setembro 08, 2018

Forma e sentido na construção narrativa

“Os Lança-Chamas” (2013) de Raquel Kushner dificultou-me tanto o processo de resenha que resolvi criar uma nova categoria no GoodReads para o mesmo que denominei “Sem Avaliação” (no-rating), e no qual acabei inserindo outros livros que, como este, me tinham sido difíceis de avaliar. As dificuldades levantadas por estas obras têm principalmente que ver com os elementos de avaliação que uso para aferir o valor das mesmas que nestes casos se me oferecem com pesos que os colocam em polos opostos. Ou seja, num desses elementos a obra obtém o valor máximo enquanto noutro o valor mínimo. Nestes casos não é possível fazer média, que é aquilo que vamos fazendo subjetivamente ainda que com grandes margens de flexibilidade. Aliás, só mesmo por toda esta flexibilidade subjetiva é que aceito avaliar quantitativamente as obras, pois se quisesse ser completamente rigoroso não daria quaisquer estrelas. Mas o que está por detrás desta obra, ou melhor da minha experiência da leitura desta?


“Os Lança-Chamas” é o segundo livro de Kushner, tendo a autora lançado este ano o seu terceiro livro, já traduzido pela Relógio d’Água também — “O Quarto de Marte”. Falo deste último porque foram alguns dos aplausos recebidos pela obra, da parte de autores e críticos que costumo levar em conta — Jonathan Franzen, George Saunders e James Wood — que despertaram o meu interesse na autora, fazendo assim com que comprasse este segundo livro de Kushner.

Ao fim de poucas páginas percebe-se porque Franzen gosta tanto de Kushner, as suas formas de escrita aproximam-se imenso, encaixando muito bem num grupo de autores — Jonathan Franzen, Zadie Smith, David Foster Wallace, DeLillo e Pynchon — que Wood usa para delimitar o rótulo, por si criado, do "realismo histérico" (a definição foi apresentada pela primeira vez na resenha de Wood do livro "White Teeth" em 2000). Este modelo de contar histórias define-se, segundo Wood, pelo "excesso" e "exaustão" de realidade, criando uma espécie de "realidade evasiva enquanto assume os contornos do realismo". Os autores forjam conexões, ligações, enredos e paralelos entre múltiplas histórias e linhas de ação, que obrigam a um detalhar continuo de descrição de ações que tornam o texto num fluxo contínuo e imparável, disparando em todas as direções de sentido.

Franzen foi o primeiro escritor em que me apercebi deste modo de narrar, o seu detalhar contínuo de ações e micro-ações que mudam de espaço e tempo e nos levam atrás com enormes ânsias por descobrir mais e mais sobre o que se irá passar a seguir, que no fundo fazem com que se crie uma espécie de histerismo, uma urgência sem propósito. Li algures, uma comparação com o estado atual do audiovisual, com a necessidade de fazer montagens cada vez mais rápidas para agarrar os espectadores, e nomeadamente com as séries e os seus múltiplos enredos que asseguram o interesse ao longo de horas e horas. Pode ser, embora na escrita isto resulte mais complexo porque a retenção de tanta informação, se não muito bem urdida, pode destruir toda a experiência de leitura pelo excesso de demanda cognitiva. Por outro lado, não me parece que falemos aqui de excesso de linhas de enredo, o que temos é antes um excesso de detalhamento de ação interna ao enredo. Como se o olhar destes escritores conseguisse colocar em pausa a realidade, e assim detalhar ao pormenor o que se passa e porque se passa.

Este modo resulta bem diferente daquelas torrentes descritivas que Balzac ou Eça nos ofereciam no início do realismo, já que não descrevem o estático (espaços e personagens) mas o dinâmico (os eventos), que pela sua imprevisibilidade, dotada pela transformação e mudança, aumentem a curiosidade do leitor, o despertam e instigam a correr atrás. Na descrição do estático, temos de realizar um esforço para reconstruir em nós o que o autor está a ver e a descrever, enquanto na dinâmica, no enredo, estamos apenas presos ao fio dos acontecimentos, totalmente focados no que se irá suceder a seguir, e por isso mais atentos, interessados e claro curiosos. Não é por acaso que em narrativas mais centradas nos personagens, as pessoas se queixem de falta de ação, porque falta enredo, ou seja grandes ações e transformações a acontecer em que se focar e deixar-se levar. Nas narrativas centradas no personagem, temos de trabalhar mais internamente para ver e sentir de que são feitos esses personagens.
"Quando eu tinha doze anos, Flip foi a Reno e deu autógrafos num casino. Eu não tinha uma fotografia boa para ele assinar, por isso ele assinou na minha mão. Durante semanas tomei banho com um saco de plástico a cobrir essa mão, preso com um elástico no pulso. Não era uma paixão romântica. A disponibilidade tem os seus níveis. As meninas não alimentam ideias de sexo, o seu corpo e outro juntos. Isso vem mais tarde, mas alguma coisa haverá antes disso. Há algum devaneio inocente, um sonho, e os ídolos são perfeitos para os sonhos de uma rapariguinha. Os ídolos não são reais. Não são o homem de serviço na bomba de gasolina que tenta levar-te para as traseiras do posto, nem um ardina que tenta levar-te a entrar numa barraca de ferramentas, nem o amigo do pai que tenta levar-te a entrar no seu carro. Eles não tentam levar-te. Chamam, mas como pequenas miragens no deserto. Flip Farmer era inofensivamente inalcançável. Era uma coisa especial. Escolhi-o entre todos os homens do mundo e ele assinou as costas da minha mão e sorriu com uns dentes muito brancos, muito alinhados. Ofereceu esse sorriso a cada de um nós, crianças e adultos que estivemos na bicha para o Harrah's. Não éramos indivíduos, éramos a superfície onde ele se movia, sorridente e distante. O caso é que, se ele me tivesse devolvido o olhar, eu talvez tivesse lavado da mão o seu autógrafo." (Os Lança-Chamas, p. 29)
Ora Kushner enquadra-se belissimamente neste registo. O modo como exacerba o detalhe da ação agarra-nos totalmente, suga-nos para dentro do livro, e as páginas passam a voar. Contudo temos um problema, e agora voltando ao histerismo de Wood, os autores deste estilo caracterizam-se por apresentar temas e tópicos bastante diversos, mesmo extravagantes ou exóticos (ex. DFW usa uma parafernália de personagens estranhos tais como os Assassinos de Cadeiras de Rodas ou a divisão em anos definidos e promovidos por marcas como os hambúrgueres Whopper ou as fraldas para adultos Depend; DeLillo fala de artistas que pintam bombardeiros no deserto; enquanto Zadie junta bombistas islâmicos com Jeovás, com defensores dos animais e cientistas judeus que fazem experiências genéticas). Kushner não se fica atrás e fala-nos de motociclistas e automobilistas que vão para os desertos de sal americanos bater recordes, contrapostos com os artistas da cena nova-iorquina dos anos 1970, ao que junta resquícios de famílias da nobreza italiana contrapondo-as com as Brigadas Vermelhas, para no final nos levar através do grande Blackout de 1977. Se os cenários de Kushner encaixam bem, seguindo o tal histerismo, apresentam algo de distinto face aos restante escritores, é que parecem, pelo menos eu não consegui descortinar, que quando se juntam não resultam em algo mais, ou tão só não parecem ter nada para dizer.

Quebra de recorde de velocidade em Bonnieville Salt Flats por Roland Free em 1948. Fotografia de Peter Stackpole para a revista Life.

Foto símbolo de 1977 dos Anos de Chumbo em Itália

As pilhagens durante o Apagão de NY, em 1977

Se olharmos para "Piada Infinita", ou "Dentes Brancos" ou "Submundo", todas estas obras se constroem na base de múltiplas histórias e historietas, umas mais outras menos loucas, mas todas trabalham para um objeto, o seu entrelaçar vai desvendando esse objeto, o seu conjunto significa, aponta para a construção de significante, ainda que ele possa ser subjetivo ou abstrato. No caso de "Os Lança-Chamas" as histórias vão-se sucedendo, a escrita é belíssima, mas tudo parece apenas servir o desígnio de entreter a nossa mente, uma leitura rica mas que parece estar apenas ao serviço do passatempo. Reconstituído o puzzle final da leitura, não retiro dele nada. Este foi o problema que encontrei em "Purity" de Franzen, por oposição ao que nos tinha dado nas suas duas anteriores obras "Correções" e "Liberdade"  Talvez não por acaso tenhamos visto Kushner dar entrevistas tentando explicar o que queria dizer com o livro, assim como tenha escrito todo um artigo de desconstrução do processo criativo da obra para a Paris Review. Mas essas explicações só acabaram a reforçar as minhas conclusões iniciais, de que realmente nada havia aqui além do imensamente sofisticado tricot de palavras. Falo em sofisticação, porque não está ao alcance de qualquer um escrever e descrever desta forma, requer virtuosismo que por sua vez requer muito estudo e trabalho.

Tendo mais a defender obras pela excelência da forma do que do sentido, ou melhor, tendia, mais ainda no cinema. Talvez por um excesso de adulação que fui lendo em alguma crítica aos sentidos de algum cinema mais artístico, habituado a codificar ideias em símbolos na esperança de ampliar o seus sentidos, sem contudo se ter de obrigar a dizer algo em concreto. Muito desse cinema era, e ainda existe algum, muito básico na forma, porque muitas vezes era feito por pessoas com muito pouco traquejo da arte. Supostos artistas, que tendo algo supostamente tão importante para dizer, podiam prescindir de desenvolver conhecimento do métier, considerando-o mesmo secundário na arte. Nunca suportei tal postura, ainda hoje lido mal com a chamada Arte Contemporânea por causa desta sua tendência, a defesa do artista que não precisa de sujar as mãos. Por outro lado, não posso aceitar o contrário, que o brilho da execução, o virtuosismo, sejam suficientes para elevar uma obra e fazer esquecer que ela é, numa grande parte de si, um ato de comunicação. Se não há nada para comunicar, então mais vale não escrever ou não filmar.

Termino dizendo que a obra de Kushner tem momentos muito altos, não apenas na forma mas também no conteúdo. Existe muita pesquisa aqui envolvida, somos brindados com imenso conhecimento à medida que vamos lendo, e no fundo aprendendo. Contudo falta-lhe um propósito, a capacidade de tudo enlaçar e dar a ver por um novo olhar seu, pessoal, sobre o mundo que decidiu nos apresentar. Sei que isto não é obrigatório numa obra, já que se trata de romance e não de uma obra de não-ficção ou uma tese. Contudo, olhando aos grandes clássicos, os livros que se eternizam são os que são capazes de jogar tanto na forma como no significado. Não fosse a obra tão instigadora de diferentes opiniões, e não teríamos tido críticos a criticarem-se na praça pública (Miriello responde a Seidel, com Tracy a tentar explicar o que os separa). De qualquer modo, conto ler o último livro, para tentar definir melhor a minha posição face à autora.

setembro 07, 2018

Coincidências por detrás de dois génios criativos

Depois de ter visto o filme "Avicii: True Stories" (2017) fiquei a saber um pouco mais sobre a vida e legado do músico. Por mero acaso, passava no TVCine no dia seguinte, o filme "Loving Vincent" (2017) e descobri também um pouco mais sobre a vida de Van Gogh. No final deste último, fiquei para ali sentado no sofá a refletir sobre as questões por detrás dos génios criativos, do que os ocupa e motiva, e foi quando me dei conta de algumas semelhanças entre Avicii e Van Gogh, de números assim como das suas passagens fugazes pelo planeta. Não quero com isto equiparar os criadores, nem tão pouco os seus legados, por isso chamo-lhe apenas coincidências. Contudo, para mim e a quem o desejar, de mente aberta, serve à reflexão sobre os processos criativos, o talento e seus efeitos.

À esquerda, "Auto-retrato" de Van Gogh. À direita, imagem criada por Phreakerx com recurso a algoritmos de IA.


Van Gogh [Holanda, 1853 - 1890]
A sua carreira durou 8 anos (1882-1890);
Pintou cerca de 800 telas;
Causa de morte: suicídio.

Quadro do filme "Loving Vincent" (2017). Filme criado seguindo o legado visual do artista.

Avicii [Suécia, 1989 - 2018]
A sua carreira durou 8 anos (2008-2016);
Fez cerca de 800 espetáculos;
Causa de morte: suicídio.

Quadro do filme "Avicii: True Stories" (2017). Filme lançado antes da morte do músico.

setembro 06, 2018

"Loving Vincent" (2017)

"Loving Vincent" de Dorota Kobiela e Hugh Welchman é um filme-tributo dedicado a Vincent Van Gogh que usa como base a pintura a óleo, num processo manual que recorreu a mais de 100 artistas, para produzir os quadros que animam todo o filme. Se a primeira impressão é de estranheza, não só porque nem todos os quadros resultam esplendorosamente, mas principalmente porque existem vários problemas de fundo com a animação dos elementos, a história acaba funcionando bastante bem e a música de Clint Mansell marca a emocionalidade, a ponto de nos envolver e conseguir levar a viajar até bem perto de Van Gogh. Ficam algumas das melhores imagens do filme e um excerto de uma carta sua para o seu irmão, no início da sua jornada artística.















“What am I in the eyes of most people — a nonentity, an eccentric, or an unpleasant person — somebody who has no position in society and will never have; in short, the lowest of the low. All right, then — even if that were absolutely true, then I should one day like to show by my work what such an eccentric, such a nobody, has in his heart. That is my ambition, based less on resentment than on love in spite of everything, based more on a feeling of serenity than on passion. Though I am often in the depths of misery, there is still calmness, pure harmony and music inside me. I see paintings or drawings in the poorest cottages, in the dirtiest corners. And my mind is driven towards these things with an irresistible momentum.”
Vincent van Gogh, 21 July 1882

O tarot de Byung-Chul Han

Há uns anos sentei-me numa mesa com uma senhora que lia cartas de tarot, fiz uma pergunta à qual fui presenteado com várias perguntas, a que fui "compelido" a responder, ao que se sucederam várias supostas respostas ou histórias. Quando saí de lá e ao longo dos dias seguintes, pouco tempo dediquei à alegada resposta apresentada à minha dúvida, fiquei-me mais pelo dissecar da Arte do Tarot, que como já devem ter percebido acima, consiste essencialmente em buscar elementos, baralhar e voltar a dar, socorrendo-se de boas capacidades da arte de contar histórias para gerar uma narrativa estruturada e credível, esperando que a crença do ouvinte faça o resto. Ora isto mesmo foi o que senti com Byung-Chul Han, que parece estar a reciclar discussões com 20 e mais anos, juntando-lhe uns pozinhos de atualidade que lhe conferem uma aparente nova relevância.


De modo mais sério e racional, Byung-Chul Han pega em fenómenos que se vão sucedendo no mundo do online, analisa com base em algumas outras leituras e conhecimento próprio sedimentado, retira algumas conclusões a partir do que cria grandes teorias genéricas, no abstrato, que supostamente depois podem ser aplicadas a todo e qualquer fenómeno que aconteça no mundo do online. Sendo interessante a leitura, no final de cada texto ficamos como quando começámos, pois se existe algo a que o online é pouco dado, é a generalizações. Se bem que não é o online, é quase tudo. Este tem sido o meu grande problema com a Filosofia nos últimos 20 anos. Há medida que me vou especializando, e ganhando conhecimento sobre determinadas áreas, mais me custa ler abstrações criadas com base em generalizações latas.

Han, Byung-Chul,  (2016), "No enxame: reflexões sobre o digital", Relógio D’Água, Lisboa

Diga-se que este não é um problema só da Filosofia, faz parte da nossa forma de estar no mundo, que por ser amplamente complexo e variável não dá muito espaço para que se individualizem soluções, correndo-se o risco de tender para o infinito. Veja-se a mais recente discussão no mundo da medicina e farmácia ou da educação, em que se vem tendendo a defender soluções o mais individualizadas possíveis. Se bem que no caso da Filosofia não me parece existir um problema de oferta e procura, a não ser que se pretenda aumentar o número de leitores!

Em termos mais concretos. Han discute a destruição do respeito pelo anonimato, discute a destruição da mediação e do gatekeeping, tudo como se fosse algo recente e que tivesse agora sido descoberto, atacando com todo o mesmo argumentário que tantos fizeram ao longo das últimas décadas. Não esqueçamos que a teorização sobre comunidades virtuais e a condição pós-moderna tem para cima de 30 anos. Por outro lado, com tanto a acontecer, Han não foi capaz de ir além de muitas dessas visões apocalípticas. Aliás, não deixa de ser interessante como mais para o final do livro Han cita abundantemente Vilém Flusser, mas não para o seguir, antes para dizer que as suas visões não se concretizaram! O que se estranha, já que quando analisados, o facto da comunicação passar a bidireccional não conduz automaticamente a nenhuma destruição das representações que arrastam as massas. Se assim não fosse, o próprio nome de Byung-Chul Han enquanto filósofo nem sequer se teria chegado a construir. As massas mesmo sendo mais individualizadas, não deixaram de ser massas, e a mediação continua a fazer-se sentir, talvez mais do que nunca, pelo poder económico que a produção cultural adquiriu na última década por força da necessidade de inovação e criatividade inerentes às lutas num mundo globalizado.

Vejamos, poderia existir uma Apple, a "first trillion dollar company", ou superproduções milionárias como a série "Game of Thrones", o filme "Avengers", o videojogo "GTA", e porque não as mais de dez temporadas do programa de televisão das Kardashians, e a nível nacional e saindo daquilo que seriam os meios tradicionalmente de massas, o Wuant e a Sea3po, sem essas massas sem os gatekeepers que direcionam para esses fenómenos massivos que emergem da multidão? Ou seja, poderiam estes fenómenos tornarem-se universais como se tornaram sem todo um trabalho de mediação (publicidade e marketing) e gatekeeping (acesso a canais privilegiados)?

Han propõe o conceito de "enxame" para estas novas massas, o enxame sem alma, porque de tão individualizada nada os representa. Mas até a própria metáfora é fraca, o enxame não é individualizado, é uma das maiores obras de coletivismo da natureza, tal como o formigueiro. Todos trabalham para um mesmo fim, todos respondem da mesma forma aos mesmos estímulos, todos seguem sem questionar. Ainda que aquilo que haveria aqui a concordar é que, as abelhas, motivadas pelo design do seu comportamento instintivo, seguem sem necessidade de maestros. O seu comportamento produz, pela emergência (esforço individual não direcionado que surte frutos concertados) o enxame, tal como o favo e a colmeia. Assim o enxame é já um resultado da união de interesses idênticos de uma massa, que pode não ser regulada por ninguém, mas é regulada pela inerência comportamental. Do mesmo modo, nós humanos tendemos a ser regulados por comportamentos que nos impelem para o outro, que nos subjugam pela empatia, e nos fornecem prazer e recompensa por via de fenómenos como o seguidismo e o culto.

Existem momentos no livro, que mais me parece estar a ler uma tese de mestrado de um qualquer aluno de Ciências da Comunicação. Frases como:
"Hoje já não somos meros recetores e consumidores passivos de informações, mas seus emissores e produtores ativos. Já não nos basta consumir passivamente informações, mas queremos produzi-las e comunicá-las de modo ativo." (p.27) 
"Hoje, as imagens não são apenas cópias, mas também modelos. Procuramos refúgio nas imagens para nos tornarmos melhores, mais belos, mais vivos". (p.39)
"A comunicação digital assume a forma não só de espectro, mas também de vírus. É contagiosa, porque se produz imediatamente no plano emocional ou afetivo (..) A escrita, por seu turno, é demasiado lenta para tanto." (p.69)
De certa forma, o problema de Han acaba por se reduzir às parcas leituras no domínio da comunicação, surgindo Barthes amiúde, um dos grandes propositores da narrativização do social, mas manifestamente insuficiente para o que Han pretendia aqui analisar. No seu tempo a Semiótica foi não só novidade mas gerou grande adesão com as suas leituras e interpretações abrindo-nos o apetite pelo decifrar do real proposto em modos narrativos acessíveis. Mas hoje, usar este mesmo tipo de ferramentas é curto, muito curto. Onde fica a imensidade do trabalho desenvolvido pelas ciências sociais desde todo o levantamento empírico quantitativo e qualitativo a toda a evolução da teorização psicológica suportada pelas novas tecnologias e métodos fornecidos pelas neurociências?

Claramente que no meio de tudo isto surgem ideias luminosas que me despertam e fustigam o pensar, mas porque nada é aqui desenvolvido, ficando-se tudo por textos curtos de 2 ou 3 páginas, rapidamente descarto porque me questiono se a frase, a tal ideia apresentada, não é mais do que uma interpretação minha daquilo que ele apenas hipoteticamente quereria dizer.

Avicii: Necessidades e Realização Pessoal

Acabei de ver o documentário "Avicii: True Stories" (2017) que recomendo vivamente a quem tiver interesse nas indústrias criativas, e claro no mundo da música. O melhor do filme é conseguir traçar toda a curva evolutiva do criativo, enquadrando a sua proveniência, valores e mundo, enquanto coloca a nu o desenlace quase natural que viria a acontecer apenas um ano depois do filme lançado. Aliás, em vários momentos, alguns dos entrevistados quase parecem falar como prenúncio. Existem algumas notas sobre o filme e Avicii que quero aqui deixar, ainda que não sejam nada de muito novo, são mais assunções sobre o processo criativo, o seu progresso, e potencial embate assim como algumas alternativas a esse embate.




Não existirá, em 2018,  quem não tenha ouvido uma melodia do músico, e isso dá conta do modo como ele impactou o planeta à sua passagem. Se isso se deve à excelente equipa de promoção e divulgação do seu trabalho, deve-se ainda mais à sua total obsessão com a arte. Existem vários momentos no filme em que Avicii me recorda Cristiano Ronaldo (entre tantos outros, mas também imensamente mediático e contemporâneo). 16 ou mais horas em cima da criação, sempre a aperfeiçoar, sempre à procura do seu melhor. Se Ronaldo anda sempre com a bola, Avicii andava sempre com o Mac (nem poucas horas depois de uma operação como se vê nesta imagem).


A necessidade criativa é algo absolutamente intrínseco e que salta à vista nos exemplos de maior sucesso, com pessoas que vivem e respiram aquilo que fazem. Conseguem amar mais o trabalho que qualquer outra pessoa, mesmo mais do que a si próprios. Deste modo acabam transcendendo-se, e em consequência transcendendo os seus frutos, criando o novo, o nunca visto, o original. Começam pela cópia e pelo remix, mas em pouco tempo, de tanto obsessivamente criar, acabam a inventar, a inovar.

O diagrama em pirâmide surgiu da teoria psicológica de Abraham Maslow sobre a Hierarquia das Necessidades, publicada em 1943

Avicii fez, entre 2008 e 2016, mais de 800 espetáculos.

O documentário é bom porque mostra também o outro lado da criatividade desenfreada, em busca da constante ultrapassagem de si, até ao embate na parede. Avicii bateu na parede quando percebeu que não tinha mais nada para ultrapassar. Os concertos deixaram de o fazer feliz, e tudo passou a ser stress e ansiedade. Avicii já não tocava porque interiormente assim o desejava, mas apenas porque era essa a vontade de outros, o que acabou a destruir a sua força motivacional (cf. com a "teoria da auto-determinação" de Deci e Ryan). Por outro lado, e seguindo Maslow e a sua Pirâmide das Necessidades Humanas (ver diagrama acima), Avicii cumpriu todas as necessidades, não havia mais nada na pirâmide para ele. A realização pessoal foi total, estando todas as outras necessidades também plenamente garantidas, o que fazer quando nos realizámos plenamente até ao topo?

Provavelmente a única maneira de lidar com tal passa por desenhar novos sonhos, de preferência impossíveis. O Cristiano Ronaldo tem um Mundial para ganhar, Avicii precisava de algo que lhe garantisse curiosidade e desejo, e desse modo "necessidade". Não existindo tal dentro da arte, é preciso abrir as palas da realidade, ver para além do nicho de realidade a que nos deixámos sucumbir. Avicii terá cometido o erro de se fechar no mundo da música, ou de se rodear de pessoas que limitaram o seu mundo e universo. Viajava e visitava lugares belos, paradisíacos e em parte inacessíveis, mas nada disso serviria a motivação, isso não passavam de recompensas extrínsecas, totalmente incapazes de puxar pelo seu interior. Avicii precisava de ter encontrado outro objeto em que pudesse descarregar toda a sua energia criativa, que o desafiasse a ir além de si próprio, que lhe colocasse obstáculos reais. Tinha demasiada energia, tinha necessidade de se realizar em algo que o estimulasse, mas isso só poderia ter chegado por via da dificuldade, da impossibilidade. Pensemos em Arthur Rimbaud.

Tim Bergling, aka Avicii, [1989 - 2018]

setembro 02, 2018

"Édipo Rei" de Sófocles

Não vou fazer nenhuma análise em profundidade desta obra — "Édipo Rei" (-429) — pois para o tamanho do texto, nomeadamente o conflito principal em causa, já foi tudo tão amplamente dissecado que será impossível dizer algo de novo. Por isso expressarei apenas breves notas sobre a minha experiência de leitura.

Há muito tempo que tinha intenção de iniciar a leitura dos textos dramáticos da antiga Grécia, mas tal como aconteceu com Shakespeare, fui sempre protelando, porque as peças teatrais escritas não são propriamente o meu forte. Tenho dificuldade em aceitar aceder a uma obra que no estado escrito é apenas parte de um todo. Contudo, tanto quando li Shakespeare como agora com Sófocles, fui surpreendido pelos textos, pela sua capacidade de me demover. Sei bem que falo de peças não apenas de grande qualidade mas capazes de ultrapassar o teste de séculos e milénios.

Assim e se Édipo era para mim um personagem amplamente conhecido, pelo modo como invadiu o imaginário ocidental, não sei se por graça de Sófocles ou das tontices de Freud, a peça acabou por me surpreender exatamente no modo como se destaca da descoberta do conflito principal. Quando iniciei a leitura senti-me algo desmotivado por ver tanta discussão — sobre o filho que mata o pai e casa com a mãe — tentasse eu aceder à obra onde quer que fosse, em que edição fosse. No entanto Sófocles vai muito para além da trama, ela está lá, ela tudo faz mover, e de certo modo confere a Aristoteles razão quando este afirma que é a trama mais importante que os personagens, mas é Sófocles que acaba a demonstrar o contrário. Ou seja, se o conflito está lá, se o enredo empurra os personagens para uma espécie de precipício dramático, continuam a ser os personagens quem decide saltar ou não. Sófocles centra-se nesse ponto, em buscar o modo como reagir a algo que conhecíamos de antemão, e executa de forma trágica, como não podia deixar de ser numa tragédia.

Assim, digo que se me incomodou toda a dependência dos deuses e dos adivinhos, não deixou de me impactar a decisão final de Édipo pensada para ter efeito tanto nesta vida como no além. É um clímax digno da catarse de Aristoteles, e que explica bem o receio que Platão tinha de ver a República manipulada pelas artes.

 
"The blind Oedipus commending his children to the Gods", 1784, de Bénigne Gagneraux

Uma nota final para a questão do incesto. Vivemos uma época de grande liberação sexual, o que tem vindo a abrir espaço para a defesa do incesto entre adultos (cf. "Impunidade" HG Cancela). Em defesa destas visões muitas vezes enunciam-se os nossos antepassados gregos e romanos pela sua liberdade que teria sido, mais tarde, castrada pela igreja. Contudo, do que se pode ler nestes textos, é que se existia maior liberdade sexual ela estava muito longe de uma anarquia moral.

agosto 31, 2018

Ilusões Perdidas de Balzac

As ilusões discutidas são tantas que é difícil fazer uma resenha sobre tudo aquilo que trespassa este livro, mas diga-se que sem uma reflexão sobre o que se leu, uma análise do todo e daquilo que o autor parece querer dizer, podemos acabar por ficar à porta das intrigas e conflitos, muito bem urdidos, mas não propriamente o mais consequente da obra. A história terá uma base forte autobiográfica, mas mesmo assim Balzac não se limita ao seu pequeno mundo, coloca em questão um jogo de caminhos, encruzilhadas e soluções que nos falam da teia com que a sociedade nos enlaça e da qual cada um de nós tem de, da melhor forma, desenvencilhar-se. "Ilusões Perdidas" (1843) não é um simples "coming of age" ou "bildungsroman", é antes um mapeamento das diferentes possibilidades proporcionadas para o devir em sociedade.


A obra centra-se em dois personagens, aparentemente opostos, mas muito similares em termos de desejos, motivados não pelo que em si sentem, mas pelo que a sociedade lhes parece exigir, pelo que o mundo lhes pede que sejam, façam, devenham. Existe toda uma crítica não aos personagens, mas aos seus modelos do mundo, à ideologia que os sustenta, que os faz rodar e viver. Se David Séchard sonha em inventar um novo tipo de papel, não é porque o seu mote seja a criatividade ou a invenção, mas é apenas porque lhe renderá fortuna. Já Lucien parte à procura de aclamação para o seu romance, quando aquilo que na verdade lhe interessa é a aclamação da sua pessoa e as benesses que essa aclamação lhe possa oferecer. De maneiras diferentes, ambos acabam compreendendo que o mundo é complexo e difícil de domar, e se David parece aceitar e deixar-se domar, Lucien Chardon não aceita, percorrendo a saga igual a si próprio do início ao fim, e até para além deste livro (este livro tem uma segunda parte, menos conhecida, em "Esplendores e Misérias das Cortesãs" (1847)). Se num dos caminhos as ilusões se perdem e a resignação toma lugar, no outro caminho, as ilusões que se perdem não são as de quem segue o caminho, mas as de quem, como nós, vai acreditando que com os erros se aprende, e que tarde o cedo quem erra e sofre corrigirá o caminho, até que compreendemos que existe quem nunca aprende, perdendo nós a ilusão de ver a pessoa crescer e transformar-se.


Uma das questões que me coloco face a Balzac é o porquê de uma "Comédia Humana" com quase uma centena de volumes. Balzac acaba por explicar nas suas próprias obras, ao construir personagens a partir da realidade vivida e experienciada. Porque se Rastignac (de "Pai Goriot") e Lucien ("Ilusões Perdidas") são ambos jovens à procura de ascensão social parisiense, Goriot (o pai de "Pai Goriot") e Jérôme-Nicolas (o pai de "Ilusões Perdidas"), são ambos pais dessa “Comédia”, mas em polos afetivos completamente opostos. Aquilo que mais nos toca em "Pai Goriot" é a figura desse pai, que aqui Balzac mostra de ângulo diametralmente oposto, totalmente ignóbil e desprezível. Por outro lado, Balzac não se coíbe de ir reutilizando personagens de uns romances para os outros, Rastignac surge aqui e conversa com Lucien, tal como o prisioneiro fugitivo de "Pai Goriot", que depois assumirá o papel de protagonista na segunda parte das Ilusões, em "Esplendores e Misérias das Cortesãs". Balzac concebeu o seu mundo literário, a "Comédia Humana", como um mundo paralelo, espelho da realidade, mas construída à sua vontade e desejo, permitindo-lhe enfatizar, pintar, o mundo como ele próprio o via. Um desses destaques é o choque entre a pobreza e a riqueza, e os modos como se passa de um lado para o outro, daí que a ascensão social seja uma constante nos seus livros.

Tendo falado dos principais personagens, David e Lucien, quero apenas destacar os seus dois mundos, duas realidades tão distintas, mas que pouco ou nada mudaram em 175 anos. Por um lado, David tentando inventar e patentear uma revolução tecnológica no mundo do papel (em nada diferente de uma Apple, Facebook ou Google), por outro, Lucien tentando afirmar-se no mundo das artes, dando conta do quão estas se definem pela rede de amizades, mais do que pelo mérito. Ambos em busca da ascensão, da liberação da miséria, em busca de algo melhor, respeitando as regras, tentando aprender com os seus erros. Existe aqui uma luta dual que Balzac explora.

Marcel Proust agarrou-se à segunda parte, à arte e sociedade. Em certa medida fico a pensar que Proust escreveu "Em Busca do Tempo Perdido" como resposta a "Ilusões Perdidas". Ambos, Proust e Balzac, criticam o vazio da sociedade e o modo como só se é aceite e aclamado estando bem posicionado nas redes de "amigos" (as cunhas, o networking, as alianças, os lados da barricada). Mas Balzac parece quase submeter-se a esse desígnio, aceitando-o como uma inevitabilidade das sociedades humanas, parecendo desistir da possibilidade de poder existir algo mais na arte. Ora Proust escreve 7 tomos, abrindo e fechando um ciclo de ideias, que explicam o que tem a arte e a literatura para nos oferecer. Proust vai em busca da transcendência do sentido da literatura, para nos levar a acreditar no desígnio da mesma. Se Balzac atira tudo para a lama, Proust levanta e ergue de novo o edifício da arte literária, mostrando um mundo que só a ela pode oferecer, acabando deste modo a demonstrar como a própria obra de Balzac encarna em si mesmo essa transcendência.

No outro caminho, Balzac persegue os ideais capitalistas, da mais valia, da diferenciação e ganho de valor face à concorrência, colocando mesmo David a explicar a diferença entre o mercado Europeu e o Chinês, num discurso que se fosse hoje lido num jornal, seria aceite como tendo sido expresso nos nossos dias. Se Balzac parece a momentos acreditar nas capacidades inventivas do humano, na capacidade de nos deslocarmos no sentido do melhor para todos, de um suposto progresso, esse mesmo caminho surge aqui amputado, e agora não apenas pela falta de conhecimentos e rede, mas pela banca e pelo estado. A banca que empresta sob a condição de receber o dobro daquilo que emprestou, e o estado que tudo faz pelos direitos de quem detém o poder e empresta, esquecendo os mais frágeis e em piores condições de cumprir, impondo-lhes mordaças que os afastam da sociedade justa que tanto proclamam. Por isso mesmo a admiração expressa por Marx várias vezes à “Comédia” de Balzac.
"A mão de obra não vale nada na China; ali uma jornada vale três soldos, e assim os chineses podem pôr o seu papel, folha a folha, ao sair da forma, entre as lâminas de porcelana branca aquecidas, por meio das quais o prensam e lhe dão esse brilho, essa consistência, essa leveza, essa suavidade de cetim que o torna no primeiro papel do mundo. Pois bem! É preciso substituir o processo chinês por uma máquina. Com as máquinas conseguiremos resolver o problema do baixo custo que a China consegue à conta do baixo preço da sua mão de obra." (p.119)
“Como um grande estabelecimento bancário tem todos os dias, em média, uma ‘Conta de Devolução’ num valor de mil francos, recebe diariamente vinte e oito francos pela graça de Deus e pelas leis da Banca, uma formidável realeza inventada pelos Judeus, no século XII, e que hoje em dia domina os tronos e os povos. Por outras palavras, mil francos rendem então a esse estabelecimento bancário vinte e oito francos por dia ou dez mil e duzentos e vinte francos por ano. Se triplicarmos a média das ‘Contas de Devolução’, veremos que o rendimento é de trinta mil francos, vindo de capitais fictícios. Assim, não há nada que se cultive mais carinhosamente do que as ‘Contas de Devolução’.” (p.559)
As ilusões são atiradas pela janela, mas já sabíamos disso quando começámos a ler, estava escrito no título, mas nem por isso nos custa menos ver o quão desencantado Balzac se terá sentido para o escrever. "Ilusões Perdidas" pode já não ser atual em termos legislativos, mas deveria talvez ser uma obra obrigatória de leitura, não como mero grito de alerta aos jovens e seus sonhos de fama (pense-se no mais recente sonho de muitas crianças: ser YouTuber) mas como grito à sociedade nas suas múltiplas capacidades e necessidades — inventores, artistas, jornalistas, banqueiros — mas acima de tudo, governadores e políticos.
“É difícil (..) ter ilusões sobre qualquer coisa em Paris. Aqui há impostos para tudo, vende-se tudo, fabrica-se tudo, até mesmo o sucesso.”
Uma nota final sobre a leitura. As primeiras 50 páginas podem parecer paradas, Balzac tende a exceder-se na contextualização das personagens, e volta a fazê-lo sempre que alguma nova surge, mas o livro vai ganhando velocidade a ponto de se tornar imparável. Posso dizer que demorei uma semana para passar a primeira parte, mas num dia li toda a segunda metade.

agosto 30, 2018

Pippi das Meias Altas (1945)

Confesso que comprei e li este livro apenas por surgir na lista das 100 Obras Literárias do Mundo compilada pelo Instituto Norueguês do Nobel. A Astrid Lindgren foi um dos 54 autores que contribuíram para a definição da lista, falecendo no ano de publicação da mesma (2002). Confesso ainda que a Pipi não faz parte do meu imaginário de criança, apesar de conhecer o nome desde sempre, só fiquei a conhecer o universo quando os meus filhos, há um par de anos, andaram a ver a série na televisão.

Esta edição da RdA apresenta-se numa belíssima capa dura. 

Dito isto, a minha aproximação à obra foi neutra em termos nostálgicos, embora influenciada pela respeitabilidade que a lista lhe confere. Tendo o texto sido escrito para um público com 7 anos, dificilmente poderia sentir muito a leitura, por isso procurei mais compreender de que era feita e como comunicava com o seu público-alvo.

Existe aqui uma fórmula evidente: o exagerar das capacidades, ações e intervenções da protagonista, que vão servindo os leitores mais novos com doses de surpresa, espanto e muito humor. A estrutura do livro é feita de quadros simples que definem um dia, e em cada dia existe um acontecimento que marca a experiência das crianças. A escrita segue raciocínios simples, por vezes limitando-se a descrições em sucedâneo mas que se ajustam à idade.

Quanto ao conteúdo, e principalmente a personagem, tenho de dizer que sai bastante do discurso politicamente correto a que nos temos habituado, tanto para os dias de hoje como em 1945. Aliás, na altura gerou fortes reações dos pais e escolas, e hoje continua a fazê-lo, basta ler algumas resenhas aqui no GoodReads. A Pipi é altamente irreverente, não se dobra a nada nem a ninguém, o que não deixa de ter um lado positivo, nomeadamente por ser uma menina. Quantas personagens femininas existem no nosso imaginário capazes de impor respeito a rufias, ladrões e polícias, que não têm medo de nada, nem sequer fantasmas. Não admira que a Pipi se tenha tornando num enorme símbolo do feminismo.

agosto 28, 2018

A primeira história do Cânone

O “Épico de Gilgamesh” data de, aproximadamente, 2000 A.C., perfazendo 4000 anos de história. Terá surgido aquando do fim da primeira civilização conhecida, a Suméria, e o seu desaparecimento pela unificação com o Império Acádio, situado no sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, lugar que é hoje conhecido como sul do Iraque. As primeiras pinturas realizadas em cavernas tal como as primeiras esculturas, ambas na Europa, datam de há sensivelmente 40 mil anos. A proto-escrita surgiu há 10 mil anos, mas a primeira língua escrita, o cuneiforme, surgiu apenas há 5 mil anos, ainda no auge da Suméria. De todos estes dados é impossível não extrair duas conclusões que formam uma: a complexidade da literatura só foi possível de se desenvolver com a estabilização da civilização, e assim temos que a literatura não é fruto de cada um de nós, seres individuais, a sua complexa e intrincada estrutura requer, exige, a presença de uma rede intensa de interação social.

Nas esculturas temos, potencialmente, Gilgamesh agarrando um leão, e o Grande Touro do Céu. Relevos retirados de um palácio do Iraque, do século VIII, agora presentes no Louvre.

Se as histórias elaboradas, na forma escrita, requerem um berço humano dotado de intensa ação cultural, o seu objeto acaba sendo ele próprio a intensificação desse berço e dessa ação. Isto foi compreendido desde cedo por governadores e imperadores, e o do Império de Acádio terá sido o primeiro com essa visão. O recurso à figura de Gilgamesh (um rei da dinastia suméria, 2800-2600 A.C.) terá surgido pelo facto de este ter sido, após a sua morte, deificado, o que conduziu à criação de odes e poemas que foram sendo aumentados no tempo. Assim, terá surgido este primeiro poema épico da nossa história, que junta vários poemas anteriores numa história maior, mais elaborada e completa, capaz de dar conta de feitos de um dos grandes da história.

Capa da edição da Vega, traduzida por Pedro Tamen a partir da edição de NK Sandars de 1960.

Na história, e mais ainda com este recuo é impossível ter certezas, muita da história que se faz é também ela própria literatura, ficcionamento do pouco que se conhece. Digo isto porque os sumérios não estavam sós, pouco distantes destes tínhamos os egípcios que reinaram junto do rio Nilo e criaram os seus próprios impérios imensamente poderosos. Não teriam construído pirâmides daquela grandiosidade sem grande poder sobre os milhares de pessoas necessárias à sua construção. Por isso é de estranhar não encontrarmos no cânone literário qualquer obra proveniente do Antigo Egipto. Do que pude explorar, e imaginando e ficcionando, fico com a ideia que se terão ficado pelas odes e cantos, e não terão conseguido ir além, pela razão de que não se conseguiram desprender da sua mitologia. Contar histórias requer descer ao nível do humano, definir um igual ao leitor, para que ele possa colocar-se no lugar e seguir atrás. Ora os egípcios, ao contrário dos sumérios, tratavam os seus Faraós já como deuses, e tudo o que escreviam ia no sentido da descrição de um mundo imaginário, de um além pleno de deidades. Repare-se como os gregos ultrapassaram este problema colocando os dois universos em paralelo, os deuses de um lado e os humanos do outro, tal como depois fizeram também os romanos.

A “História de Sinuhe” (2000 A.C.) é um dos textos egípcios mais antigos com estrutura narrativa, e o mais interessante da sua leitura acaba sendo a confrontação com o “Épico de Gilgamesh”, tendo surgido ambos na mesma época. Enquanto o poema egípcio se perde em mundos imaginários com homens deuses, o épico sumério dá-nos um homem, que apesar de falar com os deuses, padece de sofrimentos profundamente humanos: a amizade e o amor, o medo e a coragem, a mortalidade e a velhice, o sentido da vida. Muitos destes temas foram trabalhados, seguindo estruturas muito próximas, mais tarde por Homero em a Odisseia (ver "The East Face of Helicon", p.402), mas não só, todos estes temas continuam sendo atuais, porque estes temas são a essência da condição humana, formando a essência daquilo que a literatura representa.
“Não existe permanência. Será que construímos uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Só a ninfa da libélula é que se despe da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência.” (Gilgamesh, p.61)
Por isso não admira que o livro surja como basilar no cânone, não por ser meramente a primeira história elaborada escrita, mas porque o seu conteúdo é basilar na formação daquilo em que nos tornámos quando decidimos viver em sociedades alargadas e criar civilizações capazes de transformar todo o planeta, para o melhor (ex. criação da arte e ciência, da cultura, aprendizagem e curiosidade contínuas, luta pela inclusão e diversidade de todas as raças e animais) e para o pior (ex. armas nucleares, alterações climáticas, etc.).

Voltando à relevância da obra para o império em que surgiu, devo dizer que os impérios se afirmam pelas armas, dobram pela força, mas não convertem sem histórias (o caso do Antigo Egipto apresenta particularidades geográficas — rio de um lado e deserto do outro — que o isolaram do resto do mundo durante milénios, confinando a sua realidade e imaginário e potencialmente a sua capacidade de contar histórias, como parece ter acontecido com as civilizações antigas do continente americano). É mais fácil percepcionar isto na religião cristã que está ainda muito presente à nossa volta, que não necessita, hoje, de armas para reinar, basta-lhe as histórias (aliás, atente-se no facto da história do dilúvio e da Arca de Noé aparecer em Gilgamesh, o que gerou imensa tensão aquando da sua descoberta, por colocar em questão os textos religiosos que davam essa mesma história com base em outros personagens, supostamente reais). Mas se pensarmos no maior império atual, os EUA, percebemos como o seu reinado não se afirma apenas por via de armas nucleares e tecnologia de ponta. Não tendo qualquer nova religião para oferecer, socorre-se do cinema para vender e inculcar os seus princípios e moral a uma escala global, a sua forma de viver, o “american way” tornou-se no desejado modelo e objetivo de todo o planeta. As armas servem apenas para vergar os políticos que tentem fazer face ao domínio, mas são as histórias que agregam e convertem, criam a crença e abrem caminho a manutenção dos impérios. E isto nada tem de inovador, como podemos ler desde “Gilgamesh” a qualquer outro Poema Épico, incluindo o de Camões.

Parte da Tábua V, encontrada apenas em 2011 [fonte]

Sobre as versões existentes, como acontece com muitas destas obras clássicas, os registos existentes estão incompletos, tendo sido encontradas variantes em vários locais ao longo de milénios, o que torna difícil conhecer a sua forma original. Por curiosidade, um dos mais recentes achados data de 2011, pelo Museu Sulaymaniyah do Iraque, de uma parte da Tábua V que permitiu alargar um dos principais episódios do Épico. Assim, e olhando ao panorama nacional apenas, temos duas versões muito interessantes, a primeira da editora Veja, traduzida pela excelência poética de Pedro Tamen, sem notas e baseada numa versão inglesa e em prosa de NK. Sandars, de 1960. A segunda, editada em 2017 pela Assírio & Alvim, traduzida diretamente dos textos originais por Francisco Luís Parreira, em verso e com notas. Parreira é doutorado em Ciências da Comunicação, o que não faz deste um especialista em Literatura ou História (tal como eu não sou). Se faço este reparo não é porque ache condição absoluta ser-se especialista nestas áreas para traduzir uma obra, mas deveria contribuir para uma maior humildade, o que não acontece no modo como na entrevista ao Público vai criticando as outras traduções, nomeadamente o modo como ridiculariza a tradução de Sandars, que apesar de não ter sido uma académica com afiliação, fez imenso trabalho de campo e publicou academicamente. Já não me devia surpreender com nada disto, uma vez que vi acontecer exatamente o mesmo com o clássico “As Mil e uma Noites”, em que o nosso mais recente tradutor em entrevista se assume a uma tal altura perante a obra que mais parece o seu autor. Dito isto, quero ler a tradução de Francisco Luís Parreira, não porque considero má a tradução de Sandars/Tamen, mas porque a sua leitura foi suficientemente boa para me fazer ir à procura de mais. O mesmo digo da tradução de Hugo Maia das “Mil e Uma Noites”, depois de ter lido a de Antoine Galland e ter gostado, irei ler a sua assim que a E-Primatur editar o segundo volume.