novembro 07, 2015

"Não É Meia Noite Quem Quer"

Li centenas de crónicas de António Lobo Antunes (ALA), contudo este é o seu primeiro romance que termino. Não que me tenha esforçado por ler outros, confesso que outros antes não me motivaram suficientemente, nomeadamente pelo surgimento constante do tema da guerra colonial, que me provoca algum distanciamento. Este perseguia-me quase desde que saiu, pois gostei imenso das primeiras páginas, o retrato que ALA ali desenha abre para uma espécie de cenário tipo do cinema português dos anos 1990: Urbano, melancólico, pausado, reflexivo, e profundamente introspectivo.


Não É Meia Noite Quem Quer” vem dividido em três grandes capítulos, por sua vez divididos em 10 secções cada, em que cada capítulo representa um dia, sendo que a acção decorre de sexta a domingo, tudo distribuído por 450 páginas. A escrita de ALA não é simples, desde logo porque trabalha em fluxo de consciência, estamos todo o tempo dentro da cabeça da protagonista, com excepção apenas para duas secções, em que somos convidados a entrar na mente de uma amiga e noutra vez do irmão que tinha ido para a guerra. Deste modo temos uma escrita entrecortada e fragmentada, sem contudo deixar de nos seduzir pela beleza do ritmo e texto, quase por vezes a roçar o poético.

A acção decorre nos anos 1990, a protagonista tem 52 anos e é professora, ao longo do livro vamos ficar a conhecer os seus três irmãos: o irmão que foi para a guerra e voltou louco; o mais velho que se suicidou; e o irmão surdo que vive revoltado. A mãe e vizinhas, o pai e seus vícios, a sua infância e amigas, o encontro do marido, a perda de uma filha que não chega a nascer nem permite que outras nasçam, a perda do marido que se deixa levar por outra, até à perda de uma parte do seu corpo levada por uma mastectomia.

Se o primeiro capítulo (sexta-feira) nos leva como uma onda, parecendo difícil parar de ler, queremos não apenas conhecer mais quem nos fala, mas também deleitar-nos com a escrita do autor, no segundo capítulo (sábado) muito disto perde-se, voltando apenas a reencontrar-se no terceiro momento (domingo). Deste modo fica-me uma sensação, no final da leitura, de falta de edição, o que havia para contar, para nos fazer sentir, podia ter sido conseguido em muito menos páginas, nomeadamente obliterando muito daquilo que está no segundo capítulo, e algumas partes do terceiro e até primeiro.

São vários os momentos que perturbam a leitura, e criam distanciamento, por serem extemporâneos, dos quais o mais saliente acontece o final do segundo capítulo, com toda uma secção a ser ditada pelo irmão que foi para a guerra em África, na primeira pessoa. Passamos do universo que acima defini, para outro completamente distinto, não apenas porque em termos de cenário é tão longíquo, mas porque o tom se transforma radicalmente, passando da melancolia à violência brutal, sem que isso tenha uma implicação direta na personagem principal. Ou seja, a manutenção deste todo, aparentemente sem edição, resulta tão pouco homogéneo acabando por retirar força à obra.

Efeitos desta falta de coerência acabam por resvalar e contaminar outros elementos, tais como a progressão narrativa, que se vai desvelando simplista porque previsível, nomeadamente dados os clichés que vão surgindo aqui e ali. Se a protagonista se caracteriza por via da caracterização dos demais, esses são por vezes tão óbvios que incomodam, como o irmão ensandecido que trouxe traumas da guerra, ou a mãe que engana o marido com o canalizador! Não se percebe a lógica de tão pobres construções, que acabam por se misturar e intensificar com o tom muitas vezes altivo, elitista, com que se vai descrevendo a “gentinha” ou os “pretos”, mesmo que sendo pela boca de personagens na primeira pessoa.

Não É Meia Noite Quem Quer” acaba sendo uma obra a considerar, por ter o autor que tem, e consequentemente apresentar por várias vezes rasgos de escrita magistral, como a última secção do primeiro capítulo, toda num parágrafo que se prolonga por 15 páginas, que nos dá vontade de ler num único trago. Por outro lado, toda esta genialidade artística acaba por conferir toda uma dimensão de respeitabilidade que parece ter impedido a quem devia ter exercido o seu trabalho criticamente e assim contribuir para que o bom pudesse ter chegado a ser excelente.

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