agosto 01, 2019

Não-linearidade das relações humanas

Ao longo dos últimos 15 anos o cinema romeno tem sido uma das maiores referências no que toca à análise da psicologia das relações humanas, seguindo abordagens profundamente literárias e bergmanianas. “Ana, Meu Amor” (2017) não é diferente, com todo o filme a trabalhar uma relação complexa de um jovem casal, embora ainda assim me tenha surpreendido pelo modo como a sociedade romena é apresentada, já que são trazidos para cena vários detalhes religiosos e familiares que dão conta de uma sociedade ainda presa a vários arcaísmos. Por outro lado, toda a capacidade expressiva da linguagem fílmica é colocada ao serviço da história, com Călin Peter Netzer a demonstrar enorme mestria, nomeadamente no controlo narrativo e direção de atores.



Sobre a história, questionei-me ao longo do filme e várias vezes entretanto, se o impacto será o mesmo sobre alguém que não tenha passado por uma situação similar. O quadro oferecido é o de um casal a estudar na universidade, em que a jovem mulher apresenta problemas do foro psiquiátrico, provinda de famílias disfuncionais, estando bastante debilitada e logo altamente dependente, e o jovem, fruto de uma família de classe média estável, que vê nela uma oportunidade de “salvar” alguém, de fazer a boa ação da sua vida, ainda que contra a vontade dos seus próprios pais. O interessante disto é o modo como tudo se desenrola, e acaba passados alguns anos com os papéis invertidos (não posso dizer muito mais).

Se a história é esta, o impressionante é o modo como é dada a ver e sentir, como é tudo tão real, tão verdadeiro, tão impressivo. O filme apresenta-se de forma não-linear, variando continuamente num friso de 10 anos, o que é facilmente compreendido pela magnífica caracterização dos personagens, nomeadamente a componente do cabelo, com ele a perder cabelo e ela a trocar a cor, mas também a performance. Impressiona ver o ser-humano mudar, transformar-se, passar de um lado ao outro do espectro, de dominante a submisso, e como isso tolda totalmente a sua existência, a sua forma de ver o outro. Como tudo isso corrói e destrói completamente a relação que tinha surgido de uma necessidade de ambos os lados, mas que a vida natural de um casal se encarrega de alterar, obrigando naturalmente cada um a evoluir, e a encaixar os novos mundos e novas experiências do outro. Claro que é tudo fácil explicado assim, em teoria, e sabendo disso torna o filme ainda melhor, porque ele nunca dá lições, apesar de mostrar caminhos distintos como a religião ou a psicanálise, dá a ver para nos fazer refletir, para nos obrigar a questionar opções e decisões do passado, ou possível futuro.

A dor está presente, mas é preciso lê-la na evolução da relação, compreender como se constrói uma relação destas, e depois ainda compreender as vicissitudes da evolução de cada ser humano e das implicações das transformações numa relação que se faz de hábitos que acarreta rotinas e expectativas, que por força da transformação de cada um se transverte, e muitas vezes, se não talvez sempre, de formas não expectáveis, pelas evoluções naturalmente distintas de cada um. Porque aqueles que chegam ao fim da vida juntos, estão muito longe de serem as pessoas que se conheceram quando jovens. Tiveram filhos, educaram-nos, deram-lhes um futuro, e continuaram juntos “fazendo de conta” que era importante manterem-se juntos...


Confesso que me questionei sobre a estrutura narrativa, sobre o porquê da não-linearidade, e porque Netzer não tinha simplesmente optado por contar a história linearmente, o que lhe teria garantido um público mais alargado (li críticas de quem se sentiu demasiado confuso seguindo os fios narrativos). Contudo, refletindo sobre o que está em jogo — as relações humanas, como se constrói um casal e como se mantém unido — talvez o sentido da não-linearidade seja mesmo central. Porque o que é uma relação entre duas pessoas se não um contínuo de avanços e recuos? Apresentar uma relação entre dois humanos como linha única e progressiva de eventos, acabaria por tornar toda aquela relação em algo profundamente banal, mecânico pela causalidade dos eventos e praticamente expectável. A não-linearidade serve totalmente a complexidade daquilo que perfaz a circularidade do humano que se exponencia ainda mais quando tem de se relacionar com o outro e construir uma espécie de entidade única: um casal. Visto assim, Netzer tem toda a razão em descrever o seu filme, ou estudo, como: "a impossibilidade real de construir um relacionamento".


Nota: O filme está disponível no catálogo regular do FilmIn.

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