julho 24, 2017

A Noiva do Tradutor (2015)

A escrita é bastante particular, elaborada mas acessível, dotada de uma pontuação intensiva, com ênfase na vírgula, que pauta o ritmo das frases e conduz o sentir da experiência de leitura, aproximando-a do tempo da ação. São 48 horas em 100 páginas, durante as quais pouco acontece ainda que pareça muito pela velocidade imprimida no modo como o pensar do protagonista vai brotando dessas páginas.


Não falo de género, não é um thriller, mas é antes o estilo adotado pelo autor que lhe permite desta forma criar um acesso ao interior do personagem, levando-nos no sequenciamento do idear, mas numa forma distinta do tradicional “fluxo de consciência”, no sentido em que as palavras não parecem brotar diretamente do não-consciente, do eu automático, mas antes do limiar do consciente, uma espécie de sinais pré-verbais.

De algum modo, este Tradutor atira-nos para os interiores de Gregor Samsa (Kafka) ou Rodion Raskólnikov (Dostoiévski), até porque a estes não é também alheio a visão mais negra do mundo em que vivem. O nosso Tradutor fica sem a Noiva e na busca por a ter de volta e tudo fazer para lhe agradar, entra por uma espécie de universo fantástico adentro, uma espécie de realidade alternativa de um passado europeu de há 100 anos, no qual o real se exagera e a sensibilidade se amplia, permitindo ao autor criar momentos de grande comicidade e simultaneamente questionamento existencialista.
"A velha aproxima-se, eu debruço-me sobre o corrimão, estou curvado no segundo degrau, molho o tapete, todo o meu corpo escorre água, tirito de frio, não consigo evitá-lo, é mais forte do que eu, terei de consultar um especialista sobre estes fenómenos, terá de existir uma explicação, a gorda viúva estica o pescoço, aproximo o meu rosto, sinto-lhe o hálito dos pesados assados de domingo, ainda não os digeriu, a noite não foi suficiente, ela aguarda ansiosamente, eu grito-lhe ao ouvido."
Gostei muito de ler João Reis, por tudo o que disse acima, mas também e apesar de não ser grande apreciador de comédia literária, pelo modo subtil, em que tudo se vai apresentando tão natural, mas simultaneamente ríspido, com os modos cruéis com que se vão desqualificando os vários personagens, criando assim uma teia negra mas cómica que tece o mundo do livro. Na tradição deste tipo de obras não é expectável fechamentos significativos, interessa mais o processo, mas neste caso posso dizer que me surpreendeu, a cena final preencheu-me, insuflou-me o sentir.

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