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abril 18, 2019

A civilização faz-se do contar de histórias

Há algum tempo que queria ler Mahfouz, o Nobel de 1988 dava-me alguma garantia de existir ali trabalho relevante, além de facilitar a triagem de uma cultura que tendemos a desconhecer. Comecei por procurar a Trilogia do Cairo mas como comecei a seguir a lista das 100 Obras do Instituto Norueguês do Nobel, e nesta vem este "Os Filhos do Bairro" (1959), acabei por optar por começar por aqui. Não li mais nada sobre o livro, apenas aceitei a recomendação da lista, entrei de olhos fechados, e mesmo assim o impacto foi grande. Provavelmente se tivesse lido algo mais sobre o que estava por detrás da mesma teria conseguido ler mais nas entrelinhas, contudo ler [1] no final continuou a permitir-me expandir a leitura e a sua compreensão, além de poder comparar as minhas interpretações com as mais consensuais. Mas se a história e sua premissa são belíssimas, imensamente poderosas e carregadas de significado, acabei por me entusiasmar mais ainda com a forma e estrutura (claro defeito da área que investigo).


Para mim, a premissa base de "Os Filhos do Bairro” assenta na explicação do mundo que temos como fruto do contar de histórias. A esta junta-se uma segunda, a mais debatida, da explicação do modo como surgiram as religiões e todo o seu impacto nos processo de civilização das sociedades. O registo escolhido é parabólico, num tom muito semelhante ao das “Mil e uma Noites” (800), mas poderíamos dizer também ao Velho e Novo Testamentos ou o Alcorão. A menção a estes últimos é intencional, já que a história que se conta tem por base as três religiões abraâmicas, ou monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Muitas das sínteses que se veem do livro falam sobre um conjunto de histórias, transparecendo quase a ideia de que se trata de um livro de contos, mas nada poderia ser mais errado. A estrutura apenas parece apresentar-se como um agregado de histórias, porque quando analisadas as suas relações, e compreendidos os seus objetivos e alcance damo-nos conta do facto de estarmos perante um romance não só completo, mas imensamente poderoso enquanto soma das partes. A estrutura é bastante distinta da matrioska das Mil e Uma Noites, porque funciona numa base de sucedâneo evolucionário, aparentemente natural mas com uns pós de sobrenatural, acabando por colocar em evidência, quase como representado sobre  um tabuleiro de ideias, todas as perspectivas religiosas e pós-religiosas. Existe algo de teleológico no romance, mas ao mesmo tempo diria que mais do que explicar o fim, Mahfouz está focado no chegar ao como, e é esse que acaba tornando a estrutura do romance (o sucedâneo de mundos evolutivos), tão mais relevante, porque acaba enunciado em si mesma aquilo que nos conta.

Ou seja, Mahfouz usa o contar de histórias, os seus processos, para literalmente discutir o mundo em que vivemos e aquilo que somos enquanto sociedade e espécie. Podia ter-se socorrido do ensaio argumentativo, mas preferiu a narrativa com todo o seu fervilhar dramático. Na verdade, o que Mahfouz faz é pegar nas qualidades narrativas, aquelas que tendemos a usar mentalmente para compreender o mundo, para nos dar a ver como funciona esse mundo. Este modo é muito mais eficaz que o ensaístico, já que usa a forma mental como construímos conhecimento, como nos relacionamos com o mundo, que contém sempre um lado humano que o ensaio, pelo seu traço racionalista, tende a deixar de fora. Por outro lado, o uso das histórias é ainda mais vital quando o foco da explicação do mundo assenta numa análise dos livros de histórias de cada religião, as mais importantes para a civilização em análise, ao que Mahfouz não deixa de juntar o correspondente atual, o Humanismo, com a sua ausência de Deus.

Naguib Mahfouz

Não vou detalhar os personagens, quem representam em cada história, porque efetivamente representam personagens da mitologia que suportam a nossa civilização. Aliás, é por causa dessa representação tão clara que a obra foi banida no Egipto durante décadas, mas pior do que isso, Mahfouz sofreu uma tentativa de assassinato [2] em 1994, 35 anos depois do livro escrito, o que dá bem conta do quão perfurante o livro consegue ser em termos religiosos, mas vou mais longe, o que  lhe aconteceu poderia ter sido mais uma das histórias contidas neste livro, o que torna todo o livro e o seu autor ainda mais coerentes e relevantes.


"Os Filhos do Bairro" é uma obra dotada de grande genialidade formal, que nos faz refletir em profundidade sobre a sociedade que temos, mas acima de tudo sobre aquilo que somos enquanto espécie. Não apresenta uma escrita muito elaborada, não sei o quanto se terá perdido na tradução, mas o cuidado estético e a mensagem poderosa fazem com que encaixe completamente no perfil do Nobel, ao lado de Saramago, Naipaul ou Marquez.


Nota: A Penguin criou todo um guia de questões [3] muito interessantes no apoio à leitura da obra de Mahfouz que pode servir clubes de leitura, assim como o uso das suas obras nas escolas.

Referências
[1] The Allegorical Significance of Naguib Mahfouz's, 1989 
[2] From ‘Children of the Alley: The Story of the Forbidden Novel’, 2019
[3] “Children of the Alley Reader”’s Guide, Penguin 

novembro 04, 2018

A importância das escolhas nos jogos narrativos

“Detroit: Become Human” (2018) vai muito para além do mero entretenimento, por baixo dessa capa aparente de filme de Hollywood de ficção científica, lança-nos num mar de reflexões sobre a inteligência artificial e a robótica, que vão desde a motivação para a singularidade na IA (autonomização do ser) às necessidades e vontades associadas pela robótica (existência física) terminando na relação com o humano. À superfície parece oferecer pouco mais do que aquilo que já nos foi oferecido em filmes como “Bicentennial Man” (1999), baseado no conto homónimo de Asimov, “A.I. Artificial Intelligence” (2001) de Spielberg e Kubrick, “I, Robot” (2004) de Alex Proyas ou “Ex Machina” (2014) de Alex Garland, e no entanto, o facto de se tratar de um videojogo baseado em narrativa interativa, coloca-nos face a uma experiência completamente distinta, simplesmente porque somos obrigados a tomar partido.


Detroit apresenta um universo ficcional futurista, no qual os andróides convivem com os humanos em todo o lado, do mesmo modo que muitas outras tecnologias — dos carros aos sistemas de apoio ao humano — com a diferença de terem a mesma fisionomia que um humano, porque lhes facilita o apoio a essas tarefas mais humanas. Contudo, essa forma humanoide associada a capacidades sociais, afetivas e cognitivas torna-os excessivamente humanos a ponto de serem apenas permitidos nos EUA, enquanto o Canada e outros países mantém a sua proibição.


Ainda sobre o universo, e tendo em conta que se trata de narrativa interativa, reportar que Cage levou as suas possibilidades muito para além daquilo que nos tinha dado nos seus jogos anteriores —  “Fahrenheit” (2005), “Heavy Rain” (2010) ou “Beyond: Two Souls” (2013) —, aqui praticamente todas as nossas escolhas e decisões têm consequências, e essas conseguem aparentar ser ilimitadas. O melhor exemplo disso é que o cerne narrativo, constituído de três personagens andróides que devem carregar toda a história aos ombros do início ao final, na minha primeira passagem completa pelo jogo, morrem os três, nenhum chega ao fim, algo que pelas estatísticas apresentadas acontece muito pouco, mas demonstra a enorme elasticidade da ficção interativa apresentada. Note-se que podemos rejogar cada capítulo e alterar as consequências, contudo somos aconselhados, no jogo, a fazer um primeiro playthrough completo sem rejogar qualquer decisão, que foi o que fiz, mesmo quando em algumas decisões, por me sentir demasiado pressionado para decidir, decidi coisas com que não me identificava totalmente. Aconselho vivamente a que façam o mesmo, pois é dessa primeira experiência completa sem rejogar que poderão extrair os maiores impactos da experiência da narrativa interativa proposta.



Do ponto de vista tecnológico e empático, é interessante verificar como apesar de muitos arautos da tecnologia defenderem a proximidade do momento de singularidade, ou da possibilidade de substituir professores por robôs, num videojogo criado em 2017, em que ironicamente os três principais personagens são andróides, ainda estamos completamente dependentes de humanos, não só para lhes dar forma mas para garantir as performances de corpo e voz.

Porque jogar é experienciar, é viver de forma simulada e virtual. Ou seja, colocados dentro daquele universo de possibilidades, somos questionados e interrogados, somos colocados face a questões que ainda não existem no mundo atual, e para lhes responder só nos resta procurar dentro de nós as respostas. Puxar pelas nossas convicções, princípios e morais, mas também todo o conhecimento que detemos sobre as matérias (neste caso o meu conhecimento sobre o design e implementação de máquinas e formação dos seus sistemas de IA), confrontando argumentos para responder às situações, ainda que hipotéticas e ficcionais, colocadas pelo jogo. Sentimos que “Detroit” nos coloca contra a parede, no que à relação futura entre humanos e andróides dotados de consciência IA concerne, porque atira sobre nós toda a responsabilidade sobre como lidar com eles, obrigando-nos a decidir e a reagir. E se durante o jogo, um pouco pelo que considero excessivo design de pressão sobre o jogador ainda que sirva bem a dramatização necessária ao contar de uma história, senti as decisões por vezes mais distantes, no final do jogo elas caíram-me todas em cima.

Marcha de andróides lutando pelos seus direitos

Por exemplo, ter deixado morrer os três personagens não foi algo simples, impactou a minha experiência, criou frustração mas foi além, porque o jogo não se fica, não se resume a um mero “game over”, algo que Cage detesta nos videojogos. As ausências dos personagens tornaram-se parte do meu universo jogado, e a minha culpa pela sua perda foi transposta para os eventos que continuaram a suceder-se, o que se foi agravando quanto mais as suas ausências se foram tornando consumadas em mim. Mas isto também levanta enorme peso na discussão da autoria, do que tem para dizer um autor, e aqui Cage luta claramente nessa fina linha entre o quanto está disposto a oferecer-nos de controlo sobre os eventos e aquilo que nos quer dizer com a sua obra. Li em algumas resenhas, caracterizações de inconsistência narrativa, ou seja, que Cage não saberia ou não teria conseguido construir uma mensagem completa. Contudo, por muito que me custe dizer, mais ainda tão habituado a defender a intenção autoral no cinema e na literatura, aqui a intenção autoral não pode prevalecer sempre, correndo o risco da interatividade não passar de ilusão. Por isso se o jogo parece mover-se entre barricadas ideológicas ao longo da experiência, deve-se mais àquilo que vamos decidindo fazer, porque o jogo permite que façamos, e menos a uma vontade ou falta de determinação do autor e do jogo em passar uma ideia redonda. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a determinação do autor bastaria recuar a 2012, "ver a demo/curta "Kara" e perceber como "Detroit" não surgiu de um simples desejo de fazer mais um jogo, mas vem carregado de intenções (entrevista com Cage).

"Kara" (2012) de David Cage

Posto isto, o jogo consegue algo que nem o livro nem o filme conseguem, levando-me a considerar que retirei desta experiência, algo que é notável para um videojogo, uma melhorada compreensão da minha relação com a tecnologia e sua hipotética singularidade futura. O jogo puxa imenso pela nossa ambivalência, usa truques para confundir o nosso sentir para com os andróides, que servem também para que possamos ir traçando o nosso caminho. Já estamos habituados, no cinema, ao desenho de situações de pura empatia para com os andróides, mas aqui somos também brindados com situações completamente contrárias, e somos conduzidos a passar pelos dois sentimentos, o que consegue mexer com algumas das nossas convicções. Existem algumas questões apresentadas de modo muito simplista, nomeadamente o modo como a generalidade dos humanos vai reagindo, algo que como já se disse, não é alheio ao modo como vamos jogando, ou seja, à medida que vamos jogando a narrativa vai-se ajustando e naturalmente partes dessa vão sendo secundarizadas. Contudo, pelo que vi de possibilidades jogadas por outros, é possível aceder a maior elaboração dessas partes, dita mais simplistas, rejogando partes mais decisivas que alteram o rumo dos eventos finais.

A primeira sequência do jogo, de resposta a um rapto, abre muitíssimo bem o tom do jogo, e nem queria acreditar quando vi na net que podia ter 6 finais completamente distintos.


Ao contrário dos jogos anteriores de Cage, e talvez motivado pelo facto de termos as árvores de nós narrativos a serem apresentadas no final de cada capítulo, mas especialmente porque as variações narrativas são tão acentuadas, sinto o desejo de voltar e rejogar, de voltar a experienciar, de decidir de outras formas para confrontar as minhas decisões naquele universo.

setembro 14, 2018

"Celeste", design de joalharia

“Celeste” é puro flow. Todo o design contribui de forma efetiva para a geração de uma experiência extremamente coesa, em que a visceralidade imprimida pela jogabilidade caminha a par com o significado da narrativa. É um jogo de plataformas que não inova na fórmula, mas que por elevar os patamares de qualidade da jogabilidade e da história consegue criar algo novo. Uma pequena jóia.

"Celeste" (2018) de Matt Thornson

“Celeste” apresenta a história de uma personagem frágil, Madeline, que sofrendo de depressão resolve iniciar a subida da montanha Celeste. Pelo caminho encontramos outros personagens que vão servindo para nos dar a conhecer mais sobre o sentir de Madeline, até que encontramos o duplo interior de Madeline com quem ela terá de se confrontar no resto da viagem, para se poder encontrar a si mesma. É uma história existencial, que apela a um público mais maduro, que se serve na perfeição da metáfora de obstáculo, a montanha, para significar a história e alimentar o design de jogo. Em termos narrativos existe aqui alguma proximidade com "Journey" (2012), e no entanto o mais interessante é verificar como a jogabilidade é trabalhada em polos opostos. "Journey" opera o flow pela quase inibição dos obstáculos, enquanto "Celeste" o desenvolve pela elevação desses obstáculos quase ao limite da impossibilidade. No entanto, o modo como Celeste foi concebido não afasta a experiência em termos de sentimento interior de "Journey". Falarei sobre o design à frente, para se perceber como isso foi conseguido.


Arte visual é da autoria de Amora Bettany e Pedro Medeiros

Se a história é apelativa, num sentido de profundidade de significado, e a jogabilidade brilha pelo modo como exige simultaneamente destreza e inteligência, “Celeste” acaba por se elevar acima de ambos, não apenas porque a narrativa se funde com as ações de jogo, mas porque todo o jogo se torna um artefacto uno gerador de uma experiência plena. Não é a história que nos agarra, nem é a jogabilidade que nos mantém, é a sua união que cria um objeto que não existe sem ambas. Jogamos como Madeline, assumimos a sua fragilidade, e insistimos no ultrapassar de cada novo obstáculo, sofregamente, ansiosamente.

Para se perceber melhor esta descrição e compreender como se chega a este nível de criação artística, aconselho vivamente o visionamento da comunicação de Matt Thorson, o director do jogo, na GDC 2017. Thornson apresenta os vários atributos do jogo, nomeadamente o design de “multiple approaches” que garante maior liberdade na resolução dos puzzles, assim como explica como ao longo do jogo vai “ensinando silenciosamente” a jogar por via do design. Mas o que me fica da comunicação é: a unificação entre história e jogo; a experimentação e o perfecionismo; e o playtesting.

O design segue uma abordagem dinâmica que permite múltiplas formas de resolver um mesmo puzzle. Esta abordagem acaba sendo fundamental no desenho do flow, já que oferece autonomia ao jogador, ou seja, oferece a essência daquilo que estimula a ação, que é a liberdade de agir, de escolher. [GDC 2017]

O "ensino silencioso" de que como se joga é extremamente bem conseguido, estando ao nível do melhor da Nintendo com Zelda ou Mário.

Thornson discute o modo como cada nível (a que se refere sempre como parte da história, para Thornson cada nível comporta história em si) se vai desenhando em modo experimental. Não existe um planeamento prévio, existe um objeto narrativo, e é para ele que se desenha. Isto comporta problemas de produção, já que pode acabar com menos níveis do que precisa, ou mais. Thornson dá o exemplo de uma parte do jogo em que tiveram de jogar fora 20 níveis por não se encaixarem na componente narrativa. Porque como diz a determinada altura, “estamos sempre a tentar descarregar o máximo possível da narrativa no design dos níveis”. Ou seja, o todo tem de fazer sentido, Thornson não quer apenas uma boa jogabilidade, ela tem de estar conectada com aquilo que se está a tentar dizer em cada nível, dentro de cada área, e por sua vez na história completa. A explicação do segundo nível dada por Thornson é brilhante (o sonho de voar por entre as estrelas que dá lugar ao pesadelo de ser perseguido pelo duplo), ajuda-nos a significar algo que apenas intuímos durante o jogo. Existe um claro objetivo de criar um artefacto que faça sentido, que seja coeso, e não se tem receio de jogar fora dias inteiros de trabalho para que o artefacto funcione. Isto só é possível num jogo indie, num jogo de autor, em que se procura dar vida à visão desse autor e não justificar os meios investidos (Nesta comunicação, um ano antes do jogo sair os Lados B ainda não tinham sido definidos, mas aqui percebemos indiretamente como acabariam por surgir).

Cada área do jogo é todo um quadro narrativo que Thornson procura trabalhar como uma melodia, com as suas variações de ritmo, assim como príncipio, meio e fim.

Podemos ver as alterações introduzidas no level design pelo playtesting continuado e presencial.

Não menos importante, embora quase arriscasse, dada a minha preocupação com o UX, a dizer que foi o mais importante, temos o playtesting. É fascinante ouvir Thornson falar das sessões de teste do jogo, como o faz de forma totalmente aberta e descomplexada, como assume a evolução e progressão do design na relação com a comunidade que o foi testando. Fica-me a sua descrição do que considera ser o melhor modo de testar o jogo: “O meu modo favorito de playtest é ter as pessoas no sofá a jogar juntas, e que podem até estar a trocar os comandos, e vão conversando umas com as outras sobre o jogo, e aí conseguimos perceber melhor os seus modelos mentais, ver as rodas dentadas moverem-se nas suas cabeças”.

Por fim, “Celeste” apresenta um design brilhante, na união de jogo e narrativa, mas não podia ser o artefacto que é sem a banda sonora de Lena Reine, nem a arte visual de Amora Bettany e Pedro Medeiros. “Celeste” venceu o prémio de áudio no IGF 2018, por outro lado, o seu imaginário visual está de tal modo conseguido que o simples vislumbre de uma imagem ou excerto do jogo, consegue automaticamente ligar-nos ao jogo, tal a força da identidade visual criada.

setembro 08, 2018

Forma e sentido na construção narrativa

“Os Lança-Chamas” (2013) de Raquel Kushner dificultou-me tanto o processo de resenha que resolvi criar uma nova categoria no GoodReads para o mesmo que denominei “Sem Avaliação” (no-rating), e no qual acabei inserindo outros livros que, como este, me tinham sido difíceis de avaliar. As dificuldades levantadas por estas obras têm principalmente que ver com os elementos de avaliação que uso para aferir o valor das mesmas que nestes casos se me oferecem com pesos que os colocam em polos opostos. Ou seja, num desses elementos a obra obtém o valor máximo enquanto noutro o valor mínimo. Nestes casos não é possível fazer média, que é aquilo que vamos fazendo subjetivamente ainda que com grandes margens de flexibilidade. Aliás, só mesmo por toda esta flexibilidade subjetiva é que aceito avaliar quantitativamente as obras, pois se quisesse ser completamente rigoroso não daria quaisquer estrelas. Mas o que está por detrás desta obra, ou melhor da minha experiência da leitura desta?


“Os Lança-Chamas” é o segundo livro de Kushner, tendo a autora lançado este ano o seu terceiro livro, já traduzido pela Relógio d’Água também — “O Quarto de Marte”. Falo deste último porque foram alguns dos aplausos recebidos pela obra, da parte de autores e críticos que costumo levar em conta — Jonathan Franzen, George Saunders e James Wood — que despertaram o meu interesse na autora, fazendo assim com que comprasse este segundo livro de Kushner.

Ao fim de poucas páginas percebe-se porque Franzen gosta tanto de Kushner, as suas formas de escrita aproximam-se imenso, encaixando muito bem num grupo de autores — Jonathan Franzen, Zadie Smith, David Foster Wallace, DeLillo e Pynchon — que Wood usa para delimitar o rótulo, por si criado, do "realismo histérico" (a definição foi apresentada pela primeira vez na resenha de Wood do livro "White Teeth" em 2000). Este modelo de contar histórias define-se, segundo Wood, pelo "excesso" e "exaustão" de realidade, criando uma espécie de "realidade evasiva enquanto assume os contornos do realismo". Os autores forjam conexões, ligações, enredos e paralelos entre múltiplas histórias e linhas de ação, que obrigam a um detalhar continuo de descrição de ações que tornam o texto num fluxo contínuo e imparável, disparando em todas as direções de sentido.

Franzen foi o primeiro escritor em que me apercebi deste modo de narrar, o seu detalhar contínuo de ações e micro-ações que mudam de espaço e tempo e nos levam atrás com enormes ânsias por descobrir mais e mais sobre o que se irá passar a seguir, que no fundo fazem com que se crie uma espécie de histerismo, uma urgência sem propósito. Li algures, uma comparação com o estado atual do audiovisual, com a necessidade de fazer montagens cada vez mais rápidas para agarrar os espectadores, e nomeadamente com as séries e os seus múltiplos enredos que asseguram o interesse ao longo de horas e horas. Pode ser, embora na escrita isto resulte mais complexo porque a retenção de tanta informação, se não muito bem urdida, pode destruir toda a experiência de leitura pelo excesso de demanda cognitiva. Por outro lado, não me parece que falemos aqui de excesso de linhas de enredo, o que temos é antes um excesso de detalhamento de ação interna ao enredo. Como se o olhar destes escritores conseguisse colocar em pausa a realidade, e assim detalhar ao pormenor o que se passa e porque se passa.

Este modo resulta bem diferente daquelas torrentes descritivas que Balzac ou Eça nos ofereciam no início do realismo, já que não descrevem o estático (espaços e personagens) mas o dinâmico (os eventos), que pela sua imprevisibilidade, dotada pela transformação e mudança, aumentem a curiosidade do leitor, o despertam e instigam a correr atrás. Na descrição do estático, temos de realizar um esforço para reconstruir em nós o que o autor está a ver e a descrever, enquanto na dinâmica, no enredo, estamos apenas presos ao fio dos acontecimentos, totalmente focados no que se irá suceder a seguir, e por isso mais atentos, interessados e claro curiosos. Não é por acaso que em narrativas mais centradas nos personagens, as pessoas se queixem de falta de ação, porque falta enredo, ou seja grandes ações e transformações a acontecer em que se focar e deixar-se levar. Nas narrativas centradas no personagem, temos de trabalhar mais internamente para ver e sentir de que são feitos esses personagens.
"Quando eu tinha doze anos, Flip foi a Reno e deu autógrafos num casino. Eu não tinha uma fotografia boa para ele assinar, por isso ele assinou na minha mão. Durante semanas tomei banho com um saco de plástico a cobrir essa mão, preso com um elástico no pulso. Não era uma paixão romântica. A disponibilidade tem os seus níveis. As meninas não alimentam ideias de sexo, o seu corpo e outro juntos. Isso vem mais tarde, mas alguma coisa haverá antes disso. Há algum devaneio inocente, um sonho, e os ídolos são perfeitos para os sonhos de uma rapariguinha. Os ídolos não são reais. Não são o homem de serviço na bomba de gasolina que tenta levar-te para as traseiras do posto, nem um ardina que tenta levar-te a entrar numa barraca de ferramentas, nem o amigo do pai que tenta levar-te a entrar no seu carro. Eles não tentam levar-te. Chamam, mas como pequenas miragens no deserto. Flip Farmer era inofensivamente inalcançável. Era uma coisa especial. Escolhi-o entre todos os homens do mundo e ele assinou as costas da minha mão e sorriu com uns dentes muito brancos, muito alinhados. Ofereceu esse sorriso a cada de um nós, crianças e adultos que estivemos na bicha para o Harrah's. Não éramos indivíduos, éramos a superfície onde ele se movia, sorridente e distante. O caso é que, se ele me tivesse devolvido o olhar, eu talvez tivesse lavado da mão o seu autógrafo." (Os Lança-Chamas, p. 29)
Ora Kushner enquadra-se belissimamente neste registo. O modo como exacerba o detalhe da ação agarra-nos totalmente, suga-nos para dentro do livro, e as páginas passam a voar. Contudo temos um problema, e agora voltando ao histerismo de Wood, os autores deste estilo caracterizam-se por apresentar temas e tópicos bastante diversos, mesmo extravagantes ou exóticos (ex. DFW usa uma parafernália de personagens estranhos tais como os Assassinos de Cadeiras de Rodas ou a divisão em anos definidos e promovidos por marcas como os hambúrgueres Whopper ou as fraldas para adultos Depend; DeLillo fala de artistas que pintam bombardeiros no deserto; enquanto Zadie junta bombistas islâmicos com Jeovás, com defensores dos animais e cientistas judeus que fazem experiências genéticas). Kushner não se fica atrás e fala-nos de motociclistas e automobilistas que vão para os desertos de sal americanos bater recordes, contrapostos com os artistas da cena nova-iorquina dos anos 1970, ao que junta resquícios de famílias da nobreza italiana contrapondo-as com as Brigadas Vermelhas, para no final nos levar através do grande Blackout de 1977. Se os cenários de Kushner encaixam bem, seguindo o tal histerismo, apresentam algo de distinto face aos restante escritores, é que parecem, pelo menos eu não consegui descortinar, que quando se juntam não resultam em algo mais, ou tão só não parecem ter nada para dizer.

Quebra de recorde de velocidade em Bonnieville Salt Flats por Roland Free em 1948. Fotografia de Peter Stackpole para a revista Life.

Foto símbolo de 1977 dos Anos de Chumbo em Itália

As pilhagens durante o Apagão de NY, em 1977

Se olharmos para "Piada Infinita", ou "Dentes Brancos" ou "Submundo", todas estas obras se constroem na base de múltiplas histórias e historietas, umas mais outras menos loucas, mas todas trabalham para um objeto, o seu entrelaçar vai desvendando esse objeto, o seu conjunto significa, aponta para a construção de significante, ainda que ele possa ser subjetivo ou abstrato. No caso de "Os Lança-Chamas" as histórias vão-se sucedendo, a escrita é belíssima, mas tudo parece apenas servir o desígnio de entreter a nossa mente, uma leitura rica mas que parece estar apenas ao serviço do passatempo. Reconstituído o puzzle final da leitura, não retiro dele nada. Este foi o problema que encontrei em "Purity" de Franzen, por oposição ao que nos tinha dado nas suas duas anteriores obras "Correções" e "Liberdade"  Talvez não por acaso tenhamos visto Kushner dar entrevistas tentando explicar o que queria dizer com o livro, assim como tenha escrito todo um artigo de desconstrução do processo criativo da obra para a Paris Review. Mas essas explicações só acabaram a reforçar as minhas conclusões iniciais, de que realmente nada havia aqui além do imensamente sofisticado tricot de palavras. Falo em sofisticação, porque não está ao alcance de qualquer um escrever e descrever desta forma, requer virtuosismo que por sua vez requer muito estudo e trabalho.

Tendo mais a defender obras pela excelência da forma do que do sentido, ou melhor, tendia, mais ainda no cinema. Talvez por um excesso de adulação que fui lendo em alguma crítica aos sentidos de algum cinema mais artístico, habituado a codificar ideias em símbolos na esperança de ampliar o seus sentidos, sem contudo se ter de obrigar a dizer algo em concreto. Muito desse cinema era, e ainda existe algum, muito básico na forma, porque muitas vezes era feito por pessoas com muito pouco traquejo da arte. Supostos artistas, que tendo algo supostamente tão importante para dizer, podiam prescindir de desenvolver conhecimento do métier, considerando-o mesmo secundário na arte. Nunca suportei tal postura, ainda hoje lido mal com a chamada Arte Contemporânea por causa desta sua tendência, a defesa do artista que não precisa de sujar as mãos. Por outro lado, não posso aceitar o contrário, que o brilho da execução, o virtuosismo, sejam suficientes para elevar uma obra e fazer esquecer que ela é, numa grande parte de si, um ato de comunicação. Se não há nada para comunicar, então mais vale não escrever ou não filmar.

Termino dizendo que a obra de Kushner tem momentos muito altos, não apenas na forma mas também no conteúdo. Existe muita pesquisa aqui envolvida, somos brindados com imenso conhecimento à medida que vamos lendo, e no fundo aprendendo. Contudo falta-lhe um propósito, a capacidade de tudo enlaçar e dar a ver por um novo olhar seu, pessoal, sobre o mundo que decidiu nos apresentar. Sei que isto não é obrigatório numa obra, já que se trata de romance e não de uma obra de não-ficção ou uma tese. Contudo, olhando aos grandes clássicos, os livros que se eternizam são os que são capazes de jogar tanto na forma como no significado. Não fosse a obra tão instigadora de diferentes opiniões, e não teríamos tido críticos a criticarem-se na praça pública (Miriello responde a Seidel, com Tracy a tentar explicar o que os separa). De qualquer modo, conto ler o último livro, para tentar definir melhor a minha posição face à autora.

agosto 18, 2018

As 1001 histórias

O livro “As Mil e Uma Noites” é hoje parte do imaginário da humanidade. É uma das poucas obras exteriores ao ocidente, geograficamente, a ter neste penetrado e assumido estatuto de clássico e de texto canónico. Pela sua própria génese está ele próprio para além da definição geográfica, já que as histórias que o constituem provêm de vários países e continentes, desde a China à Índia, passando por África, focando-se maioritariamente em todo o Médio Oriente (Arábia e Pérsia), ao que se juntou, na reta final, também a mão europeia. Tendo em conta esta dimensão geográfica, facilmente se depreende que não foi uma obra criada por um autor único, daí que esta se considere fruto de autor anónimo. Como tal também não foi escrita num único ano, nem século, convencionou-se que a primeira versão terá surgido no século IX, mas desde então foram surgindo, em cada século, versões diferentes com acrescentos, alterações e variações, até à chegada da obra à Europa no século XVIII, sem que ainda hoje se possa definir qual a versão original e definitiva. Dito tudo isto, percebe-se também que um dos maiores atributos académicos deste texto assenta exatamente na sua arqueologia, tentar perceber a origem dos vários contos tanto no tempo como na proveniência geográfica, assim como na composição do próprio livro (serão mesmo 1001 contos? teriam uma ordem, qual? quais partiram da oralidade e quais da escrita?). Para todas estas questões faltam respostas conclusivas, o que desde logo abre todo um imenso cenário de investigação possível. Para a maior parte de nós, mais interessados no livro e suas histórias, do que na história arqueológica, não precisamos de o ler para o conhecer já que desde crianças somos presenteados com o seu universo — desde os livros infantis, à animação, cinema, teatro e jogos — mas, e por causa disto mesmo, a sua leitura acaba sendo imensamente prazerosa graças a toda essa nostalgia. É inevitável sentir alguns arrepios durante a leitura, pelo modo como vamos desenvolvendo associações entre o que lemos e as experiências passadas vividas com cada história, desde Ali Baba aos tapetes voadores, passando pelos sultões, génios e concubinas, aos mágicos poderes, e animais fantásticos em terras distantes e exóticas.

Edição de "As 1001 Noites" pelo Expresso e Alêtheia de 2017

No campo da análise estritamente literária, o livro oferece pouco mais além do seu interesse arqueológico e da popularidade global conquistada. O seu lado fantástico serve bem as histórias de aventuras e policiais, assim como o lado romance serve o amor, intriga e vingança, e nalgumas versões o erotismo. O texto em si constitui-se de imensa repetição, tanto de temas, como conflitos, personagens, cenários e claro estruturas narrativas. A exceção surge na instigante macroestrutura da obra, sempre citada e admirada como referência da literatura e que se resume no conceito de "frame story" ("história moldura"). Podemos então dizer que o maior atributo literário de " As Mil e Uma Noites" é a sua "história moldura", que acaba espelhando a nossa própria leitura, e que se define assim:
Um rei árabe, depois de traído pela mulher, inicia uma vingança que consiste em todos os dias desflorar uma virgem e no dia seguinte mandá-la decapitar. A chacina produz efeitos devastadores na região até que surge Xerazade que se propõe terminar com a mesma, a sua arma é: contar histórias. Assim, Xerazade casa-se com o Rei e durante toda a primeira noite conta-lhe uma história, chegando ao dealbar, não termina a história porque, diz ela, não tem mais tempo, deixando a conclusão pendurada (criando aquilo que hoje definimos como gancho narrativo ou "cliffhanger"), o Rei claro, adia a sua morte, para poder ouvir o final na noite seguinte, mas na noite seguinte Xerazade repete a estratégia, já que  inteligentemente vai contando as histórias por meio de elos que abre e fecha em função do controlo que pretende da atenção do rei. 

Parecendo simples, a moldura ganha enorme significado literário, pelo poder que metaforicamente concede à literatura, nomeadamente ao contar de histórias. No campo do desejo e prazer, temos o ouvir de histórias colocado ao nível dos prazeres da carne, com o Rei a preferir continuar a ouvir histórias em vez de consumar os prazeres da carne com virgens do seu reino. No campo político, as histórias assumem a capacidade de apaziguar a ira e a sede de vingança. Este último ponto é talvez o mais relevante, e olhando à evolução da sociedade, nomeadamente ao surgimento de novos media ao longo do último século, que têm servido para aumentar exponencialmente o contar de histórias, fazendo com que chegue a todo o lado e em doses maciças (livros, cinema, televisão, videojogos, etc.), e cruzando esta evolução com a contínua diminuição da violência entre humanos, como fica patente no trabalho de Steven Pinker, podemos assumir esta receita prescrita pelas “As Mil e Uma Noites” como válida. Deste modo podemos assumir as " As Mil e Uma Noites " como homenagem, diria mesmo, monumento literário ao contar de histórias.


Em termos de manutenção do interesse do leitor, as "As Mil e Uma Noites" presenteia-nos com todos os tipos de artifícios narrativos, principalmente aqueles que reconhecemos como mais ligados aos géneros de aventura, policial e fantástico. Desde os ganchos, já acima referidos, ao célebre "whodunit" ("who done it", ou seja, quem foi, ou quem matou), passando pelo hitchcokiano "MacGuffin" (objetos perseguidos pelos protagonistas sem grandes explicações, e muitas vezes irrelevantes para a trama), todos ao serviço do contar de histórias, da gestão do interesse e curiosidade dos leitores. Diga-se que são aqui usados de modo hábil, já que não raras vezes parei a olhar para as páginas, dizendo para mim, "que coisa estrambólica", e, no entanto, a curiosidade de saber o que se seguiria, mantinha-me ali preso ao virar de página. Estruturalmente a forma predominante é a dos ciclos de histórias dentro de histórias, criando matrioskas narrativas, tal como a própria história-moldura. Assumimos o lugar do Rei, ouvintes, seguindo atrás do contínuo debitar de histórias de Xerazade, com a nossa curiosidade sempre em busca de saciedade, que como “As 1001 noites” faz questão de demonstrar é insaciável, e por mais redundantes e repetitivas que sejam as narrativas acabam servindo o desejo intrínseco ao ser humano de querer conhecer e saber infinitamente mais.


Esta moldura-história é relevante, não pela originalidade, porque até já a "Odisseia" usava a abordagem, mas porque serve de cola a contos altamente díspares, ao contrário dos quadros da "Odisseia" que estão organizados para um fim, e assim mantém o nosso interesse sempre fresco já que de cada vez que uma história começa a perder-nos, entra Xerazade para nos recordar que está ali atenta ao nosso interesse. Não se espere, contudo, um diálogo profuso de Xerazade com o rei, ou melhor connosco, leitores, não esqueçamos que esta é uma obra fruto de vários autores e de vários séculos. Pedir-lhe essa força de unificação de enredo está para além das suas possibilidades. Por outro lado, também não se enalteça, como não raramente vemos fazer, as suas propriedades e originalidades, como já dissemos, milhares de anos antes tivemos "Gilgamesh", "Ilíada", “Odisseia”, “Eneida”, e tantas e tantas peças de teatro.


Quanto a versões, é difícil aconselhar. Passei os olhos por várias nacionais, brasileiras e inglesas, mas de tanta diferença entre elas acabei concluindo que cada tradutor opta por criar a sua. A mais referenciada, porque a primeira a dar-nos a conhecer o texto, é a de Antoine Galland, traduzida para quase todas as línguas, e foi essa que eu li na edição publicada pelo jornal Expresso com a Editora Alêtheia de 2017. É uma edição mais curta, com o texto imensamente limado, nomeadamente no campo do erotismo e violência, e por isso acusada hoje de faltar à verdade do texto original. Embora do que pude ler em edições, ditas traduzidas diretamente do Árabe sem arestas limadas, não vi propriamente nada de revolucionário. Em Portugal a E-Primatur publicou no ano passado o primeiro volume do que parece ser a primeira tradução nacional diretamente do árabe, por Hugo Maia. Li algumas entrevistas com o tradutor, e não gostei da arrogância no modo como aponta o dedo às outras edições, esquecendo que se “As Mil e Uma Noites” são o que são devem-no a todas essas múltiplas versões e não ao texto original. Porque o texto, dito original, está longe de poder definir-se como coeso, uno e fechado. Foram múltiplos os intervenientes no texto durante séculos, por isso nunca poderemos ter uma versão definitiva. Vou mesmo ao ponto de dizer que os contos de "Ali Baba e os 40 Ladrões" e "Aladino", de que parecem existir provas de terem sido acrescentados apenas no século XVIII por Galland, devam ser vistos como parte da tapeçaria que constitui a história da construção da obra.


“As Mil e Uma Noites” deve ser visto como conjunto de histórias que abre portas para um imaginário fantástico de puro divertimento, sem preocupações de aprofundamento moral ou outro, e por isso aconselhável a quem busca o escapismo, nomeadamente os mais novos (na versão menos crua). Ao contrário do que fui lendo em algumas resenhas, espero que não tentem ver nesta obra uma janela para a cultura do médio-oriente, pelo menos não a atual. Sim, existem proximidades, mas claramente ampliadas pela sede de exotismo, ponhamos muito sal na fervura, assim como devemos pedir aos nossos amigos persas e árabes que façam o mesmo quando lerem o nosso D. Quixote ou Robin dos Bosques.


Para fechar, deixo uma lista das histórias que me mereceram maior interesse. Como disse, li uma versão mais resumida, já que existem versões bastante maiores, mas nem todas as histórias são tão interessantes, muitas delas são bastante inconsequentes, outras até incoerentes, por isso aqui fica uma seleção daquilo que dá conta do espírito da obra e das suas maiores conquistas:



1 - Xarir e Xerazade
A história-moldura, responsável pelo lançar de todas as restantes histórias.

2 - História das Três Maçãs
Uma história de tipo policial, em que a trama é muito bem urdida, fazendo-nos sentir a dor dos dilemas.

3 - O Vizir e o Sábio Duban
A história que deu a ideia de colocar veneno no virar de páginas a Umberto Eco para o "O Nome da Rosa".

4 - O Pescador e o Génio
A fantasia dos reinos invisíveis e dos peixes multicolores.

5 - O Sonhador
A provável génese da parábola de troca de papéis entre o rico e o pobre.

6 – Os Três Príncipes e a Princesa Nouronnihar
A história em que surgiu o tapete voador e o telescópio que permite ver o que se desejar mentalmente.

7 - Ali Baba e os Quarenta Ladrões
Ainda que se possa dizer que não é pertença do livro, que contenha inovações literárias fora de época, é uma das histórias mais emblemáticas do lote, a ponto de as suas palavras mágicas “Abre-te Sésamo” se ter tornado sinónimo de todo o livro.

8 – As Sete Viagens de Sinbad
Ciclos de histórias sobre as aventuras de um marinheiro destemido, a fazer lembrar, embora sem a mesma profundidade, as aventuras de Gulliver.

9 – A Maravilhosa Lâmpada de Aladino
A história em que o génio e sua lâmpada são os verdadeiros personagens principais.

10 – O Terceiro Dervixe
Os lugares mágicos e as portas que nunca devemos abrir.

julho 23, 2018

5 anos depois

Voltei a "The Last of Us" (2013), rejoguei o jogo completo, algo que há anos e anos não acontecia, e tenho de dizer que a experiência foi tão, ou mais, intensa que a de há 5 anos. Reli agora o que escrevi na altura e nada se alterou, nem tão pouco o jogo foi ultrapassado por qualquer outro. Entre as duas experiências li "A Estrada" (2007) de Cormac McCarthy, uma das principais influências de "The Last of Us" (TLOUS) e tenho de dizer que Neil Druckmann ombreia com McCarthy, bastante mais do que a adaptação cinematográfica homónima de John Hillcoat, mesmo não lhe sendo tão fiel.


Não vou realizar qualquer análise ao jogo porque como já disse, o que escrevi há 5 anos mantém-se tudo, mas quero aproveitar estas linhas para enfatizar algo que nessa altura louvei mas julgo não ter sentido tanto como desta vez, falo dos personagens. Os personagens são a essência da literatura, ela melhor do que qualquer outra arte consegue dar-nos a conhecer quem se nos apresenta, porque nos permite entrar nas suas mentes e escrutinar o que pensam em cada momento. Contudo, como sabemos do cinema, é possível chegar a muito disso pelo que estes decidem fazer em cada momento, e os videojogos não são exceção. Sendo o videojogo muito mais extenso que o filme, passamos muito mais tempo na sua companhia, temos mais oportunidades para ir conhecendo aqueles com quem seguimos na narrativa. E TLOUS aproveita bem as mais de 20 horas que o jogo requer da nossa atenção, criando situações, atividades e escolhas que se vão desenrolando num modo imensamente rico no que toca a expressividade dos personagens. Quando disse acima que Druckmann ombreia com McCarthy era especialmente por esta riqueza narrativa, de situações que nos permitem entrar de forma tão profunda no sentir dos seus personagens.

O personagem principal Joel não é nenhum santo, apesar de começar como um simples pai de classe média americana, com um conjunto de valores iguais a tantos outros, o confronto com o apocalipse transforma-o completamente, algo a que assistimos logo ao abrir do jogo, e o resto do jogo acaba sendo toda uma travessia em busca do Eu perdido de Joel, o que abre espaço constante para a luta moral interior, entre os resquícios da bondade de outro tempo e a violência própria do novo tempo. Diga-se que TLOUS é bastante violento, não sendo mais que "A Estrada", mas por ser mais longo, faz-nos sentir mais vezes essa violência. Por várias vezes questionei-me que não era precisa, e que estaria a ser gratuita, mas saindo da redoma da minha segurança sei que não, tal com McCarthy também sabia.

Este desfiar moral sobre a identidade de Joel está presente até ao fim e é mesmo a chave para explicar o final narrativo mais surpreendente de sempre dos videojogos. As opções apresentadas são: salvar a humanidade ou salvar uma adolescente com quem se desenvolveu uma relação de pai e filha. A decisão é um dilema filosófico sobre o sentido utilitarista da vida, em que nós como jogadores não participamos, mas que define por completo a jornada encetada com Joel, servindo de chave para compreender de onde se parte e onde se chega. Nós não somos Joel, mas Joel pode ser todos nós. Druckmann obriga-nos a refletir sobre algo que McCarthy acaba, em parte, descartando, as relações humanas. No fundo, só investimos tanto na nossa sobrevivência por causa dos outros como nós.



Veremos o que "The Last of Us II" tem para nos oferecer.

julho 15, 2018

Humor com poder transformador

Acabo de ver uma hora inteira de stand-up com um único performer, e tenho de dizer que foi uma das experiências mais intensas que experienciei nas últimas semanas. Hannah Gadsby encheu a famosa Sydney Opera House para uma atuação de 60 minutos. Fala de arte, criatividade, género, política, fala de técnicas do storytelling, fala sobre o vitimismo e o poder, fala sobre pedofilia e reputação, fala sobre a raiva e o riso. É uma performance como nenhuma outra, por isso não admira o enorme buzz que está a gerar nas redes e nos jornais internacionais de referência. "Hannah Gadsby: Nanette" (2018) é uma experiência transformadora que recomendo absolutamente que vejam, homens, mulheres, heteros, homos e trans.

"Hannah Gadsby: Nanette" (2018), Netflix

Gadsby não conta apenas piadas, traz para o palco a sua vida, os seus dramas, a sua raiva e tensão. Como diz Gadsby, um performer não pode apenas dizer mal de si próprio, porque para contar uma história é preciso algo mais, é preciso uma conclusão, uma chegada, uma lição. E ao longo desta hora, que vivemos de forma tão intensa apenas a partir das palavras, histórias e vida desta artista, somos conduzidos pela mão, através de todo o arco dramático. E Gadsby é brilhante, porque nos conduz e controla a tensão de forma altamente precisa, e quando menos damos por isso, estamos ali presos pelo pescoço, de boca aberta, sem crer no que estamos a ouvir e a sentir.


Não sou grande seguidor de stand-up, vi alguns espetáculos, nada de grandes estrelas, mas acredito no que dizem alguns dos críticos e comediantes por esse mundo fora, temos aqui algo muito diferente, competente, poderoso, e acima de tudo transformador. A comédia não deve, nem pode servir apenas para passar o tempo, para entreter a mente, a comédia pode ser muito mais, se se decidir a contar a histórias. Esta é a conclusão da Hannah, e tendo em conta todo o meu trabalho com narrativa nas últimas duas décadas, não poderia estar mais de acordo com ela.


Quanto aos que se sentirem incomodados, ou atacados pelo espetáculo, peço que interiorizem, empatizem, compreendam o mundo a partir da perspectiva do outro, e perceberão que não há lugar para tal. Que há lugar sim, para mudar, todos. Porque é mais do que tempo de mudarmos.

abril 08, 2018

La Casa de Papel (2017)

No final da linha temos envolvimento completo, empatia absoluta. Roubar e fazer reféns menores é algo que só pode ser feito por pessoas más, pessoas dispostas a violar tudo o que de mais sagrado construímos enquanto sociedade e civilização, mas no final, por debaixo das máscaras dessa maldade — sejam Dali, Munch ou Warhol — são humanos que emergem, humanos como todos nós. No final, torna-se difícil se não impossível apontar quem são os vilões. Teremos sido manipulados?


O melhor deve-se sem dúvida ao criador e principal guionista, Alex Pina, e à restante equipa de guionistas — Esther Martínez Lobato, Javier Gómez Santander, Pablo Roa, Fernando Sancristóval, David Barrocal, Esther Morales. A premissa por detrás do assalto ao banco consegue ser bastante original, todo o desenrolar, ainda que com pequenos problemas, agarra-nos, e o final, algo que desde o início acreditei estar condenado ao fracasso, já que os clichês se repetiam aqui e ali, atira-nos ao tapete convertendo-nos ao maestria de Alex Pina.

É preciso competências técnicas de excelência para pegar no melhor da máquina do storytelling americano, desenvolvido ao longo de um século por Hollywood e altamente aperfeiçoado nas últimas duas décadas pelas cadeias de televisão americana privadas, pô-la a rolar e mantê-la viva ao longo de quase 20 horas, mas para tocar o sentir dos espetadores desta forma, é preciso saber ler a contemporaneidade e apertar os botões corretos que agitam e fazem mexer as nossas crenças.


Assim, se a série conta com excelentes atores, muito boa cinematografia (para televisão) e ótima direção de arte, tudo é operado tecnicamente com um fim muito concreto: tornar o mais verosímil possível aquilo que o guião tem para oferecer. Ele é a estrela, é o guião que nos agarra e mantém tensos, em pulgas, continuamente a tentar adivinhar o que vai acontecer a seguir, e ao mesmo tempo consegue surpreender até ao final. A construção dos núcleos narrativos não segue a tradicional linearidade horizontal, está desenhada em 360º por meio de ganchos que enlaçam as ações e personagens num enorme labirinto de causas e efeitos que se vão desdobrando em camadas, gerando no espetador sempre a expectativa de existir algo mais por descobrir.


Tudo isto seria muito bom, diria até por descargo de consciência muito bom entretenimento, mas não o direi porque temos mais, temos genialidade. Alex Pina estabelece um paralelismo entre o que está a acontecer dentro da série e aquilo que está acontecer com os espetadores agarrados à série, indo ao ponto de desmontar na nossa frente tudo aquilo que está a fazer. Cedo começa a descortinar o síndrome de Estocolmo para descrever como se criam paixões em situações de refém, espelhando o nosso próprio lugar como reféns da série; depois toda a relação com os media, que vai sendo amiúde relatada atingindo o auge com a narrativa sobre os assaltantes — David contra Golias, ou no caso Camarões contra Brasil — na opinião pública, e em nós espetadores; todo o jogo entre os que se apaixonam por interesse e os que verdadeiramente caem na rede de Afrodite mas com todas as forças procuram escapar-lhe das malhas, tal como os espetadores; tudo e muito mais vai toldando a nossa própria sensibilidade, fazendo com que ao longo do tempo cedamos, mais uma vez como cedem os personagens dentro da série, colocando em questão as suas, e nossas, agulhas morais. Alex Pina é uma espécie de ilusionista que não se importa de mostrar os seus truques, porque sabe-se capaz de nos manter ainda assim sempre dentro da ilusão. No fundo, quem era o Professor se não o próprio Alex Pina.


CODA
Passar maus por bons não é algo novo, nas últimas décadas os videojogos foram imensamente atacados por o fazerem — o maior expoente foi "Grand Theft Auto" (1997-2013) — depois vieram as séries de sucesso repetir a fórmula — com casos como "Breaking Bad" (2008-2013) —, mas muito antes disso já tínhamos tido obras como "The Godfather" (1972), para não falar mais concretamente em "Bonnie and Clyde" (1967) (poderá existir a tentação de juntar aqui o mito de Robin Hood, mas são de ordens muito diferentes). Na verdade, falamos de um fenómeno emergente da segunda metade do século XX, marcando bastante bem os momentos em que o pensamento pós-modernista começa a emergir. Já não se podia ir para além do experimentalismo do modernismo, já se tinham destruído todas as noções estéticas do belo, por isso restava agora apenas quebrar as noções morais do bem. É isto que temos aqui, no fundo algo melhor entendível se definido como "pós-verdade". A realidade do mundo atual foi completamente transformada por uma sociedade muito mais formada, dotada de várias literacias que lhe permitem laborar mentalmente no abstracto, e assim compreender a constituição da Ilusão em que vive. Esta já tinha percebido que a verdade não existia, mas ainda não tinha percebido que era criada por cada sujeito à medida da sua mundividência, o "fim das meta-narrativas" deixava de ser um postulado teórico e passava a facto para milhões.

dezembro 11, 2017

"Ilíada" de Homero

Durante muito tempo me questionei porque sempre que se citava Homero, ou se citavam os clássicos da literatura grega, era da “Odisseia” que primeiro se falava, quando em termos cronológicos, tanto da sua conceção como da história contada, é a “Ilíada” o primeiro dos dois livros. Não compreendia, até porque na tradição contemporânea, o mais importante das histórias está normalmente associado ao primeiro livro, ou primeiro filme, não passando os restantes de sequelas, sucedâneos, que não raras vezes falham em atingir o nível dos primeiros volumes das séries. Assim, e tendo eu lido primeiro a “Odisseia”, no ano passado, agora terminada a leitura da “Ilíada”, compreendi o porquê, e é sobre isso que me irei deter nas próximas linhas.

"O Triunfo de Aquiles" por Franz Matsch, num fresco do século XX, em que se vê Aquiles puxado pelos seus "cavalos de casco não fendido", arrastando, pelos pés, o corpo de Heitor.

A “Odisseia”, como o próprio título indica, trata uma viagem, no caso, a do regresso de Ulisses a casa, depois dos 10 anos que duraram a Guerra de Tróia. Já a “Ilíada” foca-se nessa guerra, mas se dá conta das razões que a ela conduziram, acaba por depois se centrar quase exclusivamente num punhado de eventos, realizando avanços e recuos ao longo de toda a sua descrição, sem nunca chegar a concluir o que inicia. Assim, temos como razão para o início da guerra, um tanto tonta como Heródoto já terá dito: Paris, filho do rei de Tróia, rapta a mulher, Helena, do rei de Esparta (Antiga Grécia), Menelau, e fogem ambos para Tróia, fazendo com que os gregos se levantem em sua perseguição, e iniciem uma guerra de 10 anos para destruir Troia e reaver Helena.

A edição em capa dura da Cotovia é deliciosa, mas o melhor continua sendo a tradução, como já havia dito a propósito da "Odisseia", realizada por Frederico Lourenço.

Os avanços e recuos nesta guerra acabam por ocupar a maior parte do livro, com as peripécias dos diferentes personagens. Do lado de Tróia: Paris, o seu irmão Heitor, e pai Priamo, ou o militar Eneias, que surgirá mais tarde como personagem principal da “Eneida” de Virgilo. Do lado dos gregos, temos Menelau, Agamenon, Ajax, Pátroclo e Ulisses que será o principal personagem da “Odisseia”. O miolo da narrativa arrasta-se bastante, não fossem as intervenções dos Deuses (Zeus, Ares, Afrodite, Atena, Apolo, Hera, Poseidon, etc.) em defesa de cada fação! Sim os Deuses defendem lados e atacam-se uns aos outros, tornando-os numa das mais interessantes atrações deste livro.

O núcleo da narrativa, acabará por surgir apenas na última parte do texto, com Aquiles a assumir por completo o protagonismo, a ponto de no final se tornar inevitável ler a “Ilíada” como o livro de Aquiles, ou como é reconhecido por alguns, "A Ira de Aquiles". Isto é no mínimo surpreendente, já que apesar de Aquiles surgir desde o início, ele é praticamente secundário durante todo o livro, contudo o modo como depois Homero o trabalha nesse último terço, acaba por elevar a sua personagem a um ponto de destaque não dado a mais nenhum dos restantes elementos. Aliás, em parte, o problema desta "Ilíada" está exatamente no quão pouco trabalhados vão surgindo cada um dos personagens, completamente lineares, ao contrário do que acaba por acontecer com Aquiles, o problema é isto acontecer apenas na reta final. Repare-se como em a "Odisseia", o trabalho de desenvolvimento de personagem recai sobre Ulisses mas esse é trabalhado o início ao final do poema.
“E Aquiles atirou-se a ele, com o coração cheio de ira
selvagem, e cobriu o peito à frente com o escudo,
belo e variegado, agitando o elmo luzente
de quatro chifres. Belas se agitavam as crinas
douradas, que Hefesto pusera cerradas como penacho.
Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite,
a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu —
assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou
na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor,
olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada.”
Canto XXII 
Se é crível o despoletador da chama de Aquiles (a morte do seu amigo Pátroclo)? Julgo que é tão crível como uma cidade inteira deixar-se levar para uma guerra destrutiva por causa de um capricho, moralmente indefensável, de um filho de um rei. No fundo a "Ilíada" mostra, como desde a primeira hora, a narrativa teve de lidar como problemas de dissonância cognitiva, no caso: com tantos e tantos personagens mortos de formas violentíssimas, descritas para nos fazer sentir o terror da guerra, quer depois a narrativa que se chorem alguns desses personagens em particular, como se umas vidas tivessem mais valor que outras. Isto apenas se explica porque como muitos foram dizendo, estes poemas épicos não procuram retratar a realidade, antes dão conta de histórias populares, folclore, com um sentido de puro entretenimento, recorrendo à fantasia e mitologia.

Neste sentido, interessa menos a credibilidade do que se conta, e mais a ênfase do heróico dos personagens, que para o ser requer emocionalidade, e nesse campo Aquiles acaba sendo um dos poucos a ser capaz de nos emocionar. Faltam episódios marcantes, mais ainda quando comparado com a “Odisseia”, nem mesmo o Cavalo de Tróia aqui surge, ou o tendão de Aquiles, ainda que no último terço surjam todo um conjunto de eventos fortes enquadrados pela Ira de Aquiles — a morte de Pátrocolo; o resgate do seu corpo; a luta entre Heitor e Aquiles; a morte de Heitor; e o pedido de Priamo para levar o corpo do seu filho Heitor de volta.

"Priamo implorando a Aquiles" (1815) de Bertel Thorvaldsen 

Dito tudo isto, julgo que fica clara a relação das duas obras, e nomeadamente porque “Odisseia” vai surgindo quase sempre como a referência desta época. Não fosse a “Íliada” o primeiro poema épico sobrevivente (depois do curto poema “Gilgamesh”),  e provavelmente acabaria esquecido na nossa história. Tudo o que tem para oferecer é imensamente melhor conseguido na “Odisseia”. Ainda assim, não posso deixar de recomendar a sua leitura. É um processo lento, mas em que o crescendo se vai instalando, para no último terço, vivido com Aquiles, recompensar todo o nosso investimento. Como já tinha dito a propósito da “Odisseia”, Homero parece um autêntico realizador de cinema de Hollywood, capaz de nos arrastar pelo pescoço, com a emoção pendurada desde o canto do olho até à ponta do coração. Pura visceralidade, não fosse este é um Poema Épico.


A ler:
"Odisseia" de Homero, in Virtual Illusion

dezembro 09, 2017

Nintendo Storytelling

Em 2017 a Nintendo lançou a sua nova consola Switch de que aqui dei conta com grandes expectativas, mas não é para falar da consola que escrevo já que com ela chegaram ao mercado neste mesmo ano, os seus dois novos títulos bandeira, “The Legend of Zelda: Breath of the Wild” que abriu as hostes e fez muitos de nós, eu incluído, correr a comprar, e “Super Mario Odyssey” que saiu agora mais perto do Natal. Interessa-me então neste pequeno apontamento sintetizar algumas ideias que tenho vindo a trabalhar em redor do design de jogo destes dois jogos, que simbolizam o design de excelência da Nintendo.



Começar por dizer que joguei ambos, Zelda e Mário, mas não terminei nenhum. No caso de Zelda, apesar do design inovador apresentado por força do novo modelo de mundo aberto, com um level design perfeito, uma progressão clara e apelativa, com todo um mundo muito bem orquestrado, não senti que o jogo puxasse por mim. Já com Mário, acho que nem sequer coloquei a hipótese de o terminar, pois nunca o fiz antes com nenhum da série. Joguei ainda menos que Zelda, apesar do design de jogo vir ainda mais artilhado, ou seja apresentando clara diferenciação face aos títulos anteriores, podendo classificá-lo mesmo como muito imaginativo, um hino ao fator divertimento, melhor do que qualquer parque temático.

Mas então porque não termino estes jogos? Julgo que o problema está no storytelling. Ou seja, a Nintendo utiliza o storytelling como mecânica de jogo, e não como meio para contar histórias. O modelo criado por Miyamoto, e que continua a servir a Nintendo até hoje, define o storytelling como mero condutor da ação para um fim, mas que nunca é afetado por essa ação, nem por esse fim. Ou seja os personagens evoluem nas suas capacidades de ação sobre o mundo, mas não mudam por dentro. E isto acontece porque Miyamoto não trabalha os personagens como pessoas, mas apenas como objetos. Atribui-lhes apenas capacidades de ação sobre o mundo, esquecendo as capacidades para sentir as ações desse mundo. No fundo, temos uma espécie de objetos semi-inteligentes, robôs, que nada mais sabem ou querem saber, além de circular por mundos em busca do seu fim (“a princesa perdida”), a quem vão sendo apresentados obstáculos que eles têm de resolver.

Ou seja, Miyamoto é magnífico no desenho dos obstáculos, e ainda mais no desenho das ações de resolução desses obstáculos, no modo como interliga todos os objetos e personagens na cena, mas não perde um segundo a pensar no que tudo isso representa para o seu personagem, e menos ainda para o seu jogador. Miyamoto joga tudo no fator divertimento, na criação de um sentido de fluxo pleno, por meio de ativação da lógica sobre o qual trabalha brilhantemente os ritmos de recompensa e punição, que garantem a emocionalidade, muitas vezes visceral. Mas nada do que se faz releva para o sentir dos personagens, nem o fim objetiva a dar qualquer significação aos esforços encetados.



E é por isso que quando comecei a jogar “The Legend of Zelda: Breath of the Wild”, apesar de sentir imensos avanços na lógica do design, não consegui deixar de sentir que estava a repetir a experiência vivida em “The Legend of Zelda: Skyward Sword” (2011). Zelda tem bastante mais lore que Mario, mas o lore serve de mera gratificação estética, não corresponde às necessidades de um contar de histórias, é preciso mensagem, é preciso existir algo para dizer, se não ficamo-nos pelo mero window dressing, indo pouco além do storytelling que qualquer ride de parque temático oferece.

Com tudo isto não quero dizer que os jogos são maus, ou irrelevantes, apenas constato o modo como são desenhados, acreditando que para esse desenho se tem em mente um público mais juvenil, que procura menos significação e mais gratificação emocional. O mesmo público que adora parques temáticos, sendo que existem muitos adultos que continuam a gostar dos mesmos. O mais interessante para mim é verificar que o storytelling é aqui uma mecânica, que serve ao lado das restantes mecânicas do design de jogos, para nos manter engajados no tempo, nada mais.