A linguagem apresentada é imensamente rica, não petulante com adjetivação barroca, mas pela extrema diversidade vocabular, e seu uso, que Franzen vai buscar ao interior da sociedade de várias décadas, diferenciando as linguagens das diferentes gerações e tempos. Não há espaço para o cliché, tudo parece cristalinamente renovado, porque evocando um mundo conhecido por nós, mas por meio de uma representação textual completamente nova, capaz de nos dar a ver de modo diferente.
Por sua vez a construção do texto segue uma abordagem, aqui sim barroca, pelo excesso de detalhamento do real, nomeadamente no modo como descreve as ações, e mais ainda a sucessão das mesmas, como que encapsulando umas nas outras, garantindo sempre ao leitor o acesso a um todo. O leitor sente o aprofundamento das camadas, esquecendo por momentos de onde se parte, para logo a seguir o texto resumir e voltar a trazer de volta ao início, para garantir que tudo se mantém no limiar do entendível. Este detalhe chega por vezes a parecer infinito, sem nunca saturar, mas sobre ele Franzen diz,
“Qualquer romance, mesmo razoavelmente longo, representa apenas uma fração infinitesimal daquilo que se sabe sobre o mundo. Aquilo que eu sei sobre Liberdade é maioritariamente acerca dos seus quatro personagens principais, os quais cresceram a partir do pequeno pedaço de mundo conhecido pelo seu criador. Representar um mundo é uma forma de permitirmos a nós mesmos sentir pequenas coisas de modo mais intenso, e não de conhecer muita informação.” no Guardian.De certa forma, Franzen optando por não seguir nenhuma das abordagens de subversão do texto, modernas ou pós-modernas, acaba por inovar no modo como consegue rentabilizar e complexificar a estrutura clássica de contar histórias, nomeadamente pelo brilho com que desenvolve uma estrutura de tão fácil compreensão, impregnada de construções frásicas imensamente complexas. Neste sentido podemos dizer que Franzen é menos lírico que Roth ou Nabokov e imensamente mais acessível que Foster Wallace ou McCarthy, contudo é tão ou mais competente que qualquer um deles, exatamente pelo modo como entrelaça a forma narrativa de complexidade mantendo o seu fluir tranquilo.
No campo da história, “Liberdade” oferece-se em várias camadas, sendo a mais imediata, um recorte social e psicológico da família de classe média americana, facilmente identificável pela sociedade ocidental contemporânea, através da qual Franzen nos faz reviver os dilemas e conflitos do casamento, dinheiro, amor e sexo, competição e colaboração, passado e futuro, natureza e sobrepopulação. Tudo isto é elevado a uma categorização em círculos ideológicos demarcados por opções políticas, republicanos e democratas, que parecendo por vezes sofrer de viés do escritor, acaba por nunca nenhum ficar incólume à sua crítica.
Mariquita-azul (Setophaga cerulea), a espécie ameaçada de extinção que surge no centro do enredo.
E é desta crítica, às diferentes ideologias, que veremos emergir o objeto de “Liberdade”, a nossa incapacidade individual para lidar com a tal liberdade sempre que esta coloca em risco o nosso próprio benefício, mesmo quando isso implica a nossa própria perda de liberdade. Isto fica patente desde cedo no modo como se lida com uma ocorrência de violação sexual, e atravessa subterraneamente todas as grandes decisões ao longo da epopeia familiar, conduzindo-nos até ao grande propósito deste livro. Este propósito primordial, objeto de "Liberdade", é como facilmente se pode depreender desta descrição profundamente melancólico, mesmo trágico, contudo e ao contrário do universo mccarthyano, Franzen não se fica e oferece saída, que depende de cada um interpretar à sua maneira.
"Não sabia o que fazer, não sabia como viver. Cada nova coisa que encontrava na vida impelia-o numa direcção que o convencia por completo da sua rectidão, mas depois surgia uma outra coisa nova que o impelia na direcção oposta, mas que também lhe parecia certa. Não havia nenhuma narrativa controlada: aos seus próprios olhos parecia ser uma bola de pinball puramente reactiva, num jogo cujo o único objectivo era manter-se vivo só mesmo para estar vivo." p.392
Edição: "Liberdade" (2010) de Jonathan Franzen, trad. Maria João Freire de Andrade, Publicações Dom Quixote, 688 pág., 2011
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