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agosto 09, 2017

Uma Abelha Na Chuva (1953)

Vi o filme na adolescência, a adaptação de 1971 de Fernando Lopes, e não gostei. Ficou-me marcado o estilo nada natural, o ritmo lento e entrecortado, combinado com um título que sempre me pareceu ingénuo, pelo simbólico e fragilidade do inseto, incapaz de gerar interesse. Por isso tive sempre relutância em pegar no texto original de Carlos de Oliveira. Admito que foi um erro, o texto é superior, ou talvez o facto de hoje ter mais do dobro da idade me faça sentir tudo tão diferentemente.


Carlos de Oliveira nasceu no Brasil, mas foi na região portuguesa da Gândara que cresceu e de onde retirou a geografia que serve de cenário a “Uma Abelha Na Chuva”. Esta região situada no litoral — entre o Mondego e a Ria de Aveiro — conheço-a muito bem por também aí ter vivido uma parte da minha infância, mas por isso mesmo posso dizer que não apresenta particularidade — na generalidade plana e arenosa, dotada de pequenas lagoas e muitos pinhais. Aqui nada parece acontecer nunca, mas de certo modo é dessa espécie de marasmo brumoso que Oliveira se socorre para encorpar o universo da sua história, e daí que refletindo, hoje, sobre a adaptação de Fernando Lopes me pareça afinal muito condigna, assumindo eu a minha incapacidade para enquanto jovem a poder compreender.

Os pinhais da Gândara

A história dá conta de um conjunto de personagens que ocupam diferentes estratos sociais do Portugal dos anos 1950, das suas relações, ambições e decadências. Mas os personagens, tal como a geografia, parecem não ter muito para dizer, para se importar, ou agir, como se se deixassem levar pelas forças que os trespassam, sejam as leis, regras sociais, ou condições geográficas e climatéricas. Inevitável  a colagem a “Satantango” (1994) de Bela Tarr, o seu mundo mecânico sem força interior, mágico nebuloso, de certo modo castrado pelas condições políticas de uma Hungria comunista, o que não deixa de apresentar semelhanças com um Portugal sob o jugo ditatorial.

"Satantango" (1994) de Bela Tarr 

A crítica e análise do texto, tão prolífica no mundo académico a ponto de tornar o texto obrigatório na escola nacional, centra-se muito sobre a componente ativista do neo-realismo português, dando grande destaque para o simbólico que percorre o texto, desde logo o título e as classes sociais, no modo como destaca a falta de organicidade da sociedade de então. Se me interessou, o que verdadeiramente me espantou, o que me agarrou, e deixou fixado em Carlos de Oliveira foi a estilística. Oliveira era um mestre da palavra, leiam-se os seguintes excertos:
“Arrastava-se a viagem. A morrinha parara mas havia mais frio. Traçou o xaile de lã sobre a garganta, sempre aquilo, colhia-a um golpe de humidade e a voz, rouca de natureza, tornava-se inaudível. Só o calor lhe permitiria falar outra vez desafogadamente. Passou de memória a sala do Montouro, com pinhas acesas e desfeitas no tijolo do lar, as conversas vagarosas, o grande candeeiro de petróleo com as senhoras debruçadas sobre as malhas, e ela que em geral se azedava no pasmo daquelas noites desejava-o agora de todo o coração, quem me dera estendida na cadeira de verga, ao brando crepitar do lume.”
“Sentou-se num desses marcos de pedra tosca que dividem as propriedades; tentava serenar, sair da sua confusão; e olhando aqueles sítios conhecidos agasalhou-se na memória das manhãs infantis passadas por ali: as galinhas mansas e ensonadas a desenterrar as minhocas da humidade do pátio; a voz pastosa de João Dias, o velho caseiro, a gritar ao gado; o cavalo novo, comprado em S. Caetano, empinava-se a meio do terreiro e relinchava atirando pelas narinas o fumo da respiração selvagem; as aves madrugavam nas ramagens da nogueira imensa; ele, empoleirado na alpendrada de madeira e zinco, dava conta do catarro do velho Silvestre, dos seus primeiros passos no quarto, estendia a vista pelos currais, pelas culturas encharcadas de orvalho; o sino espargia sobre a gândara o som antigo do amanhecer e nas casas nascia o lume que a dejua;”
“Levou o resto da manhã às voltas com a ideia e tanto lhe mexeu que a deixou a sangrar: o sangue farto das feridas recentes. Espantava o sono com goladas duma garrafa de aguardente que escondia no cofre. Pouco a pouco, ressuscitava nele o homem implacável que a intensa amargura dalguns dias arrancava ao desespero a que descia, como se o vento desse na poeira da sua consciência desmoronada e as pedras limpas se reerguessem umas sobre as outras. Nesses acessos tornava-se rígido, cruel.”
Muito expressivo e ao mesmo tempo, impressivo. O texto que parece simples, carrega consigo uma quantidade de imagens a que só acedemos na plenitude após várias releituras. Como se as palavras dessem conta de uma realidade imediatamente perceptível mas formassem camadas de sentido que se vão construindo na soma de palavras em frases e por sua vez na soma de sentidos. Para isto contribui o ritmo e o encadeamento das frases que contribuem para uma prosa particularmente poética.

Ingrid Bergman em "Stromboli" (1950) de Roberto Rossellini

Se no final da leitura me dava conta da imensa beleza do texto por contraste à pequenez da história contada, à medida que o tempo pós-leitura foi passando fui sentindo cada vez mais o mundo de Oliveira, e percebendo melhor o que ele pretendia. Oliveira não queria contar uma história, queria criar uma experiência, a sua Gândara é o “Stromboli” (1950) de Rosselini, e se ambas estas figuras foram rotuladas de neo-realistas, eu não consigo deixar de as sentir como impressionistas.

julho 24, 2017

A Noiva do Tradutor (2015)

A escrita é bastante particular, elaborada mas acessível, dotada de uma pontuação intensiva, com ênfase na vírgula, que pauta o ritmo das frases e conduz o sentir da experiência de leitura, aproximando-a do tempo da ação. São 48 horas em 100 páginas, durante as quais pouco acontece ainda que pareça muito pela velocidade imprimida no modo como o pensar do protagonista vai brotando dessas páginas.


Não falo de género, não é um thriller, mas é antes o estilo adotado pelo autor que lhe permite desta forma criar um acesso ao interior do personagem, levando-nos no sequenciamento do idear, mas numa forma distinta do tradicional “fluxo de consciência”, no sentido em que as palavras não parecem brotar diretamente do não-consciente, do eu automático, mas antes do limiar do consciente, uma espécie de sinais pré-verbais.

De algum modo, este Tradutor atira-nos para os interiores de Gregor Samsa (Kafka) ou Rodion Raskólnikov (Dostoiévski), até porque a estes não é também alheio a visão mais negra do mundo em que vivem. O nosso Tradutor fica sem a Noiva e na busca por a ter de volta e tudo fazer para lhe agradar, entra por uma espécie de universo fantástico adentro, uma espécie de realidade alternativa de um passado europeu de há 100 anos, no qual o real se exagera e a sensibilidade se amplia, permitindo ao autor criar momentos de grande comicidade e simultaneamente questionamento existencialista.
"A velha aproxima-se, eu debruço-me sobre o corrimão, estou curvado no segundo degrau, molho o tapete, todo o meu corpo escorre água, tirito de frio, não consigo evitá-lo, é mais forte do que eu, terei de consultar um especialista sobre estes fenómenos, terá de existir uma explicação, a gorda viúva estica o pescoço, aproximo o meu rosto, sinto-lhe o hálito dos pesados assados de domingo, ainda não os digeriu, a noite não foi suficiente, ela aguarda ansiosamente, eu grito-lhe ao ouvido."
Gostei muito de ler João Reis, por tudo o que disse acima, mas também e apesar de não ser grande apreciador de comédia literária, pelo modo subtil, em que tudo se vai apresentando tão natural, mas simultaneamente ríspido, com os modos cruéis com que se vão desqualificando os vários personagens, criando assim uma teia negra mas cómica que tece o mundo do livro. Na tradição deste tipo de obras não é expectável fechamentos significativos, interessa mais o processo, mas neste caso posso dizer que me surpreendeu, a cena final preencheu-me, insuflou-me o sentir.

janeiro 29, 2017

“Que importa a fúria do mar” (2013)

Mais uma primeira-obra portuguesa que merece nota máxima, depois de “O Meu Irmão” (2014) e “Perguntem a Sarah Gross” (2015). Todas com boas histórias, bem escritas, mas com estéticas muito diferentes, e neste caso não admira que António Lobo Antunes lhe tenha tecido elogios, já que Ana Margarida de Carvalho escreve na sua senda. Temos um discurso indireto livre sem freios, que entra pelas mentes dos personagens adentro e os esventra dos seus sentires. Tendo recentemente lido “Myra” (2008) de Maria Velho da Costa, “Que importa a fúria do mar” não está ao mesmo nível, falta-lhe maturidade capaz de conferir um controlo fino do texto e do que vai dizendo, mas aproxima-se bastante e promete sobre Ana Margarida de Carvalho.


“Que importa a fúria do mar” é um texto curto, 200 páginas, dotado de uma escrita erudita e não-linear, mas que ainda assim no desenrolar de páginas se vai colando a nós, tornando a leitura cada vez mais fácil e rápida. Em pouco tempo damos por nós a querer virar páginas para saber o que vai acontecer a seguir, tendo já esquecido que o discurso não segue linear, e que ora estamos dentro de Eugénia, de Joaquim, Francisco, o Gato ou o Pastor, mas com a autora sempre a manter o caminho da trama suficientemente iluminado, exigindo apenas quanto baste pela experimentação estética que vai realizando.
"Eras tão nova, mãe. E eu agarrada aos teus sonhos, aos teus cabelos, aos teus sapatos, ao teu presente, ao teu futuro – e pior – ao teu passado, que tu querias esquecer. Mas lá estava eu a fazer-te lembrar que tinha mesmo acontecido. Desafortunadamente, era uma menina empecilho, largada numas paragens agrestes e húmidas, em casa de uns parentes remotos. E velhos."
Para primeira obra é admirável escrever-se assim. Não só ter uma boa história para contar, que enlaça o passado ditatorial e colonial do nosso país com o presente das tragédias de quem por cá sempre viveu e tem de viver, mas acima de tudo por um texto capaz de ser tão intrincado e ao mesmo tempo tão aberto, tão dado. Existem claro passagens menores, alguns excessos. Muita crítica é feita ao palavreado rebuscado, que se sente mais no início e que acaba por perder leitores, mas que vejo mais como sintoma de alguma insegurança originada pela imaturidade. Do meu lado, sinto ainda um excesso no número de tragédias apresentadas tão a jeito de catarse emocional, e que por vezes até em aberto se quedam. Mas é também, em parte, graças a estas catarses, que Ana Margarida de Carvalho consegue a nossa atenção e interesse todo o tempo da leitura, fazendo deste texto um dos livros portugueses que mais mexeu com as minhas emoções.
"Ao calor do meio-dia, Joaquim fazia por enterrar os arrames farpados nas costas. Preferia focar-se na dor das feridas do que na sede que o ensandecia. Isso e as moscas que não podia enxotar e lhe sondavam a face com as suas trombinhas impertinentes."
"Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbitos"

Quanto à chave do texto, está no título. As suas duas primeiras palavras dizem tudo. As tragédias passam por nós, os outros passam por nós, e nós seremos o que todos estes fizeram de nós.



Fotografias do Campo de Concentração do Tarrafal, Cabo Verde, 2016


Nota final: O facto de ter estado no Tarrafal este ano contribuiu, e muito, para ampliação do meu sentir do que se encerra nas páginas deste livro. Inevitável criar estas relações com as obras que se aproximam de nós, a familiaridade é um dos mais poderosos afrodisíacos do prazer das histórias.

janeiro 19, 2017

"Myra" de Maria Velho da Costa

Sintético e sincrético, num constante jogo de opostos. Uma amálgama discursiva de intenso sabor. Um texto impressivo que segue de muito perto o impressionismo da pintura, no modo como textualmente desfoca o real e o torna menos claro e preciso mas indelével e intenso. Se podemos sentir a história descarrilar a meio caminho, o discurso e a escrita são tão intensos e particulares que fazem desta obra um texto em língua portuguesa obrigatório.


“Myra” é provavelmente o romance mais económico que li até hoje. É tudo tão medido, não existem palavras ao acaso atiradas por entre frases, mas antes cada uma tem um desígnio. Muito é dito em frases curtas, por vezes duas palavras chegam para passar uma imensidão de acontecimentos, um sentir carregado de passado ou um mundo por vir. A autora não se perde em explicações, estamos sempre no presente, no interior da cabeça dos personagens, sejam estes pessoas, cães ou casas, todos falam, mas, e ainda que de forma comedida, quando falam dizem muito sobre o passado e o futuro. Interessante como apesar de tão pouco dizerem, sentimos que estão em diálogo permanente, porque na verdade estão, já que dialogam pensando, enriquecendo assim o discurso, criando deste modo uma obra singular.

Todo o desenho da obra é feito seguindo uma lógica geométrica de contrastes e opostos a vários níveis: cultura (alta / baixa), discurso (modernista / realista), trama (etérea / naturalista). Com um mundo representado pelo choque constante de culturas, numa busca pelo sincretismo que vai da alta cultura (a linguagem erudita, rodeada de música de câmara e cinema europeu) à baixa cultura (vernáculo, música pop e cinema de Hollywood); suportado por um discurso pontilhado de fluxo de consciência por entre diálogos claros e expositivos; por sua vez tudo dirigido por uma trama que divide o texto em três momentos, opondo-se os dois primeiros, oníricos, ao último mais naturalista.

De certo modo as referências intertextuais marcam toda esta cisão criada: com Pasolini, Eisenstein ou Rimbaud de um lado; Sylvester Stallone, Will Smith, ou séries de televisão, do outro. Não poucas vezes, o que se diz é dito por meio de um título de um filme, de uma fala, ou uma canção, trazendo para dentro da economia de texto uma enorme riqueza de sentidos. O mesmo se dá com as interjeições linguísticas que vão do inglês, francês, russo, ao italiano ou o latim. Tudo isto, enriquecendo não deixa de se tornar a certo ponto repetitivo, matemático, conduzindo a alguma deserção do texto em que estamos inseridos.

Cabe aqui interpretação, aliás muita, desde logo porque sendo um texto económico acaba por se aproximar bastante de uma obra minimal o que inevitavelmente produz a necessidade de seguir as pistas deixadas pela autora, mas também por toda a intertextualidade presente. De certo modo, a cabal compreensão do texto só é possível com um estudo mais aprofundado da autora e seu contexto. Depois de ter escrito esta palavras encontrei uma tese de mestrado, de Daniel Damasceno Floquet, completamente dedicada ao estudo das dicotomias em "Myra", no fundo aquilo que aponto acima como geometria de constrastes. Não a li, tentarei ler entretanto para chegar mais fundo na compreensão deste texto que apesar de curto é imensamente rico.

Da minha perspectiva, confronta-se aqui o belo, a elaboração cultural, com o grotesco do mundo primário real. Esse confronto atravessa toda a obra, num questionamento da elevação cultural, confrontado com o mantra da vida: “a fome, o sexo e o poder”, e por outro lado o condicionalismo da nossa natureza na expressão, muitas vezes repetida, “sangue puxa sangue”, como se Maria Velho da Costa nos quisesse apontar uma certa inevitabilidade em tudo o que apresenta. Apesar de nos civilizarmos e desenvolvermos, não largámos aquilo que nos condiciona enquanto humanos e isso cria uma mágoa profunda.


Prémios da obra:
Prémio Correntes de Escritas, 2008
Prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa, 2009
Prémio Máxima de Literatura, 2009

janeiro 07, 2017

Do enfado do romantismo

Chegado a meio, acabei por ler o resto em diagonal, apesar de saber que surge em praticamente todas as listas dos melhores livros de ficção de língua portuguesa*. Passo a explicar.


Vitorino Nemésio doutorou-se com uma tese em Alexandre Herculano em 1934, tendo em 1936 editado um dos seus mais importantes contributos académicos, "Relações Francesas do Romantismo Português”. Serve isto para definir e delimitar o seu estilo literário ao romantismo, o que estaria na base e génese do seu, quase único romance (apenas mais duas pequenas obras 20 anos antes, e uma posterior, quase 30 anos depois), “Mau tempo no Canal”. Tendo o Romantismo iniciado-se com a Revolução Francesa, viria a sucumbir ao realismo na segunda metade do século XIX. Mesmo em Portugal, temos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, seguidos por Camilo Castelo Branco, e já na reta final Júlio Dinis, a fechar o género por volta de 1870, altura em que surge Eça de Queirós e vira tudo do avesso no país, transformando por completo a face da literatura portuguesa, abrindo caminho ao realismo e a tudo o que isso implicaria não apenas em liberdade temática, mas discursiva.

Ora Nemésio, passados mais de 70 anos, volta atrás no tempo. Não o faz por acaso, estava-se em plena efervescência no que toca à discussão académica das delimitações cronológicas dos modelos literários do século anterior. Os seus escritos académicos disso são prova. Por isso surgir da sua pena um romance assente nestes modelos, faz todo o sentido para si, e para alguns académicos, mas não deixa de ser anacrónico.

Voltando ao início. Se fechei o texto na diagonal, não foi apenas por considerar a obra anacrónica, isso é apenas um efeito do tempo, embora mereça reflexão. Mas foi apenas por ter esgotado a minha quota de paciência para com o romantismo literário. Do ponto de vista teórico, deveria adorar o romantismo, pelos seus valores, motivos e objetos. Contudo quando aplicado, nomeadamente na literatura, satura-me. A tendência para o exageramento e subjetivismo que conduz ao obscurecimento do que se vai descrevendo, cansa-me. Mas o que mais me incomoda é que aquilo que seria de esperar do estilo, um aprofundamento do sentir (psicologia) dos personagens, dado o seu enfoque no amor e suas tragédias, é completamente fantasioso, diria mesmo inócuo. Comparando-se ao que o realismo fez com as descrições psicológicas, parece até que se inverteram papéis estéticos. Assim, se fiz o esforço com “Moby Dick”, acabei por já não sentir suficiente ímpeto para o fazer por Nemésio. Diga-se que a impressão causada em 1944 não é replicável hoje. Se na altura o romance era um género praticamente ausente no país, estando a literatura nacional quase refém da poesia, hoje não nos falta romance, prosa e ficção.

Não posso contudo deixar de dizer que Nemésio escreve de forma belíssima, tal como Melville. São vários os momentos em que nos quedamos a ler e reler, pelo prazer que nos dão certas descrições mais divagantes. Mas quantas são as vezes em que nos perdemos, não percebemos onde estamos, ou onde estão os personagens, nem o que dizem, ou porque dizem. Não é uma questão de vocabulário, que sendo rico é acessível. É mesmo de estrutura narrativa, de maneirismo na forma das descrições que se perdem no espaço e no tempo. É como se nada pudesse ser dito de forma clara, menos ainda direta, e fosse obrigatório emaranhar. Como se o criador em vez de descamar a realidade para nos a apresentar, a esboçasse com mais e mais camadas até que esta se tornasse irreconhecível, fora do alcance de quem não a viu a nu, dificultando a partilha entre quem conta e quem recebe, por ausência de imaginário comum.

Talvez noutra fase da minha vida, com mais tempo e calma, possa cá voltar para desfrutar o que agora não fui capaz.


*Listas de livros de língua portuguesa
12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos, 2016
As 50 Obras Essenciais da Literatura Portuguesa, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Público, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Restrito, 2016
Grandes Livros RTP, série documental, 2009

julho 31, 2016

Carlos Paredes a revolucionar em 3D

Um projeto de animação de fim de curso, da famosa escola francesa Supinfocom, apresenta-nos como protagonista, um personagem decalcado de Carlos Paredes. Em lado algum é dito o seu nome, a equipa de animação é francesa, mas a equipa responsável pela música original é constituída quase só por portugueses, ou lusodescentes (Philippe de Sousa, Sousa Santos, Nuno Estevens, Romain Debrie), e a música é cantada em perfeito português europeu, o que facilmente nos conduz ao compositor nacional. Como se não bastasse, o filme desenvolve-se à volta de uma sociedade ditatorial, o que inevitavelmente nos recorda a vida de Paredes e sua luta contra o Estado Novo.




O filme apresenta assim um guitarrista cantor, que por meio da sua arte consegue persuadir o público a revoltar-se contra o estado das coisas, e tão bem o consegue fazer que logo se vê envolvido numa tentativa de rapto para o obrigarem a reproduzir o mesmo efeito a partir das forças opositoras.

Carlos Paredes

A animação é boa, aliás como é apanágio dos alunos da Supinfocom, mas o mais interessante é mesmo a multiculturalidade envolvida, nomeadamente entre franceses e portugueses, e que como se pode ver nesta curta acaba funcionando na ampliação das possibilidades narrativas. Claro que a mim, e a todos os portugueses, diz ainda mais por tratar-se de um artista e herói nacional, e de um período da nossa história que não devemos esquecer.

"Centopeia" (2014) de Clement Rouil, Leonie Després, Bertrand Piot, Yoann Drulhe, Alexis Caillet, Jerôme Regef


Atualização: 31 Jul 2016, 15:47 
Depois de partilhar o texto, o Leonel Morgado disse-me que a música não é original mas é antes uma composição e letra de Luis Goes intitulada "Homem só, meu irmão" do álbum "Canções do Mar e da Vida" (1969).

Isto levanta-me um problema, porque se fazer referência a Carlos Paredes no caso da criação do personagem à sua imagem não me coloca reservas autoriais, embora ficasse bem a referência, no caso da música é diferente, não ficava só bem, como legalmente era obrigatório.

junho 04, 2016

Fragmento e detalhe no title design de Filipe Carvalho

Filipe Carvalho é uma das referências internacionais no mundo do title design (design de genéricos) e esteve recentemente no Semi Permanent 2016 em Sydney, para o qual criou também o genérico promocional do evento que podemos ver abaixo, agora disponibilizado pelo Art of Title.






O seu mais recente trabalho está nas salas de cinema e serve a abertura e fecho de “Alice Through the Looking Glass” (2016). Se quiserem mais, podem seguir o seu trabalho a partir do seu site Random Thought Pattern. É verdade que o Filipe não se dedica apenas ao title design como poderão ver na página, e também como se pode ver desde já neste filme para a Semi Permanent, o seu trabalho distribui-se por todas as áreas relacionadas com a imagem em movimento, desde a realização à edição, passando pela cinematografia, produção e inevitavelmente o design.

Este filme é paradigmático de toda essa versatilidade de Filipe Carvalho, e por isso é também tão relevante na análise do seu percurso já que dá conta do amadurecimento, da capacidade de conduzir o todo da experiência plástica audiovisual para o conceito visionado. Sendo o title design, tal como grande parte do motion design, uma espécie de arte de fusão, pela apropriação de conceitos e objetos, sua colagem e mistura, é-o sem parecer um mero compilar de elementos, e é talvez por isso mesmo que se tem destacado tanto, e ganho tanta importância nos últimos anos.

Podemos ver como, ao longo destes 2 minutos, são trazidos à liça, a narração de Tom Waits, o texto de Charles Bukowski, as imagens de Toros Kose, a música de Tiago Benzinho, tudo (excepto a música) é servido em fragmentos, recortes, partes incompletas, desconectas, e como Filipe Carvalho reconstrói nexo, narrativiza. E não estamos a falar de mera samplagem audiovisual porque tudo é envolvido por um conjunto de novas imagens criadas pelo próprio Filipe (ver making of).

"Semi Permanent 2016 Opening Titles" de Filipe Carvalho

Se a música nos parece ser a pauta que lima os desfasamentos, e mesmo reconhecendo a sua enorme mais valia, é a partir do trabalho de composição visual que o sentido emerge, pela sua produção de valor estético. O modo como se trabalha a fragmentação e o detalhe de todos os elementos, nomeadamente a tríade — movimento, espaço e conceitos — acaba sendo a responsável por garantir a expressividade e identidade de todo o texto audiovisual.

abril 30, 2016

"Os Maias" e a escola

Uma epopeia familiar, vista sob um olhar global e multicultural, e ao mesmo tempo tão conhecedora do âmago do ser português, capaz de enaltecer os seus devaneios mais nostálgicos e melancólicos. Merece todos os laudos, e merece ser a luz do nosso cânone. Um texto apenas possível graças ao acesso ao mundo tido por Eça enquanto diplomata, e ainda ao facto de ser escrito já numa fase de grande experiência de vida alcançada, pouco antes de morrer.


Não sendo um estudioso de literatura, mas tendo em conta o mais recente empreendimento de ler os clássicos — Tolstói, Mann, Proust ou Dostoiévski — "Os Maias" apresenta várias particularidades que o tornam relevante para qualquer estudioso e que fazem com que mereça ser referenciado em muitas mais listas de livros obrigatórios (podendo desde já encontrar-se no cânone de Bloom, ou no English PEN).

Desde os aspectos de cruzamento cultural que vão sendo apresentados capazes de ligar dados sociais e históricos de Portugal, Inglaterra, França, Brasil, Espanha, Ásia, EUA, etc; ao puzzle geográfico nacional que nos leva a calcorrear boa parte do nosso território; passando pela ligação estabelecida entre diferentes géneros, nomeadamente opostos como a comédia e a tragédia; ou ainda toda a discussão sobre as teorias dos movimentos literários, do surgimento do realismo e decadência do romantismo, citando Émile Zola, Victor Hugo, William Shakespeare, Lord Byron, entre outros; assim como à crítica forte pelo retrato da burguesia, política e imprensa nacionais. É uma obra plena de saber que enriquece quem se predisponha a dedicar-lhe um pouco do seu tempo. Como se não bastasse é um texto que envelheceu muito bem, que apesar dos seus 118 anos continua imensamente atual e capaz de dar imenso gozo a quem o lê.

Quanto à leitura obrigatória nas escolas, é um livro difícil pela sua extensão que se arrasta em descrições e preparação para o clímax ("grande bolada") final, aliás é o próprio Eça a reconhecer isto mesmo. Mas também e porque apesar de Eça procurar distanciar-se do romantismo, e conseguindo fazê-lo muito bem nos temas, a escrita ainda está pejada desses traços que dificultam a compreensão, porque por via da romanticização da arte literária as ideias ficam por vezes como que soterradas por debaixo da forma. Não raras vezes temos de reler parágrafos, frases, para ligar os sentidos, já que estes se perdem no modo de escrita por via de embelezamentos gramaticais que descuram o que se diz apenas em busca de um efeito estético.

Por outro lado, acredito que a grande maioria dos alunos não passe do meio da obra, pelo que disse acima, quando na verdade a ação do enredo só começa verdadeiramente a agitar-se a partir da terceira parte. Falando em meu nome pessoal, não me lembro de o ter terminado nessa altura, por isso a impressão que tinha, não apenas pela idade que se tem quando se lê, mas por não ter assistido ao desenlace da epopeia, era bem diferente.

Mas a idade é um problema claro na assimilação de "Os Maias", uma obra carregada de crítica política e social, exige do leitor um conhecimento histórico detalhado do contexto de Eça, mas mais do que ter informação sobre esse contexto, exige a compreensão desse universo, algo que que com 16/17 anos não se tem, nem se pode construir em meia-dúzia de aulas. Assim se o texto nem sempre ajuda, escondendo os seus reais significados sob capas estéticas, o facto de termos leitores que ainda não detêm o arcaboiço necessário à interpretação do que vai sendo dito, acaba por ditar um afastamento inevitável da obra.

Lisboa, século XIX

O problema das leituras dos cânones nacionais nas escolas que não se passa apenas cá, mas em todo o mundo que vê a escola como normativa das identidades nacionais, é a obrigatoriedade. Talvez fosse tempo de pensar de modo diferente, e porque não faltam trabalhos nacionais de valor, oferecer alternativas de leitura. Obrigar a ler uma obra intemporal e de relevo, dissecá-la ao longo de meses, é algo que vemos como necessário à construção das identidades nacionais, mas que no fundo acaba mais por criar estigmas do que verdadeiro conhecimento, e menos ainda relação. O atual Plano Nacional de Leitura permite essa diversidade, o que é muito bom, basta aos professores e escolas traçarem o seu caminho.

Não estou aqui a defender a anulação do Eça, antes pelo contrário, uma maior contextualização deste em face da restante produção nacional da época poderá conduzir os alunos a quererem saber mais, a tentar buscar por si próprios a razão da sua relevância. O uso de documentários e cinema no suporte à leitura pode, por exemplo, ser uma forma de facilitar a construção de bagagem contextual, mas existem muitos outros modos de o fazer.

novembro 07, 2015

"Não É Meia Noite Quem Quer"

Li centenas de crónicas de António Lobo Antunes (ALA), contudo este é o seu primeiro romance que termino. Não que me tenha esforçado por ler outros, confesso que outros antes não me motivaram suficientemente, nomeadamente pelo surgimento constante do tema da guerra colonial, que me provoca algum distanciamento. Este perseguia-me quase desde que saiu, pois gostei imenso das primeiras páginas, o retrato que ALA ali desenha abre para uma espécie de cenário tipo do cinema português dos anos 1990: Urbano, melancólico, pausado, reflexivo, e profundamente introspectivo.


Não É Meia Noite Quem Quer” vem dividido em três grandes capítulos, por sua vez divididos em 10 secções cada, em que cada capítulo representa um dia, sendo que a acção decorre de sexta a domingo, tudo distribuído por 450 páginas. A escrita de ALA não é simples, desde logo porque trabalha em fluxo de consciência, estamos todo o tempo dentro da cabeça da protagonista, com excepção apenas para duas secções, em que somos convidados a entrar na mente de uma amiga e noutra vez do irmão que tinha ido para a guerra. Deste modo temos uma escrita entrecortada e fragmentada, sem contudo deixar de nos seduzir pela beleza do ritmo e texto, quase por vezes a roçar o poético.

A acção decorre nos anos 1990, a protagonista tem 52 anos e é professora, ao longo do livro vamos ficar a conhecer os seus três irmãos: o irmão que foi para a guerra e voltou louco; o mais velho que se suicidou; e o irmão surdo que vive revoltado. A mãe e vizinhas, o pai e seus vícios, a sua infância e amigas, o encontro do marido, a perda de uma filha que não chega a nascer nem permite que outras nasçam, a perda do marido que se deixa levar por outra, até à perda de uma parte do seu corpo levada por uma mastectomia.

Se o primeiro capítulo (sexta-feira) nos leva como uma onda, parecendo difícil parar de ler, queremos não apenas conhecer mais quem nos fala, mas também deleitar-nos com a escrita do autor, no segundo capítulo (sábado) muito disto perde-se, voltando apenas a reencontrar-se no terceiro momento (domingo). Deste modo fica-me uma sensação, no final da leitura, de falta de edição, o que havia para contar, para nos fazer sentir, podia ter sido conseguido em muito menos páginas, nomeadamente obliterando muito daquilo que está no segundo capítulo, e algumas partes do terceiro e até primeiro.

São vários os momentos que perturbam a leitura, e criam distanciamento, por serem extemporâneos, dos quais o mais saliente acontece o final do segundo capítulo, com toda uma secção a ser ditada pelo irmão que foi para a guerra em África, na primeira pessoa. Passamos do universo que acima defini, para outro completamente distinto, não apenas porque em termos de cenário é tão longíquo, mas porque o tom se transforma radicalmente, passando da melancolia à violência brutal, sem que isso tenha uma implicação direta na personagem principal. Ou seja, a manutenção deste todo, aparentemente sem edição, resulta tão pouco homogéneo acabando por retirar força à obra.

Efeitos desta falta de coerência acabam por resvalar e contaminar outros elementos, tais como a progressão narrativa, que se vai desvelando simplista porque previsível, nomeadamente dados os clichés que vão surgindo aqui e ali. Se a protagonista se caracteriza por via da caracterização dos demais, esses são por vezes tão óbvios que incomodam, como o irmão ensandecido que trouxe traumas da guerra, ou a mãe que engana o marido com o canalizador! Não se percebe a lógica de tão pobres construções, que acabam por se misturar e intensificar com o tom muitas vezes altivo, elitista, com que se vai descrevendo a “gentinha” ou os “pretos”, mesmo que sendo pela boca de personagens na primeira pessoa.

Não É Meia Noite Quem Quer” acaba sendo uma obra a considerar, por ter o autor que tem, e consequentemente apresentar por várias vezes rasgos de escrita magistral, como a última secção do primeiro capítulo, toda num parágrafo que se prolonga por 15 páginas, que nos dá vontade de ler num único trago. Por outro lado, toda esta genialidade artística acaba por conferir toda uma dimensão de respeitabilidade que parece ter impedido a quem devia ter exercido o seu trabalho criticamente e assim contribuir para que o bom pudesse ter chegado a ser excelente.

dezembro 26, 2014

Análise: “O Meu Irmão” (2014)

Portentoso debute. “O Meu Irmão” é dono de uma escrita sublime e dotado de um enredo matematicamente alinhavado, em nome do contar de uma história capaz de nos arrancar um grito de alma. Peguei nas primeiras páginas na noite, já tarde e sem grande ideia de o começar a ler, contudo a beleza do que comecei a ler num fio encadeado de palavras fluídas, logo me manteve ali preso.


Afonso Reis Cabral é jovem e por isso com muito ainda para dar às letras nacionais, apesar de primeira novela a maturidade apresentada dá conta de tanto e tanto trabalho realizado para chegar aqui, temos por detrás destas páginas alguém que leu centenas se não milhares de obras, temos alguém que escreveu centenas se não milhares de páginas, no que podemos ler ao longo destas 360 páginas fica demonstrado um domínio exímio da nossa língua, assim como uma noção muito concreta do que comporta uma novela.

Não foram poucos os que criticaram o escritor, não a obra porque nem sequer a tinham lido, só foi publicada depois de escolhida pelo júri do Prémio Leya 2014. Ganhar um prémio literário num valor de 100 mil euros é algo que levanta o sobrolho a qualquer um, ganhar com apenas 24 anos faz disparar o espanto, mas dizer que é trineto de Eça de Queirós faz surgir a desconfiança.

Contudo a capacidade de criar um texto destes não se define pela idade e menos ainda pela herança genética. Como nos dizem os vários estudos sobre o talento humano (Colvin, 2008; Coyle, 2009) esta capacidade só surge com muito, imenso, trabalho. Afonso Reis Cabral pode ter apenas 24 anos, mas se começou a escrever, como diz, aos 9 anos, tem 15 anos de labor em cima da arte. Do que nos é dado a ler é fácil ver as influências dos grandes clássicos da literatura, mas também se sente muito do seu mundo vivido, o que nos diz que o autor não só foi buscar muito aos outros que o precederam, como devia, mas também que é extremamente atento à realidade que o circunda.

Para Alain de Botton "a literatura é o maior simulador de realidade", capaz de nos fazer passar por experiências para as quais precisaríamos de várias vidas. O escritor Afonso Reis Cabral, e a sua idade, são a prova viva desse capacidade da literatura. Claro que não basta ler muito para se tornar num grande escritor, é preciso agir e trabalhar sobre aquilo que se lê e se consome, correndo o risco de nos deixarmos consumir. Ou seja, escrever, escrever todos os dias e sempre. Mas para poder evoluir falta ainda a motivação e a orientação, porque por muito solitária que seja a vida de quem escreve, o crescimento só é possível com o feedback de quem nos lê. Nesse sentido, ter tido bons professores no secundário e seguir uma licenciatura e mestrado na área das letras ajudou bastante.

Para quem entretanto o leu, dizer, ou criticar sob o preconceito dos 24 anos, que não se pode ainda escrever com profundidade (não vou nomear), é infantil porque se busca a infantilização do ser humano. Podemos sem dúvida questionar se esta será a sua maior obra, pois espero que não, é apenas o início de um caminho, que deve ser valorizado enquanto tal, não se analisa uma primeira obra como se analisa a obra de uma vida.

Falei acima do sentimento matemático que percorre o texto, que é no fundo um sentir profundamente académico que vibra ao longo de todo o livro e que de forma inteligente é atribuído pelo autor ao personagem principal, na sua profissão de investigador e professor  universitário. O enredo entre cada uma das pequenas histórias cozidas num todo, segue um processo de harmonização em busca de uma perfeição, com cada lugar, personagem e evento a trabalharem para um sentido muito concreto e altamente coerente. Por outro lado, existe uma fuga, que me parece consciente, a essa racionalização ou perfeccionismo que acaba por emergir numa espécie de mancha naturalista. Ou seja, existem diálogos com expressões duras, a roçar o mau gosto, incomodativas, chegando a tornar-se perturbadoras se pensarmos que este autor pode sequer ter pensado o que está ali escrito, mas que não estão ali por acaso, antes objectivam o tal naturalismo, um dar a sentir o que se diz e pensa em determinados momentos das nossas vidas, mesmo que isso não represente a forma polida de o escrever. Aliás este naturalismo é também em certa medida fruto do traço estilístico escolhido para a narração que se faz a duas vozes, ainda que da mesma pessoa, como se o narrador fosse dotado de um homúnculo que vai corrigindo e aprofundando a ‘verdade’ do que se vai narrando. Ou seja, nota-se aqui uma certa vontade de imprimir honestidade ao que é dito, e para que essa funcione, limpar e polir os diálogos poderia facilmente desacreditar essa frontalidade.

Ao longo do livro fui sentindo uma certa influência de cinema francês (ex. Eric Rohmer ou Alain Resnais), na forma como as relações humanas são descritas e moldadas, a suavidade e delicadeza da sua exposição. Parece nunca haver pressa para dar conta de um personagem, das suas relações ou daquilo que o afecta, como se a vida corresse a seu tempo ignorando as nossas angústias e a velocidade a que nos fomos acostumando que tudo gire. Para isto contribui imenso o lugar no interior do país, o constante apego ao passado, e claro o ritmo alternativo da vida de alguém que sofre de síndrome de Down. Ao longo de todo o livro o síndrome é tratado como algo perfeitamente normal, encaixável nos ritmos dos dias de hoje, muito pelo suporte das associações que tomam conta da maior parte destes indivíduos durante o dia, aliviando imenso o peso sobre as famílias. Não que se mascare o problema, ele é bem evidenciado, por vezes de forma diria mesmo perfurante, assim como nunca se usa o ‘problema’ para desenhar o sentimentalismo ou a melancolia fácil.

Mais para o final o modo calmo e suave, ainda que sempre fluidamente ritmado, sofre uma ligeira alteração assumindo um tom mais policial que inicialmente me afastou, pois soou-me a necessidade de cumprir as regras do storytelling, mas pouco depois altera-se de novo quando tudo se resume e encaixa no fechamento do todo, fazendo antes com que este episódio assuma o brilho da genialidade do autor, comportando em si mesmo tudo aquilo que na verdade este pretendia expressar, tudo aquilo que provavelmente o terá levado a escrever este livro.

Deixo apenas três frases que dão conta da escrita de Afonso Reis Cabral, do modo como este consegue simplificar o discurso, metaforizando sentires com imagens do quotidiano, tornando o mundo descrito extremamente acessível, mas demonstrando toda a sua capacidade para elaborar textualmente universos. Mais transcreveria se tivesse o livro em digital:
“Torna-se complicado quando ao cuspir também se quer projectar o ódio acumulado nas paredes do estômago.”

“...o tempo deixa-se escorregar como uma faca bem afiada: quando damos por isso, o corte está feito”

“Estalou os dedos e gaguejou, tropeçou nos gestos e nas palavras enquanto tentava ordenar o relato”

Nota quantitativa no GoodReads.

novembro 03, 2014

Do estado da animação nacional

A animação nacional está bem e recomenda-se, a demonstrar isto mesmo são os dois filmes vencedores do Prémio Nacional de Animação 2014 decorrido este fim-de-semana, e como se não bastasse, acaba de chegar à rede um trailer que anuncia um trabalho de estética e qualidade internacionais, criado apenas por uma dupla de irmãos nacionais.



Começando pelo premiado da categoria Profissional do PNA 2014, atribuído este fim-de-semana na Festa da Animação 2014 em Lousada, "Fuligem" (2014) de David Doutel e Vasco Sá que foi ainda agraciado com o Prémio do Público. "Fuligem" tinha já sido premiado com o Prémio do Público e a Melhor Realização no 22º Curtas Vila do Conde em Julho deste ano. E acredito que não sairá do Cinanima este mês sem prémio, veremos.

Trailer de "Fuligem" (2014) de David Doutel e Vasco Sá

"Fuligem" impressiona desde logo pela qualidade assombrosa da imagem, que em conjunto com o som, o guião e a direcção geram uma atmosfera única, autêntica e muito intensa. Ao longo de 14 minutos somos levados pelo filme, pela fuligem que se sedimenta sobre a imagem, sobre a música, sobre os personagens, e por fim sobre nós mesmos. O filme atravessa as memórias de um personagem, indo por seu meio ao âmago das alterações sociais ocorridas no nosso país nos últimos 30 anos, fazendo-o por por meio de uma metáfora simples, o comboio. Quando termina, ficamos ali parados, inquietos na mente e deliciados na emoção. É um dos melhores filmes de animação nacional que vi nos últimos anos, vale a pena ler o texto no P3 com entrevista ao David Doutel sobre o processo de produção.

Excerto de "Osmose" (2014) de David Ferreira, João Santos, Margarida Pereira, Pedro Baginha e Rui Silva. Uso este excerto por não ter encontrado um trailer.

Quanto ao premiado da categoria de Estudante, foi para um interessantíssimo projecto de fim de licenciatura da Universidade Lusófona, "Osmose" (2014) criado por David Ferreira, João Santos, Margarida Pereira, Pedro Baginha e Rui Silva. Este foi um projecto que me fez revisitar "THX 1138" (1971) de George Lucas, dada a similaridade espacial, trabalhando sobre um cenário branco sem fundo, e que mais uma vez demonstrou ser perfeito no baralhar das referências espaciais do espectador. Deste modo é um projecto que começa desde os primeiros segundos a instigar-nos, indo aos poucos, e de forma mínima, oferecendo-se à interpretação, mas sem nunca revelar o todo, obrigando o espectador a preencher os vazios, a construir sobre o branco o seu mundo, ajustando as suas referências às suas interpretações.

Por fim temos apenas um trailer mas que conseguiu ser desde já destacado no Cartoon Brew, "Poet Anderson: The Dream Walker" criado pelos irmãos Sergio e Edgar Martins e que deve estrear a 9 de Dezembro no Festival de Curtas de Toronto. O filme faz parte de uma estratégia transmedia da banda americana Angels & Airwaves, ao qual se juntará o novo album de originais da banda e um livro de banda desenhada tudo ramificado a partir do personagem central Poet Anderson, uma espécie de sonhador lúcido. O Cartoon Brew dá detalhes sobre o modo como foi lançado o projecto pelos irmãos portugueses.

Trailer de "Poet Anderson: The Dream Walker" (2014) de Sergio e Edgar Martins

Ainda que seja apenas um trailer, "Poet Anderson: The Dream Walker" impressiona desde logo pela fluidez da animação, com uma vivacidade e velocidade pouco comuns na animação nacional, o que não nos deve espantar, já que toda estética respira uma estilística globalizante de raíz americana. A componente visual é também muito conseguida nomeadamente em termos de luz, conseguindo gerar todo um universo muito próprio e consentâneo com o tema do filme. Resta-nos esperar para ver o resultado final.

janeiro 26, 2014

quando a animação reflete o país de origem

Há um ano falei aqui de Carlos Carvalho a propósito da sua multi-premiada curta de animação, Premier Automne (2013). Agora volto com o seu novo trabalho, "Juste de L’Eau" (2014) que trata um dos momentos de regresso a casa dos velejadores portugueses no auge dos Descobrimentos. Um tema que não é indiferente ao facto de Carlos Carvalho ser filho de portugueses, nascido e formado em França, tendo passado pela famosa escola Supinfocom.




Em Juste de L’eau (2014) Carvalho volta a universos visuais muito seus, nomeadamente a distorção e centrifugação dos cenários, a que já pudemos assistir em “L’Histoire de Rouge” (2008). Em Juste de L’Eau a distorção visual parece no entanto ser ainda mais intensa, o que em conjunto com a saturação e multiplicidade de cor, lhe dá todo um corpo surreal, como se Carvalho estivesse a transpor para o ecrã um sonho visto de longe.

Em termos interpretativos, podemos dizer que Carvalho se encena a si próprio, a olhar para todo aquele reconfortar de almas, fonte da saudade nacional, que desde os descobrimentos se apossou do nosso povo, para não mais o largar. São os velejadores que regressam de viagens duras, e encontram as famílias, num século XV, mas podiam bem ser imigrantes portugueses que regressam a Portugal no século XX. E quem por ninguém espera, assume aqui a sua melancolia, por sentir a falta dessa saudade, que só sente quem está longe. Em certa medida, poderia dizer que o título nos diz que a única diferença entre o século XV e o século XX, foi o caminho feito, apenas de água (juste de l'eau).

Impressiona-me ver estes artistas, com alma portuguesa, que trabalham espalhados pelo mundo, nunca precisaram do país, nem nunca este lhes ofereceu nada, mas eles continuam a recordá-lo como algo que lhes diz, que lhes fala, que transmite um pulsar. Ainda na semana passada aqui falava do último trabalho de Daniel Sousa, Feral (2012), agora nomeado ao Oscar 2013 de Melhor Curta de Animação, que apesar de não ser tão explicitamente sobre Portugal, como é Juste de L'eau, transpira atmosferas e costumes nacionais.

"Juste de l'eau" (2014) de Carlos Carvalho


Atualização 29.01.2014
Entrevista com Carlos De Carvalho

janeiro 20, 2014

"Feral", da ilustração à animação

"Feral" (2012) de Daniel Sousa está nomeado para o Óscar de melhor curta-metragem de animação de 2013, tendo ganho antes o Anima Mundi e prémios no Annecy e Cinanima, entre outros. Já aqui tinha falado a propósito de “Feral” quando este ainda estava em desenvolvimento, aproveitando nessa altura para apresentar três filmes anteriores. Entretanto consegui finalmente ver “Feral”, graças ao sistema VOD do Vimeo, no qual se pode pagar apenas um dólar pelo aluguer, ou dois dólares para comprar.




Feral” continua a mostrar o melhor da arte de Daniel Sousa, nomeadamente no trabalho de ilustração e na sua transição para movimento na animação. Sousa continua a afirmar-se como pintor, além de animador, e isso é por demais evidente neste trabalho. Cada composição visual é um quadro, com todo um detalhe gráfico soberbo, uma riqueza visual que impregna de sentidos múltiplos o filme que vemos. Sousa trabalha sem qualquer suporte de storyboard, o que explica as razões estéticas, mas também técnicas, da sua fuga à linearidade narrativa. Baseia a evolução do movimento numa busca visual, quadro a quadro, algo que é feito de um modo particular, já que inicia todo o trabalho no Adobe Flash, depois imprime cada um dos quadros em papel, retraça-os a lápis, e volta a digitalizar (ver vídeo abaixo "Feral: process workflow"). Podemos dizer que Sousa criou o seu próprio método de desenvolvimento de animação, e isso contribui indelevelmente para o resultado final do carácter autoral.

Making of do processo de animação 

Em termos narrativos Sousa prefere a visceralidade, envolvendo-nos e recompensando-nos a cada novo quadro, ainda que desta vez Sousa tenha seguido uma lógica mais linear para criar o seu universo, como nos diz em entrevista. Temos assim não apenas a criação de um universo espacial, mas o relato de um evento temporal concreto. Sousa transporta-nos para o seu mundo, mas concretiza as razões porque o faz. Sempre muito enredado pela mitologia, “Feral” trabalha sobre o mito do menino selvagem e a sua incapacidade para se adaptar às normas de um processo civilizacional desconhecido. O mito e a abordagem plástica elevam as possíveis leituras que se podem retirar do filme, e isso acaba por contribuir para o enorme interesse suscitado em redor da curta de apenas 12 minutos.

dezembro 05, 2013

Entrevista sobre o livro "Videojogos em Portugal"

Dei uma entrevista para a revista Eurogamer Portugal a propósito do livro "Videojogos em Portugal. História, Tecnologia e Arte". Nesta falo um pouco do livro, do processo da escrita, dos objetivos, do público alvo e de alguns dos problemas da criação de jogos em Portugal. Podem ver aqui.

dezembro 03, 2013

Entrevista com Bruno Telésforo, e a pós-produção das Aranhas Gigantes

Há duas semanas correu na rede um pequeno filme que mostrava aquilo que parecia ser uma invasão de aranhas gigantes na cidade de Lisboa. O filme fazia-se passar por um noticiário de televisão recorrendo mesmo a um pivô reconhecido da televisão nacional (João Moleira). No final os espectadores descobriam que nem as aranhas nem o noticiário eram verdadeiros, já que não passavam de elementos de uma campanha de marketing montada para anunciar o lançamento do terceiro volume de “As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça & Pizzaboy” (2013) de Filipe Melo, Juan Cavia e Santiago Villa.


Na rede, o filme foi um sucesso gigantesco conseguindo mais de 2 milhões de visualizações nos vários canais em que foi mostrado. Por outro lado nos media, o filme foi amplamente discutido pelos problemas deontológicos que levanta, nomeadamente no campo das fronteiras entre jornalismo e publicidade. Não vou entrar nessa discussão porque apesar de conceder que elas foram aqui ultrapassadas, depois de analisado bem o filme vemos que o foram mas de uma forma bastante atenuada. Nesse sentido considero toda esta discussão uma hipocrisia, já que estas fronteiras vêm sistematicamente sendo ultrapassadas no nosso país, sem nunca se ver quaisquer responsáveis ou instituições da área fazerem algo para verdadeiramente procurar pôr cobro ao "vale tudo".


Assim o que me interessa é apenas e só discutir o filme em si, nomeadamente o seu trabalho de pós-produção, dada a sua enorme qualidade. O trabalho que foi realizado pela empresa nacional Irmalucia Visual Effects teve como responsável, para as áreas de animação, modelação, composição, rotoscopia e mattepainting, o Bruno Telésforo e foi com ele que estive à conversa.

Antes das perguntas, dizer que o Bruno Telésforo (30, Cascais) adora videojogos e foi por causa destes que se inscreveu num curso de animação 2D/3D de 2 anos na ETIC, tendo depois seguido para a licenciatura em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia da Universidade Lusófona. Este seu percurso fez então com que desviasse o seu interesse dos videojogos para o campo dos Efeitos Visuais (VFx). Este seu desvio acaba por não o ser propriamente, já que entra em sintonia com a atual convergência que se vive entre o cinema e os videojogos. Vejamos então o que nos disse o Bruno.

1 - Que software foi utilizado para modelar as aranhas, e depois para a composição? E as imagens reais foram registadas com que máquina?
:: As aranhas foram modeladas, animadas e renderizadas em Autodesk Maya, a composição foi posteriormente feita em Adobe After Effects. A cãmara usada para captar as imagens foi uma Canon C300. Trabalhamos em HD 1080p.

2 - Quanto tempo levou o trabalho de pós-produção e como é que foi realizada a comunicação com o realizador Filipe Melo?
O período de pós-produção levou pouco mais de um mês entre toda a equipa da IrmaLucia. A execução da pós-produção de imagem estendeu-se por todo esse mês, sensivelmente. Durante esse período trabalhámos sob as indicações do realizador Filipe Melo. Os visionamentos com o realizador foram regulares, permitindo "desbloquear" certos aspectos criativos avançando na direção certa.

3 - O modelo de aranhas foi baseado numa espécie real ou é uma mistura de espécies, quais? 
:: O modelo das aranhas foi baseado numa tarântula comum. Adaptámos a cor do pêlo e usámos tamanhos diferentes para criar variações dentro da espécie. Podem parecer todas iguais, mas existem diferenças. Era esse o objectivo, que nenhuma em especial chamasse à atenção mas que houvesse espaço para variações.



4 - Temos apenas um modelo clonado, ou foram feitas várias com diferenças?
:: Tínhamos uma aranha principal que usámos várias vezes ao longo dos planos do filme e com ela também criámos algumas variações a nível do pêlo e do tamanho. No último plano vemos melhor a diferença de escalas.


5 - Como é que foi feito o processo de composição da iluminação? Foram feitas compensações na correção de cor para facilitar a composição, de que forma? 
:: As aranhas foram renderizadas em Autodesk Maya com "fake HDRI" extraído do plano original. Assim, simulámos a iluminação real na aranha que nos ajudou a integrá-la com o plano de imagem real. A sua iluminação é adaptada plano a plano e depois a iluminação é corrigida e “nivelada” ao longo dos planos.
Sim, houve compensações no final do filme nomeadamente na última sequência do filme: houve uma maior intervenção a nível de luz/cor para reforçar o aspecto dramático da história. Grande parte dos planos tiveram também o céu alterado para criar melhor a transição para a última sequência do filme.

6 - No plano final os helicópteros resultam muito bem, mas as colunas de fumo apesar de aproximadas na cor ao céu, parecem menos reais, alguma explicação?
:: As colunas de fumo passaram por várias fases de desenvolvimento até chegar a este ponto. Quem trabalha em 3D ou VFX sabe que integrar simulações de substâncias orgânicas é ainda uma coisa complicada de "vender" ao espectador. Isto porque dependem em grande parte de um detalhe ínfimo e uma escala gigante para parecerem realistas ao olho comum. São simplesmente coisas que fogem ao "natural", por isso são elementos difíceis de tornar credíveis com recursos limitados, sejam eles tempo ou capacidade de hardware. É algo que todos nós sabemos por instinto e experiência, e no “mundo” das imagens geradas em computador tornar algo visível e plausível é por vezes um desafio técnico e criativo.
Quando vemos, por exemplo, fumo ou água realista nos blockbusters que estamos habituados a ver, são fruto de um grande investimento em recursos técnicos e financeiros. A dificuldade está na escala que tínhamos que representar, porque quanto maior a escala do fumo, mais complexa é a simulação. Mas creio que dentro das nossas capacidades e limitações o resultado ficou bastante credível e cumpre o objectivo. Excelente trabalho do Luís Martins, residente na Irmalucia, que desenvolveu e integrou os efeitos de fumo na última sequência.


7 - Qual foi o plano mais complicado de criar, e porquê?
Pessoalmente foi o plano final. A intenção era criar destruição localizada ou que pudesse ser justificada pela ação das aranhas. Foi o plano mais elaborado de todo o filme e certamente foi o que teve mais atenção. Era preciso "encher" o plano com elementos para caracterizar a ação e a dificuldade era não "perder" tempo em coisas que não tivessem tempo para ser vistas. Foi então preciso sugerir linhas de olhar ao espectador e concentrar aí os nossos esforços de trabalho. Foi o plano que teve mais elementos conjugados e por isso mais tempo de render e “footage” para compor. Mesmo assim, pessoalmente, foi o plano que deu mais gozo por ter que destruir os prédios e sujar paredes. Idealizar e desenvolver estas situações foi algo que me deu bastante entusiasmo. O plano da queda da aranha foi também trabalhoso: foi complicado acertar a escala da aranha com as pessoas e fazer a rotoscopia das pessoas individualmente.


8 - O que te parece o desenvolvimento da área de composição 3d em Portugal?
:: Hoje conseguimos ver bons exemplos nacionais de bons profissionais na área de Visual Effects para Cinema e Televisão. Temos resultados e qualidade que já fazem frente a grande parte de produções internacionais, no entanto a produção nacional é ainda parca.  O desenvolvimento na área de composição que acontece em Portugal tem vindo a aumentar na última década, mas ainda assim, e comparando com a produção internacional, a  produção nacional é ainda diminuta. Consequentemente, as produtoras optam por recorrer a orçamentos baixos, que destabilizam o mercado para as "casas de pós-produção" já estabelecidas, no entanto exigem uma qualidade exemplar à semelhança da produção internacional.
É necessário apostar em projetos nacionais e em profissionais certificados que tenham já demonstrado capacidade evolutiva no mercado audiovisual atual, competitivo e em constante mudança.
Quanto à formação, há muito mais opções do que havia quando comecei, mas continua a ser pouca a formação especializada e de qualidade. Por outro lado, há cada vez mais autodidatas devido à quantidade de pessoas interessadas em Visual Effects e a pouca disponibilidade financeira no geral. Em Portugal é normal a formação nesta área basear-se em conhecimento técnico mais generalista nas várias ferramentas e técnicas em vez de ser especializado apenas numa área só, como acontece na produção internacional de qualidade.


Para quem quiser saber mais sobre o Bruno, aqui fica o seu portfólio
Behance / Vimeo e o LinkedIn.

novembro 11, 2013

Pensamentos e criatividade

André da Loba é um premiado ilustrador nacional que reside e trabalha atualmente em NY. O seu trabalho de ilustração é sobejamente reconhecido internacionalmente (com trabalhos publicados no New York Times, na Time, na New Yorker, etc.) mas o que aqui trago é um trabalho seu na área da animação. "On Thoughts(2012) surge inicialmente como trailer para um projeto de livro ilustrado homónimo, acabando depois por ganhar toda uma vida própria, suplantando o projeto de livro. O filme acabaria por receber em 2013 as medalhas de ouro da revista 3x3, e da Society of Illustrators.

"Somos nós que pensamos ou é o pensamento que nos pensa? As ideias são nossas ou são dele? Somos nós que o levamos ou é ele que nos traz?" André da Loba
A animação foi integralmente criada por André Da Loba em Adobe Flash. Numa entrevista diz-nos que estava interessado em confrontar o lado "pesado-tangível-estático" do livro com o lado "leve-intangível-dinâmico" da animação. De certo modo, acredito que o formato de animação acabaria por se sobrepor ao de livro porque este acabaria por responder muito mais diretamente aos anseios de Da Loba. O lado virtual e a temporalidade fugaz do meio parece ir totalmente de encontro à génese da ideia que sustenta este projecto, “o que acontece quando a inspiração levanta voo e te deixa para trás?”

Pensamientras (2012) versão portuguesa. Em inglês "On Thoughts", em francês "En Pensées"

Depois de ver o filme é-me inevitável repescar aqui a definição do que pode significar a ideia de ser-se criativo, que já aqui procurei definir ainda recentementeEssencialmente, ser criativo implica um trabalho continuado de absorção do mundo que nos rodeia, em paralelo com uma constante motivação para fazer, transformar e modificar esse mesmo mundo.

novembro 04, 2013

Amadeo de Souza-Cardoso - À Velocidade da Inquietação

 Velocidade da Inquietação" (2012) é o nome do documentário biográfico sobre o pintor português Amadeo de Souza-Cardoso. Realizado por António José de Almeida e produzido pela Panavideo para RTP2, o trabalho de 58 minutos pode ser visto na íntegra online.

"Nasceu em Manhufe, Amarante. Estudou em Paris. Foi amigo de Modigliani e vizinho de Picasso. Participou ativamente na revolução artística do início do século XX. Expôs ao lado dos maiores pintores vanguardistas do Modernismo, em Paris, Nova Iorque, Londres, Berlim. Foi o primeiro modernista português. Causou escândalo em Portugal. Teve uma vida relâmpago. Viveu e criou à velocidade da inquietação. Foi Amadeo de Souza-Cardoso."
O documentário apesar de por vezes um pouco pretensioso, em termos de impacto e ritmo é um belíssimo trabalho de documentação e divulgação sobre um dos mais importantes artistas que Portugal já teve. São múltiplas as entrevistas apresentadas que dão suporte à pesquisa de arquivo realizada e apresentada. Toda a informação é tratada numa linearidade cronológica temporal e estética, o que dá sentido ao que vamos apreendendo sobre o personagem, permitindo-nos conhecer melhor quem era Amadeo, assim como perceber porque o seu nome acabaria por ficar arredado tantos anos do circuito internacional de arte.

Os galgos, 1911

Avant la Corrida, 1912

Cozinha da Casa de Manhufe, 1913

Dom Quixote, 1914

Ao longo dos mais de cinquenta minutos, acompanhamos o desenvolvimento da arte e estética de Amadeo, o documentário é bastante rico em imagens alusivas à cronologia, desde fotografias, a documentos oficiais, a filmagens dos locais, entrevistas e críticas visuais com especialistas. O documentário trabalha literalmente para dar a ver a vida e obra de Amadeo de Souza-Cardoso. No campo sonoro, diga-se que a música e efeitos estão muito bem trabalhados obedecendo ao título escolhido para sintetizar a vida de Amadeo, "À velocidade da Inquietação". No final do documentário, quase que podemos sentir essa sua inquietação, e é com alguma melancolia que aceitamos que alguém com tanta garra, tanta vontade, tanto ainda para dar, nos deixaria tão cedo.

Amadeu de Souza-Cardoso está para pintura portuguesa do século XX, como Fernando Pessoa está para literatura portuguesa do século XX. Ambos foram expoentes máximos do nosso modernismo, juntamente com Mário Sá Carneiro. Pessoa acabaria por ficar como uma espécie de orfão na representação desse modernismo nacional, ao perder Mário Sá Carneiro em 1916, e Amadeu de Souza-Cardoso em 1918.

Amadeo de Souza-Cardoso - À Velocidade da Inquietação (2012)