saem desapontados, murmurando entre dentes. Quando estão bem providas, quando há uma boa exposição de carne humana, os visitantes comprimem-se, dando-se emoções baratas, assustam-se, deleitam-se, aplaudem ou assobiam como no teatro e retiram-se satisfeitos, declarando que a Morgue nesse dia saiu-se bem.
Laurent conheceu depressa o público que ali acorria, público heterogéneo que se compadecia e escarnecia em comum. Entravam operários, a caminho do trabalho, com um pão e as ferramentas debaixo do braço; achavam a morte divertida. Entre eles encontravam-se os que faziam sorrir a galeria a cada frase sobre o rito de cada cadáver; chamavam carvoeiros aos que tinham morrido queimados; os enforcados, os assassinados, os afogados, os cadáveres estripados ou esmagados, excitavam-lhes a imaginação zombeteira e com voz que lhes tremia ligeiramente balbuciavam frases cómicas no silêncio arrepiante da sala.”