janeiro 19, 2017

"Myra" de Maria Velho da Costa

Sintético e sincrético, num constante jogo de opostos. Uma amálgama discursiva de intenso sabor. Um texto impressivo que segue de muito perto o impressionismo da pintura, no modo como textualmente desfoca o real e o torna menos claro e preciso mas indelével e intenso. Se podemos sentir a história descarrilar a meio caminho, o discurso e a escrita são tão intensos e particulares que fazem desta obra um texto em língua portuguesa obrigatório.


“Myra” é provavelmente o romance mais económico que li até hoje. É tudo tão medido, não existem palavras ao acaso atiradas por entre frases, mas antes cada uma tem um desígnio. Muito é dito em frases curtas, por vezes duas palavras chegam para passar uma imensidão de acontecimentos, um sentir carregado de passado ou um mundo por vir. A autora não se perde em explicações, estamos sempre no presente, no interior da cabeça dos personagens, sejam estes pessoas, cães ou casas, todos falam, mas, e ainda que de forma comedida, quando falam dizem muito sobre o passado e o futuro. Interessante como apesar de tão pouco dizerem, sentimos que estão em diálogo permanente, porque na verdade estão, já que dialogam pensando, enriquecendo assim o discurso, criando deste modo uma obra singular.

Todo o desenho da obra é feito seguindo uma lógica geométrica de contrastes e opostos a vários níveis: cultura (alta / baixa), discurso (modernista / realista), trama (etérea / naturalista). Com um mundo representado pelo choque constante de culturas, numa busca pelo sincretismo que vai da alta cultura (a linguagem erudita, rodeada de música de câmara e cinema europeu) à baixa cultura (vernáculo, música pop e cinema de Hollywood); suportado por um discurso pontilhado de fluxo de consciência por entre diálogos claros e expositivos; por sua vez tudo dirigido por uma trama que divide o texto em três momentos, opondo-se os dois primeiros, oníricos, ao último mais naturalista.

De certo modo as referências intertextuais marcam toda esta cisão criada: com Pasolini, Eisenstein ou Rimbaud de um lado; Sylvester Stallone, Will Smith, ou séries de televisão, do outro. Não poucas vezes, o que se diz é dito por meio de um título de um filme, de uma fala, ou uma canção, trazendo para dentro da economia de texto uma enorme riqueza de sentidos. O mesmo se dá com as interjeições linguísticas que vão do inglês, francês, russo, ao italiano ou o latim. Tudo isto, enriquecendo não deixa de se tornar a certo ponto repetitivo, matemático, conduzindo a alguma deserção do texto em que estamos inseridos.

Cabe aqui interpretação, aliás muita, desde logo porque sendo um texto económico acaba por se aproximar bastante de uma obra minimal o que inevitavelmente produz a necessidade de seguir as pistas deixadas pela autora, mas também por toda a intertextualidade presente. De certo modo, a cabal compreensão do texto só é possível com um estudo mais aprofundado da autora e seu contexto. Depois de ter escrito esta palavras encontrei uma tese de mestrado, de Daniel Damasceno Floquet, completamente dedicada ao estudo das dicotomias em "Myra", no fundo aquilo que aponto acima como geometria de constrastes. Não a li, tentarei ler entretanto para chegar mais fundo na compreensão deste texto que apesar de curto é imensamente rico.

Da minha perspectiva, confronta-se aqui o belo, a elaboração cultural, com o grotesco do mundo primário real. Esse confronto atravessa toda a obra, num questionamento da elevação cultural, confrontado com o mantra da vida: “a fome, o sexo e o poder”, e por outro lado o condicionalismo da nossa natureza na expressão, muitas vezes repetida, “sangue puxa sangue”, como se Maria Velho da Costa nos quisesse apontar uma certa inevitabilidade em tudo o que apresenta. Apesar de nos civilizarmos e desenvolvermos, não largámos aquilo que nos condiciona enquanto humanos e isso cria uma mágoa profunda.


Prémios da obra:
Prémio Correntes de Escritas, 2008
Prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa, 2009
Prémio Máxima de Literatura, 2009

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