Capa da edição portuguesa, traduzida por Salvato Telles Menezes e Vasco Menezes.
DFW defendia que o Entretenimento ombreia com a Arte na capacidade de nos fazer sentir e refletir [1]. O que mais o incomodava era divisão entre as chamadas artes alta e baixa, o elitismo da crítica na proteção dos seus e rebaixamento dos demais. DFW acreditava que se sentia algo quando em contacto com o entretenimento fosse literatura ou televisão, então isso não podia ser relegado, esquecido, fazer-se de conta que nada se sente [2]. Isto é uma das características mais fundamentais na pessoa de DFW, a sua sinceridade e aceitação do mundo tal como ele é [3]. Deste modo IJ tinha um segundo propósito para DFW, conseguir unir o Entretenimento e a Arte, juntar o melhor de cada num único artefacto, e conseguiu, IJ consegue ser ao mesmo tempo: trivial e complexo; coloquial e erudito; conciso e diarreico; profundamente linear e completamente não-linear; absolutamente divertido e terrivelmente chato.
Capa da edição brasileira (traduzida como "Graça Infinita" (2014)), a melhor do ponto de vista de design.
IJ é uma obra arquitectada, planeada ao milímetro, desenhada para produzir efeitos muito concretos na sua audiência. Nesse sentido é fruto do mais objectivo design literário, sem nunca abandonar o profundamente subjetivo artístico que lhe confere a pessoalidade, a experiência e vivência únicas do seu autor. IJ é ao mesmo tempo um manifesto de DFW, capaz de demonstrar toda a sua filosofia de vida, e um legado capaz de demonstrar todo o alcance do seu arcaboiço intelectual.
Para suportar todas estas ideias DFW criou um mundo muito particular para contar a sua história. IJ situa-se num futuro alternativo próximo, o livro foi escrito em 1995, com a história a situar-se na primeira década dos anos 2000. Ou seja, para nós já é passado, mas isso acaba por não ser muito relevante, já que o foco narrativo não se centra nos efeitos dessa passagem de tempo, mas nas pessoas, seus desejos e vidas. O futuro aqui serve mais para facilitar ao imaginário do leitor o deslocamento para uma realidade alternativa. A história decorre em dois pontos centrais, uma escola de ténis e uma casa de desintoxicação, por onde os personagens vão passando, apresentando-se e confrontando-se. O cerne da caracterização de IJ fica a cargo de uma família, James Incandenza (pai) Avril Incandenza (mãe) e os três filhos Orin, Mario e Hal.
Uma das histórias de IJ encenada em Lego pelo Brickjest
A versão original do livro tinha mil páginas, contudo com letra bastante pequena, nomeadamente as notas que ocupam mais de 100 páginas. A versão alemã tem 1500 páginas, o que a julgar pelos números de "locs" no meu Kindle, e comparando com outros livros, me parece muito mais próximo do real, caso fosse utilizada uma letra de tamanho dito normal nas versões impressas. Neste sentido IJ é praticamente uma saga em termos de tamanho, cerca de 60 horas de leitura, o que se reflete na imensidade de pequenas histórias e nas dezenas e dezenas de personagens. Mas não se pense que o livro é difícil pelo tamanho. As dificuldades que enfrentamos na leitura são criadas pelo próprio DFW, de forma propositada, no modo como organiza a informação. DFW não segue estruturas narrativas clássicas (em que tudo vai sendo explicado à medida que se avança, montado e estruturado para produzir prazer), nem tão pouco modernas (meramente experimentalistas), embora também as utilize, DFW é um pós-modernista, e enquanto tal usa tudo o que a literatura lhe dá para agir sobre a cognição dos seus leitores, destruturando e estruturando, obrigando o leitor a sair do conforto da aceitação do que o autor vai debitando, para procurar as peças do puzzle e assim construir os seus significantes e significados, sempre duvidando se estes estão ou não alinhados com os do autor.
Como livro extraordinariamente aberto que é, pelo que disse atrás, mas também pelo modo polifónico utilizado, DFW regista quase todos os modos discursivos – directo, indirecto, indirecto livre – olhando e caracterizando personagens a partir do seu interior ou do narrador que tanto fala em primeira como em terceira pessoas, e que nem sempre conseguimos situar, IJ dá-se a cada um de nós de formas totalmente diferentes, produzindo respostas emocionais e cognitivas bastante distintas. Existe quem adore, quem deteste, quem se aborreça, quem ri às gargalhadas e quem chora profundamente. Neste sentido é possível encontrar pessoas que ficam agarradas a IJ desde as primeiras páginas, quem só se comece a ligar pelas 200, quem como eu só começou a sentir a partir das 500, e quem nunca se ligue. Quase todos, quando terminam, eu incluído, têm vontade de recomeçar imediatamente. Esta vontade de recomeçar a leitura impressionou-me bastante porque se aproxima imenso do objecto que está no cerne do enredo, um filme de entretenimento, chamado também "Infinite Jest", que as pessoas não conseguem parar de ver. Ou seja, DFW claramente objectiva a este efeito, e consegue-o.
Para o conseguir coloca a trabalhar toda a complexidade estrutural de IJ. A primeira leitura serve apenas de primeira passagem, de reconhecimento. O mundo criado por DFW é próximo, mas é profundamente alternativo, estranho e distante, muito do que parece não é, e muito do que nada parece tem imenso valor. DFW não é apenas um pós-modernista, com vontade de destruturar a literatura e nos colocar a pensar, é alguém dotado de uma forma muito peculiar de ver o mundo, suportado por uma enorme bagagem descodificadora desse mundo. Ou seja, formado em Filosofia, DFW lia de tudo e de forma compulsiva. IJ é mera janela para um mundo inteiramente construído pela mente de DFW, um mundo enorme e detalhado, dotado de uma imensidade de camadas de significado. DFW usa depois a literatura para verbalizar todas essas camadas, servindo-se de todo o arsenal formal para lhes dar corpo. É por isso que DFW usa e abusa das notas de rodapé (existem capítulos inteiros dentro de notas de rodapé); usa e abusa de palavras inventadas, de discursos entrecortados, viagens no tempo, personagens secundários ou meramente figurantes. DFW não pretende ser directo, nunca, tudo tem sempre segundo, terceiro ou mais significados e cabe-nos a nós, enquanto leitores, trabalhar para chegar a esses significados. A vontade de reler advém exatamente da tomada de consciência de tudo isto, com o fechar da última página sentimos que descortinámos apenas a primeira camada e partes das outras camadas, sentimos que o livro tem ainda muito mais para nos dar.
Por isso mesmo o final de IJ tem sido imensamente debatido online, em busca de fechamento, algo que a Gestalt nos diz ser uma necessidade humana profunda. DFW disse em entrevistas que o fechamento estava lá, que bastava apenas olhar para além da última página. Neste sentido não deixa de ser interessante que uma das explicações para o final de IJ mais amplamente aceite e citada seja de Aaron Swartz, uma outra mente prodígio do nosso tempo. Trabalhando em frentes bem diferentes, Wallace e Swartz tinham em comum a luta pela franqueza e tolerância por via da comunicação com o outro contra o individualismo. DFW pôs fim à sua vida em 2008, Swartz leu e escreveu a sua explicação de IJ em 2009, pondo também fim à sua vida em 2013.
É possível encher páginas sobre IJ, e muitas se têm escrito, por isso mesmo opto por deixar aqui alguns links para textos que fui lendo ao longo da leitura, e outros que li apenas após o virar da última página. DFW conseguiu mesmo o que pretendia, porque ler IJ dá-nos vontade de constantemente confrontar as nossas ideias com as de outras pessoas, de ouvir o que os outros pensam, e refletir sobre o que pensámos nós, umas vezes mudando de ideias, outras mantendo, optando pelas nossas deduções e intuição.
Para fechar, quero apenas recomendar a leitura de dois textos de DFW que podem ler mesmo antes de iniciar a leitura de IJ, pois irá ajudar a compreender melhor DFW e consequentemente IJ. O primeiro texto foi escrito em 1993, na altura em que DFW estava a escrever IJ, e dá conta da tese que subjaz a IJ, falo de “E unibus pluram: Television and US fiction”. O segundo texto foi aquele que me deu a conhecer DFW há uns anos, “This is Water”, que sintetiza toda a filosofia de DFW e IJ, inclusive usa uma imagem presente em IJ (os peixes que se questionam: “o que é a água?”). Este segundo texto, ganhou entretanto uma interessante visualização em vídeo a qual fiz menção aqui no blog quando saiu.
Fecho. Anotei centenas de trechos no texto, alguns de uma linha apenas, outros páginas inteiras de discurso sem qualquer ponto final. Não coloco aqui nenhum desses excertos, optando por transcrever apenas um pequeno ponto que julgo ser capaz de dar conta do estilo de DFW, tanto na forma como junta o vulgar ao intelectual, como na forma como plasma em texto uma ideia,
“Olha-Para-Mim-A-SerTão-Completamente-Sincero-E-Aberto-Que-Desprezo-Toda-A-Pose-Insincera-Do-Processo-De-Engatar-Uma-Pessoa-E-Transcendo-A-Hipocrisia-Normal-Do-Vulgar-Frequentador-De-Bares-De-Uma-Forma-Paricularmente-Fixe-Espirituosa-E-Consciente-E-Se-Me-Deixares-Engatar-te-Não-Só-Vou-Continuar-A-Ser-Esprituosa-E-Transcendentemente-Aberto-Como-Te-Introduzirei-Neste-Mundo-Transcendente-De-Falsidade-Social”
Acompanhamento de Leitura da Ed. Brasileira - Posfácio (2015)
Acompanhamento de Leitura da Ed. Americana - Infinite Summer (2009)
Dezenas de detalhes explorados em detalhe
Site dedicado a DFW
IJ Wiki
Teorias sobre o final de IJ
A mais citada, de Aaron Swartz
De Dan Schmidt
De Daniel Pellizzari
Visualizações de IJ
Melhor mapa de personagens
IJ Lego
Mapa de Eschaton
Video clip de Eschaton
Várias visualizações
Melhor mapa de personagens
IJ Lego
Mapa de Eschaton
Video clip de Eschaton
Várias visualizações
Camila von Holdefer
Isabel Lucas
Taize Odeli
Mário Rufino
Livros sobre IJ
“David Foster Wallace’s Infinite Jest: A Reader’s Guide” de Stephen Burn
“Elegant Complexity: A Study of David Foster Wallace’s Infinite Jest” de Greg Carlisle
Sobre a tradução Portuguesa
Traduzir uma piada de 1000 páginas (Público)
Referências
[1] DFW 10 Favorite Books, in J. Peder Zane, (2007), The Top Ten: Writers Pick Their Favorite Books, W. W. Norton & Company
[2] Wallace, D. F. (1993). E unibus pluram: Television and US fiction. Review of Contemporary Fiction, 13, 151-151.,
[3] Wallace, D. F. (2009). This is water: Some thoughts, delivered on a significant occasion, about living a compassionate life. Hachette UK.
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