“Que importa a fúria do mar” é um texto curto, 200 páginas, dotado de uma escrita erudita e não-linear, mas que ainda assim no desenrolar de páginas se vai colando a nós, tornando a leitura cada vez mais fácil e rápida. Em pouco tempo damos por nós a querer virar páginas para saber o que vai acontecer a seguir, tendo já esquecido que o discurso não segue linear, e que ora estamos dentro de Eugénia, de Joaquim, Francisco, o Gato ou o Pastor, mas com a autora sempre a manter o caminho da trama suficientemente iluminado, exigindo apenas quanto baste pela experimentação estética que vai realizando.
"Eras tão nova, mãe. E eu agarrada aos teus sonhos, aos teus cabelos, aos teus sapatos, ao teu presente, ao teu futuro – e pior – ao teu passado, que tu querias esquecer. Mas lá estava eu a fazer-te lembrar que tinha mesmo acontecido. Desafortunadamente, era uma menina empecilho, largada numas paragens agrestes e húmidas, em casa de uns parentes remotos. E velhos."Para primeira obra é admirável escrever-se assim. Não só ter uma boa história para contar, que enlaça o passado ditatorial e colonial do nosso país com o presente das tragédias de quem por cá sempre viveu e tem de viver, mas acima de tudo por um texto capaz de ser tão intrincado e ao mesmo tempo tão aberto, tão dado. Existem claro passagens menores, alguns excessos. Muita crítica é feita ao palavreado rebuscado, que se sente mais no início e que acaba por perder leitores, mas que vejo mais como sintoma de alguma insegurança originada pela imaturidade. Do meu lado, sinto ainda um excesso no número de tragédias apresentadas tão a jeito de catarse emocional, e que por vezes até em aberto se quedam. Mas é também, em parte, graças a estas catarses, que Ana Margarida de Carvalho consegue a nossa atenção e interesse todo o tempo da leitura, fazendo deste texto um dos livros portugueses que mais mexeu com as minhas emoções.
"Ao calor do meio-dia, Joaquim fazia por enterrar os arrames farpados nas costas. Preferia focar-se na dor das feridas do que na sede que o ensandecia. Isso e as moscas que não podia enxotar e lhe sondavam a face com as suas trombinhas impertinentes."
"Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbitos"
Fotografias do Campo de Concentração do Tarrafal, Cabo Verde, 2016
Nota final: O facto de ter estado no Tarrafal este ano contribuiu, e muito, para ampliação do meu sentir do que se encerra nas páginas deste livro. Inevitável criar estas relações com as obras que se aproximam de nós, a familiaridade é um dos mais poderosos afrodisíacos do prazer das histórias.
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